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Espaço de convergência e de interdição: a palavra sussurrada

2.1 Incomunicabilidade e divergência

3. Comunhão e entendimento com o outro: entre palavras e silêncios

3.3. Espaço de convergência e de interdição: a palavra sussurrada

Nas obras em estudo, a criação de um ambiente físico de proximidade entre as personagens adolescentes e as figuras de vinculação secundária – avós, amas, velhas criadas – resulta em primeiro lugar do entendimento e da cumplicidade que as

personagens mantêm entre si; no entanto, é esse ambiente que permite simultaneamente a intensificação e a consolidação dos laços afectivos que as unem.

A comunhão com o outro traduz-se, assim, em termos proxémicos e cinésicos, na delimitação de um território espacial de reduzidas dimensões, um espaço de convergência onde o eu e o outro se movimentam com relativa facilidade, exprimindo dessa forma o seu grau de intimidade e afeição. Com efeito, como afirmam Myers e Myers, a distância interpessoal é uma forma de exprimir os sentimentos: “Nous nous rapprochons des gens que nous aimons et, si nous avons le choix, nous nous éloignons de ceux que nous n’aimons pas” (Myers e Myers, 1990: 152).

Nesse espaço íntimo de entendimento, em que o eu e o outro convergem e simbolicamente se fundem num só, as palavras são murmuradas, ciciadas, segredadas, ditas em voz baixa, ritualizando o momento, sacralizando o dito, tal como acontece, por exemplo, em Os Olhos de Ana Marta: “As histórias de Leonor eram todas contadas em voz baixa, ciciadas quase, e isso aumentava-lhes o encanto” (OAM, 62). A oralidade assume desta forma uma eficácia comunicativa que facilita o entendimento entre as personagens e atribui às palavras ditas, ciciadas, murmuradas uma nítida dimensão encantatória (cf. Parafita, 1999: 115).

Neste contexto, a instauração de um ambiente favorável à comunicação em voz baixa é mais do que o natural reflexo da proximidade física entre contadora e ouvinte. Existe claramente a intencionalidade, por parte da contadora, de criar uma atmosfera mágica que potencie o sonho e torne credíveis as histórias que servem de pretexto para o dizer. Mas existe também, nesse gesto de diminuir a intensidade e a altura da voz, a intenção de adensar o clima de cumplicidade e secretismo que envolve as personagens, excluindo desta forma intrusos desse espaço íntimo e privado. Dito de outro modo, o

espaço de convergência é, simultaneamente, o lugar de uma interdição para aqueles que dela não participam.

Com efeito, as diversas representações da alteridade adulta que renegam as leis da fantasia consideram que as histórias maravilhosas não passam de tolices e

palermices103, constituindo inclusivamente, na sua opinião, uma ameaça à educação das

adolescentes, como sucede especificamente em Flor de Mel:

O pai (…) não achava graça nenhuma a estas histórias. Um dia chegou mesmo a zangar-se com a avó Rosário. (…)

- Não quero conversas dessas aqui dentro! Não quero que, por sua causa, a miúda cresça com a cabeça cheia de disparates. As coisas são como são, e não há nada a fazer. Não serve de nada inventar palermices. (FM, 24)104

No discurso imperativo do pai, pautado pela repetição insistente e anafórica de um taxativo não querer no presente do indicativo (“Não quero … Não quero….”), é visível o seu desejo de impedir que a filha tenha acesso a histórias que, como se percebe pelos não-ditos, a podem (na sua perspectiva) influenciar negativamente. O silêncio a que obriga a avó Rosário, atribuindo-lhe antecipadamente uma culpa que ela em verdade não tem, parece, contudo, aos olhos do leitor, sinalizar o seu medo de a menina descobrir, pelas histórias contadas, analogias possíveis com a sua própria história de vida e poder retirar inferências delas.

Talvez por isso a menina, num momento posterior, reconheça que “Havia dias em que era difícil ser filha da rainha das Dioneias. Havia dias em que o coração ficava tão apertadinho que parecia rebentar por baixo da camisola” (FM, 43). De facto, o que se deduz a partir das palavras de Melinda, reproduzidas em discurso indirecto livre pelo

103É o que sucede justamente em Os Olhos de Ana Marta (49) e Flor de Mel (52), duas das obras em que

o recurso aos intertextos provenientes do património tradicional e maravilhoso é mais frequente.

104O discurso impositivo causa aparentemente estranheza e perplexidade, uma vez que, ao longo da narrativa, o pai de Melinda é uma figura apática e silenciosa. No entanto, o silêncio de António é um sinal de dor e de desistência, após o abandono da mulher. Talvez por isso este grito de revolta tenha a força de uma súplica. Talvez por isso também Melinda e a avó Rosário tudo façam para que o pai não saiba o teor das suas conversas. Será, muito provavelmente, não apenas uma forma de fazer respeitar e cumprir a ordem paterna, mas também uma estratégia conjunta de o poupar do aborrecimento.

narrador, é que o mundo imaginário em que se apoia para superar a solidão e a dor da perda não é aceite pelos outros, fazendo-a sentir-se ainda mais desamparada e só, mais diminuída dentro de si, e com o coração a explodir de dor, como o recurso discursivo à comparação hiperbólica (o coração “parecia rebentar por baixo da camisola”) evidencia. Parece existir, portanto, uma reacção adversa por parte de algumas representações da alteridade relativamente às histórias contadas pelas figuras de vinculação. Tal atitude, que resvala por vezes para situações de total incomunicabilidade, como a que assinalámos anteriormente, pode contribuir para um afastamento intergeracional entre pais105 e filhos e, consequentemente, para uma maior

proximidade entre os sujeitos adolescentes e as personagens mais velhas, com as quais o diálogo é (quase) sempre mais fácil.

Contudo, esse diálogo é frequentemente mantido em segredo, na esfera da privacidade e longe dos outros. A natureza das conversas entre meninas-adolescentes e avós ou velhas criadas justifica esse secretismo, uma vez que, normalmente, são assuntos familiares delicados que importa esconder (é pelo menos essa a intenção de alguns) dos mais novos.

Com efeito, e para além dos universos fantásticos que ajudam a criar, as figuras de vinculação dão igualmente a conhecer histórias de vida, dramas vividos e inconfessados, fragmentos de um passado individual e/ou familiar que as personagens infantis ou juvenis desconhecem106, tal como sucede, por exemplo, em Rosa, Minha

Irmã Rosa (55), Viagem à Roda do Meu Nome (92) ou em Os Olhos de Ana Marta, em

particular. Na verdade, nesta última obra, as histórias de Leonor são de facto contos

105 Porque são normalmente as figuras parentais que colocam uma barreira silenciosa entre si e as personagens adolescentes.

106Leonor Riscado lembra que Marta e Melinda “(…) têm em comum o facto de, durante um longo período das suas vidas, ansiarem pelo carinho de um lar, de uma família que não têm. Carregam o peso de culpas que desconhecem e sentem-se, quase sempre, mal-amadas ou desamadas” (Riscado, 2006: 113).

provenientes do património tradicional, mas também histórias de famílias ao contrário

de toda a gente (OAM, 25), uma família “(…) com uma avó desaparecida há muitos

anos (…) e uma mãe que só respondia pelo nome próprio porque – dizia – já não tinha idade para ser mãe de ninguém” (OAM, 25).

Nesta narrativa, a narradora tem um saber deficitário sobre si mesma e sobre as circunstâncias misteriosas que envolvem a sua família e que adquirem particular secretismo quando Leonor evoca, de forma só aparentemente eufemística, a Grande- Fatalidade para justificar as atitudes que Marta considera incompreensíveis nos outros. Marta não entende, por exemplo, a frieza, a secura e as «crises» de uma mãe distante e enigmática, as suas palavras ininteligíveis e desfasadas do contexto, tal como não entende os interditos e os silêncios impostos por todos os adultos (à excepção de Leonor), as reacções despropositadas dos que entram e saem numa casa de quartos sempre fechados, onde a presença fantasmática da Outra-Pessoa, metonimicamente representada e evocada no discurso interior de Marta pelos “(…) olhos [que] vigiavam tudo” (OAM, 147), se torna obsessiva para a narradora-protagonista.

Para adensar o clima de mistério, as personagens adultas que interagem com a pequena Marta estão proibidas de tocar no nome dessa Outra-Pessoa, de revelar a sua identidade e as circunstâncias que envolvem o seu desaparecimento107, tal como a

menina está impedida, sem que perceba porquê, de tocar em assuntos proibidos. Tais mecanismos de interdição, expressamente endereçados ao sujeito (“- Não diga isso” (OAM, 56)) ou, de forma indirecta, a terceiros (“- Calem-na! Calem-na! Calem-na!” (OAM, 18)), intensificam o clima de mistério em torno de assuntos tabu.

No entanto, as enigmáticas referências de Leonor à Grande-Fatalidade e à Outra- Pessoa instigam a curiosidade de Marta que, não obstante, continua a desconhecer o

107Durante muito tempo, Marta não tem conhecimento dessa pessoa numa época anterior a si, o que significa que, de algum modo, se consegue esconder, temporariamente, a verdade da protagonista.

nome e o sexo da personagem fantasmática, bem como a relação de parentesco entre ambas e os contornos trágicos desse momento fatídico referido por Leonor como sendo

a Grande Fatalidade.

Até à revelação final de Leonor, a que marca em definitivo a desobediência da velha criada às ordens do Touro Sentado108, da Outra-Pessoa nem Marta nem o próprio

leitor conhecem o nome, a fisionomia, um outro traço de carácter para além da

perfeição (OAM, 62, 138). Apenas os olhos, que tudo parecem vigiar, estão sempre

omnipresentes. Mas se o título avança com o nome da pessoa a quem esses olhos pertencem, o texto só o explicita na parte final, adensando a auréola misteriosa que envolve essa Outra-Pessoa. Deste modo, aos olhos do leitor e da pequena Marta, a Outra-Pessoa surge como um ser imaterial, sem corpo ou rosto, um ser guardado apenas na memória subjectiva dos que a conheceram. Dela não há sequer uma fotografia, um pormenor descritivo que seja evocado no discurso de Leonor, a única pessoa que se atreve a quebrar o silêncio e a falar do passado, revelando-o a Marta.

Apenas se insinua a semelhança física entre as irmãs no momento em que Marta, questionando a sua amiga Lumena sobre a eventual parecença com Flávia, alude ao comportamento das espanholas quando visitavam a mãe da menina e entre si comentavam: «Diós mio, que parecida!» (OAM, 121):

- Achas-me parecida com Flávia? - perguntei eu, de repente. Lumena olhou para mim, admirada.

- Não tens espelhos em casa?

- Isto não tem nada a ver com espelhos. (…) às vezes as espanholas ficavam a olhar para mim e diziam que eu era parecida. (…)

- Parecida com quem?

- Não sei. Só diziam que eu era parecida. Muito parecida. Mas nunca diziam com quem. (OAM, 121)

108Epíteto atribuído ao pai de Marta e Ana Marta porque, em criança, era esse o nome da personagem que encarnava nas histórias e brincadeiras de Leonor.

Só o leitor consegue, neste contexto, decifrar a retórica da palavra (e do silêncio implícito que a emoldura), uma vez que Marta, por nessa época não ter conhecimento da existência de Ana Marta, não entende os entreditos e o que fica por dizer.

Deste modo, as omissões e os silêncios, tal como as hesitações no discurso e o diferimento do dizer, intensificam o mistério que paira sobre a família, suscitando constantes interrogações e perplexidades na narradora-protagonista. Com efeito, no seu percurso indagador, Marta procura explicações para o «desamor» de Flávia (“Por que é que Flávia não gosta de mim?” (OAM, 55)), para a indiferença e a tristeza de um pai que “(…) só tinha olhos para Flávia” (OAM, 93), para as palavras enigmáticas da velha criada, mas apenas Leonor, pelo recurso às palavras mágicas do oráculo (“- Por muito afastados que estejam, os pais encontram sempre os filhos – dizia Leonor” (OAM, 66)), às insinuações e às palavras entreditas, lhe vai fornecendo indícios que auxiliam Marta a construir o puzzle e a desvelar o enigma.

No entanto, tudo é dito em voz ciciada, num ambiente de profundo secretismo e confidencialidade que determina a existência de um pacto de cumplicidade implícito entre Leonor e Marta:

Leonor enchia a minha cabeça de histórias, cantigas e ladainhas, e havia ainda os segredos, os inumeráveis segredos que, segundo ela, eu devia guardar para sempre. (OAM, 102)

Pelas palavras de Marta se deduz que a menina não percebe os motivos pelos quais deveria guardar para sempre esses inumeráveis segredos. Numa primeira leitura, a confiança que deposita em Leonor parece suficiente para respeitar o compromisso e garantir a inviolabilidade das revelações feitas pela velha criada mas, em verdade, a menina manifesta discursivamente o receio de represálias caso os segredos sejam violados. De facto, as fórmulas encantatórias e os juramentos que ajudam a selar o pacto entre ambas, atribuindo um tom de solenidade ao discurso da velha criada, têm