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Discurso interrogativo: a inevitabilidade do querer saber

1 Inevitabilidade do dizer (-se)

1.1.4. Indagação e perplexidade: o discurso da itinerância

1.1.4.4. Discurso interrogativo: a inevitabilidade do querer saber

Percebe-se assim que, na busca incessante de si, os sujeitos adolescentes encetam um percurso interior de (auto)questionamento e de (auto)análise que passa inevitavelmente também pelo confronto com as diversas representações da alteridade. Perceber por que são assim e não como os outros é um caminho que se afigura não isento de dor para alguns desses adolescentes, como vimos, mas o processo de indagação não se fica por aqui. Na realidade, o eu arquetípico que atravessa os diversos universos textuais manifesta, através de uma “(…) forte propensão para o discurso interrogativo (…)” (Sousa, 2000: 120), não só um insaciável desejo de (se) conhecer, de

perceber os contornos da sua existência (e da dos outros), de compreender qual o seu lugar no mundo, mas também uma necessidade de tecer considerações de natureza filosófica e epistemológica quase sempre de grande profundidade, não sendo, nestes casos, a interrogação sentida como particularmente dolorosa.

Com efeito, em Rosa, Minha Irmã Rosa, por exemplo, uma das obras em que o recurso à interrogação é mais evidente, Mariana questiona-se frequentemente sobre as implicações pessoais e familiares que o nascimento da irmã Rosa acarretou (RMIR, 74), os sentimentos que a unem aos outros (RMIR, 17), o seu crescimento e o da irmã (RMIR, 66), atitudes que considera incompreensíveis nos outros (RMIR, 57), o significado de palavras que desconhece ou que não consegue perceber quando inseridas em contextos pragmáticos não habituais (RMIR, 9) ou o desfasamento entre o que se aprende na escola e o que se sabe das pessoas que estão perto de si:

Como se explica que eu saiba tantas coisas dos romanos, e dos mouros, e não saiba nada da minha vizinha?! Como se explica que eu saiba quantas toneladas pesava a espada do D. Afonso Henriques e não saiba quanto pesa a máquina de costura da minha vizinha?! (…) Como se explica que eu saiba que Isabel era o nome da mulher de D. Dinis e não saiba nem o nome da minha vizinha?! (RMIR, 96)

As questões especularmente a si colocadas indiciam, por um lado, a sua (aparente) incompetência na decifração de códigos sociais e pragmático-linguísticos a que não será alheio o seu diminuto conhecimento enciclopédico do mundo mas, por outro, impõem-se como considerações filosóficas também subtilmente endereçadas ao leitor. Aliás, o jogo entre distanciamento histórico e proximidade vivencial (a minha

vizinha) reveste-se aqui de uma produtividade semântica muito provavelmente sentida

como eloquente pelo potencial leitor juvenil da obra. Nessa medida, a última citação transcrita, para além dos procedimentos técnico-compositivos e dos indicadores histórico-contextuais de que se socorre - o paralelismo estrutural, a oposição entre

figuras históricas do nosso passado colectivo e a presença anónima de alguém próximo do sujeito mas de quem este não conhece o nome - extrapola nitidamente o universo diegético, direccionando-o para o leitor.

Frente a frente consigo própria, ou com a voz da sua consciência, Mariana oferece-nos um quadro reflexivo sustentado pelo procedimento da interrogação retórica, que se afigura, neste contexto, como uma estratégia discursiva de auto-representação com um nítido propósito de fazer participar o leitor na construção de sentidos propositadamente deixados em suspenso.

Nesse sentido, o dizer-se, ou melhor, o interrogar-se pode ser entendido como um acto perfomativo e pedagógico que implica o leitor no circuito comunicativo, empurrando-o para além do texto, obrigando-o também a questionar-se. Aliás, no âmbito dos estudos literários e semióticos, as orientações teóricas contemporâneas, de que se destacam a perspectiva desenvolvimentista defendida por J. A. Appleyard (1991) e a teoria semiótica da cooperação textual concebida por Umberto Eco (1993), atribuem ao leitor uma função relevante e dinâmica no processo interpretativo do texto literário.

Se, por um lado, Appleyard enfatiza a perspectiva evolutiva do leitor, apontando a existência de cinco tipos de leitores ou cinco tipos de papéis que o leitor pode assumir perante um texto ao longo do seu processo de maturação cognitiva e psico-emotiva (cf. Appleyard, 1991: 14-15) - o leitor como jogador; o leitor como herói; o leitor como pensador; o leitor como intérprete e o leitor pragmático -, por outro, a teoria interpretativa de Umberto Eco postula a existência de um leitor modelo capaz de completar e actualizar o texto e de preencher os elementos não-ditos através de movimentos cooperativos e hermenêuticos que influenciam irremediavelmente o acto de ler. Com efeito, para Eco, o autor “(…) deverá prever um Leitor-Modelo capaz de cooperar na actualização textual como ele se moveu generativamente” (Eco, 1993: 58).

Desta forma, o leitor modelo previsto pelo autor do texto infanto-juvenil, um leitor intérprete de acordo com a perspectiva proposta por Appleyard, deverá ser capaz de activar os mecanismos da compreensão que lhe permitam estabelecer inferências e retirar ilações a partir do conteúdo semântico plasmado na superfície textual. Por isso, e apesar de o alcance epistemológico e metafísico das interrogações de Mariana - só para dar um exemplo - poder não ser demasiado evidente a priori, a instância receptiva não adulta provavelmente será capaz de preencher os espaços em branco, ensaiar respostas para as questões retóricas deixadas em suspenso, projectando-se no lido, e fechar dessa forma o circuito comunicativo através da sua capacidade hermenêutica, apesar da sua inevitável incompetência (ou competência condicionada) na decifração de códigos axiológico-valorativos mais complexos.

O leitor funciona pois como testemunha do processo de construção literária de um sujeito oscilante e dramático, um ser em fase de crescimento e de consolidação da sua personalidade, que se interroga e se auto-examina através de diferentes procedimentos técnico-literários que assentam, como vimos, numa estratégia global de

autocomunicatividade intratextual (cf. Aguiar e Silva, 1986: 307).

No entanto, essa necessidade de o sujeito compreender o mundo circundante e as reacções dos outros, que se materializa, nas narrativas em estudo, na reiteração de questões a si mesmo colocadas, traduz-se também em interrogações retóricas que ocasionalmente dirige a um interlocutor mudo, sem capacidade efectiva de resposta. Em

Os Olhos de Ana Marta, por exemplo, a irmã da protagonista, Ana Marta, falecida antes

do nascimento de Marta, funciona como seu Duplo e, simultaneamente, seu destinatário intratextual. É à irmã que Marta confessa a sua perplexidade com o comportamento de Flávia, a mãe que não se comporta como tal, ao mesmo tempo que a questiona sobre um

tempo passado que ela, Marta, não viveu, procurando estabelecer ligações entre duas vidas de certa forma equivalentes:

Um dia, (…) pedi que me dessem, pelo Natal, um boneco de papelão.

De papelão, imagina!

Alguma vez desejaste muito ter um boneco de papelão? (OAM, 9)

Ainda que a comunicação não seja possível neste contexto, Marta, mesmo assim, e embora consciente dessa impossibilidade, não consegue silenciar-se. A interpelação a um ser fantasmático pode ser entendida como um gesto meramente retórico. Porém, querer recuperar um tempo anterior ao seu sinaliza a necessidade de Marta entender o mundo à sua volta, o mundo antes de si, mas também, indirectamente, a criança que Marta é no presente. Questionar a irmã ausente, a irmã que nunca conheceu, sobre a criança que (ela) foi num universo familiar sentido pela protagonista como estranho, um universo onde o segredo e o silêncio imperam, significa, em última instância, a tentativa de encontrar respostas para o enigma da sua própria existência. Haveria, nesse tempo anterior ao seu, lugar para o segredo? (“Alguma vez terás cruzado os dedos sobre os lábios e prometido guardar segredo?” (OAM, 107)). Poder-se-ia, nesse tempo anterior ao seu, ouvir tranquilamente as palavras da velha criada sem que alguém as silenciasse, com medo de uma qualquer revelação? (“Recordas-te como Leonor passava as tardes a contar histórias e a cantar?” (OAM, 61)).

Não obstante, ao tentar incluir o outro na sua indagação sobre o existir, Marta não consegue mais do que a congeminação sobre o que poderia ter sido porque o ser ausente e fantasmático que Marta convoca para seu interlocutor, presentificando-o, não lhe fornece (não lhe pode fornecer) respostas sobre o tempo vivido. O acesso ao enigma será facultado pela mediação de Leonor, a personagem que, simbolicamente, faz a transição entre dois mundos e dois tempos que em tudo se distanciam. Após a

revelação, que apesar de surgir no final da narrativa já é do conhecimento da narradora autodiegética no momento em que a mesma se inicia, criando um efeito de estranheza potenciado pela analepse, Marta entende finalmente as reacções dos outros, mas questiona-se (pela interpelação ao ser ausente em quem especularmente se revê) sobre o seu lugar no mundo:

Estaria eu aqui, se as coisas se tivessem passado de outra maneira?

Teria eu nascido, se não tivesse havido a Grande Fatalidade? Viveria eu, se tu não tivesses morrido? (OAM, 148)

Redimensiona-se desta forma o problema da identidade e da existência, motor de busca constante de uma menina que nasceu para substituir outra pessoa no coração da mãe. A Grande-Fatalidade, expressão aparentemente eufemística mas que se reveste de uma paradoxal dimensão disfemística, encontrada por Leonor para evocar o acontecimento trágico que atingiu toda a família, determinou o apagamento irremediável do Outro, da figura do Duplo no qual a menina (e os que a rodeiam) se projecta, mas marca igualmente o aparecimento de um eu que vem de certa forma ocupar o lugar do seu Duplo, a irmã com quem partilha até o nome, pelo menos em parte – Marta e Ana Marta.

Aliás, a questão do Duplo surge no contexto da obra como particularmente relevante, tal como a narradora assume na primeira pessoa: “Sempre senti que eu estava no lugar de outra pessoa, e que tinha de repetir os seus gestos, os seus movimentos” (OAM, 148). O sujeito sente-se assim obrigado a ser (como) o Outro, como o seu Duplo, porque é assim que os outros querem que seja, tal como a perifrástica «tinha de repetir» explicitamente anuncia.

Assim as duas existências, intimamente interligadas, ora se confundem ora se distanciam, dependendo dos pontos de vista adoptados. Se, para Leonor, Marta “(…) não é a outra. E não tem culpa de não ser. Ela chama-se Marta (…) e não Ana Marta.

Ela é uma pessoa. E as pessoas não podem substituir outras pessoas” (OAM, 145), para Flávia, “(…) ela nasceu para substituir Ana Marta, para podermos todos viver em paz olhando para ela pensando estar a ver a outra” (OAM, 145).

Por isso, e porque foi isso justamente que os outros (exceptuando Leonor) lhe fizeram sentir, existir só parece possível, aos olhos da menina, pela não existência do seu alter ego funcional, do seu Duplo. A sua vida parece ter tido o propósito de compensar uma ausência e, enquanto para os outros não for mais do que isso, Marta não terá direito a uma identidade própria, será sempre a irmã da Outra-Pessoa, aquela que ocupa o seu lugar. Aliás, a expressão «a Outra-Pessoa» está investida de uma carga simbólica evidente, uma vez que é atribuído a um ser ausente e fantasmático um estatuto (quase) divino de exclusividade e omnisciência, sustentado retoricamente pelo uso do determinante, mas também das maiúsculas alegorizantes e da hifenização.

Esse ser, percepcionado pelo eu como alguém que vigia de cima todos os seus passos, é configurado como um super ego, como uma pessoa perfeita aos olhos da menina, alguém que, ainda na perspectiva do sujeito que evoca essa Outra-Pessoa, foi “(…) a criança mais amada do mundo” (OAM, 135). As palavras de Marta, assim proferidas, deixam antever a mágoa de se sentir preterida, de se sentir a mais, de não ser tão desejada como a irmã.

A afirmação e a aceitação de si surgirão apenas no final da narrativa, após a revelação de Leonor que, em tom dramático e solene (“Leonor fala pausadamente (…) [com] aquela voz que afinal todas as pessoas têm guardada na garganta, reservada apenas para recordar o que muito amaram e perderam para sempre” (OAM, 132)), coloca um fim em todas as interrogações de Marta e repõe a harmonia num seio familiar que sente também como seu. A partir desse momento, já não é necessário querer saber mais nada, porque todas as dúvidas se dissipam, todos os enigmas são resolvidos:

Porque é de ti, finalmente, que se trata. Do teu nome finalmente pronunciado.

Tenho a sensação de ter percorrido as Sete Partidas do Mundo até chegar ao teu nome. De te ter sempre procurado, inconscientemente, pelo meio das febres, das ladainhas, dos quartos fechados à chave, das sextas-feiras com as espanholas, das conversas com Lumena.

Nesta parte do mundo te encontro finalmente. E te dou nome: Ana Marta.

E te chamo: minha irmã. (OAM, 133)

O percurso de deambulação do sujeito pelas Sete Partidas do Mundo56 – em

busca de si próprio, de respostas para o mistério da sua vida, mas também, inevitavelmente, um percurso em busca de um outro, seu desconhecido – culmina no

encontro simbólico a que se refere Marta (“Nesta parte do mundo te encontro

finalmente”). Por fim nomeado, e ultrapassado o trauma em sentido freudiano, o outro pode enfim passar a «habitar», novamente, a grande casa - uma casa que se abrirá pela primeira vez ao exterior depois de tantos anos, tal como Marta propõe a Flávia (“Vamos abrir as portas todas” (OAM, 153)) -, e, por extensão semântica, o coração daqueles que lá residem e que o amaram em vida. Aceitar a sua «presença» etérea significa que se fez por fim o luto e que a partir desse momento a normalidade regressará ao seio familiar e aos corações finalmente apaziguados.

Deste modo se percebe que o discurso interior das personagens se materializa (também) com alguma frequência no diálogo com um tu que mais não é do que o seu

alter ego funcional, da mesma forma que incorpora, pontualmente, as palavras de outros

com o nítido propósito de sobrevalorizar as suas. Daí que a monologização do diálogo, como veremos de seguida, seja mais uma estratégia narrativo-discursiva encontrada para demonstrar a inevitabilidade do dizer-se.

56Expressão recuperada da narrativa de tradição oral e maravilhosa que a protagonista simbolicamente considera semelhante ao seu percurso indagador.