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Discurso autodiegético: o narcisisismo do narrador

1 Inevitabilidade do dizer (-se)

1.1.1. Discurso autodiegético: o narcisisismo do narrador

A literatura para jovens de finais do século XX é palco privilegiado do eu, que se desdobra e multiplica narcisicamente numa pluralidade de vozes e de rostos que concorrem para a construção de um sujeito em permanente confronto consigo próprio e com a alteridade. De facto, numa época dominada pelo individualismo, pelo narcisismo49, pelo isolamento e pela incomunicabilidade entre os seres, a literatura de

potencial recepção juvenil dá voz a sujeitos textuais que assumem, na primeira pessoa, as vulnerabilidades e as contradições do seu sentir, os seus pontos de vista e as suas convicções, na senda da explosão intimista (cf. Rocha, 1992: 9) que a modernidade acarretou.

Esse movimento introspectivo de um ser que continuamente se desdobra e multiplica no discurso é sustentado pela narração em primeira pessoa, que se institui como estratégia narrativa e compositiva preferencial nas obras em estudo. Tal estratégia enforma uma diversidadede registos e de procedimentos textuais em que se procede à (des)construção das personagens adolescentes50, preferencialmente femininas,

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Gilles Lipovetsky dirá inclusivamente que, para além do narcisismo individual, a época contemporânea caracteriza-se também pelo narcisismo colectivo, na medida em que “(…) os indivíduos reúnem-se porque são semelhantes, porque se encontram directamente sensibilizados pelos mesmos objectivos existenciais” (Lipovetsky, 1989: 15).

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Apesar de as narrativas para jovens, no período em estudo, serem maioritariamente protagonizadas por crianças e (pré)adolescentes, registam-se algumas excepções, como, por exemplo, as obras Às Dez a

Porta Fecha e A Lua não está à Venda, ambas de Alice Vieira, em que as personagens são adultas. No

primeiro caso, a acção passa-se numa casa que recebe pessoas idosas, reformadas ou rejeitadas pelas famílias, enquanto que a intriga da segunda se passa em torno de um pequeno café de bairro. É, na opinião de Isabel Vila Maior, “(…) um primeiro sinal de educação literária [uma vez que] esta descentração, construindo mundos ficcionais que não se situam na infância ou adolescência, confronta o leitor (…) com mundos ficcionais diferentes, o que representa um alargamento da sua competência de leitor literário, pelo esforço que a distanciação exige” (Vila Maior, 1999: 57).

destacando-se a este nível o recurso à focalização interna ou omnisciente e ao discurso indirecto livre ou mesmo ao monólogo em momentos de paragem na acção.

A instituição de um narrador autodiegético, neste contexto, serve o propósito genérico de orientação da leitura, uma vez que, pelo filtro da sua subjectividade, o sujeito enunciativo selecciona os dados da sua existência ficcional, construindo uma imagem idílica de si, das suas vivências pessoais e do seu constructomental.

A partir do ponto de vista da personagem em formação, constrói-se, pois, um universo ficcional em que se procede explicitamente à valorização do mundo adolescente e, por consequência, à desvalorização e desqualificação dos adultos, pelo menos de alguns, apresentados quase sempre de forma disfórica e invariavelmente submetidos ao olhar (impiedoso) dos mais novos. Regra geral, são os adultos que diariamente convivem com os adolescentes - os pais, em particular, mas também os professores - o alvo preferencial das suas críticas, o que significa que as narrativas seguem de perto a teoria do romance familiar defendida por Marthe Robert em finais dos anos setenta (cf. Robert, 1979: 29).

Deste modo se potencia a provável identificação com o jovem leitor, que, projectando-se no narrado, se revê nas palavras das personagens adolescentes e nas observações valorativas e de carácter judicativo que as mesmas vão tecendo ao longo da narrativa em relação àqueles que lhe são mais próximos. Esse processo de identificação é facilitado pelo facto de personagens e prováveis leitores não adultos terem aproximadamente a mesma idade, com problemas de ordem existencial, emotiva e relacional semelhantes, inerentes à fase de crescimento em que se encontram.

Nesse sentido, o encontro eloquente entre personagem e leitor, mediado pela escrita, confere à narrativa um estatuto comunicativo que não se esgota no acto de ler. Com efeito, a instauração de um clima de cumplicidade e de entendimento entre

sujeitos textuais e empíricos permite ao leitor encontrar, no silêncio da página, o espaço íntimo de uma comunhão.

Em termos genológicos e formais, essa tendência intimista que se verifica na literatura para jovens a partir dos anos oitenta do século XX, caracterizada pela amplitude temática que vai do movimento introspectivo e reflexivo à abertura ao exterior, traduz-se na adopção de novas modalidades de escrita, notando-se, neste subsistema literário específico, no período em estudo, a preferência por obras de um sentido pedagógico-filosófico evidente.

As narrativas de acção destinadas ao público mais jovem coexistem, nas mesmas coordenadas espácio-temporais, com essas narrativas de pendor diarístico e epistolar, onde um sujeito de escrita se dá a conhecer ao outro (ou a si mesmo especularmente) através de múltiplas estratégias de auto-representação. No entanto, a fixação pela escrita adquire, nestes contextos de enunciação, um valor perfomativo na medida em que, apesar de implicitamente, se exige (ou se espera) uma resposta do outro51, mesmo

quando o outro é ele próprio reconvertido numa segunda pessoa pronominal.

Em qualquer dos casos, é através de um discurso de primeira pessoa que personagens e/ou narradoras verbalizam a inevitabilidade do dizer(-se) e exploram narcisicamente os caminhos da sua interioridade, incorporando no tecido narrativo, no fragmento diarístico ou no texto epistolar, considerações epistemológicas sobre o existir discursivizadas em registo introspectivo e intimista. Clara Rocha, reportando-se às instâncias do eu autobiográfico na literatura contemporânea, demonstra aliás que, no plano gramatical, a “(…) primeira [pessoa] é obviamente a mais usada (…)” (Rocha, 1992: 50), apesar de o eu se dizer em várias pessoas.

51Trata-se, neste contexto da narrativa epistolar, de uma comunicação diferida que os condicionalismos próprios do género impõem, questão que será aprofundada no capítulo III.

Ora, sendo a narrativa literária para jovens, nos finais do século XX, uma produção que assenta em matrizes semânticas e genológicas de tendência manifestamente intimista, a preponderância da primeira pessoa num discurso fortemente modalizado, propício à prática da auto-análise e do auto-questionamento, não surpreende.

No caso concreto das narrativas em que o procedimento autodiegético predomina, os meandros da interioridade subjectiva são plasmados numa expressão individual não necessariamente acessível ao outro - por pudor ou tão-só por vontade de resguardar a sua privacidade -, o que explica, pelo menos em parte, a centração preferencial do discurso na primeira pessoa52.

Aliás, a inexistência efectiva de um interlocutor nesse contexto (pelo menos a nível intratextual) acentua a auto-reflexividade que enforma os discursos plurais das personagens, que manifestam assim a necessidade imperiosa de falarem de si, para si, de se dizerem simultaneamente enquanto sujeitos e enquanto objectos.

Nesse sentido, e de forma recorrente, as narradoras projectam para o exterior (leia-se, para a superfície textual) o discurso interior que corporiza o seu pensamento ou as oscilações do seu sentir, no presente, mas também as reminiscências de um tempo passado frequentes vezes evocado pela memória subjectiva, um tempo filtrado pelo olhar distante de sujeitos adolescentes que assim se revêem mimeticamente no espelho da infância. Numa e noutra situação, os segmentos textuais, cumprindo uma função preferencialmente retórica, dão conta do mover labiríntico do sujeito dentro de si e da sua linguagem.

52Paula Morão refere precisamente que “(…) o intimismo tem como centro o sujeito – mas um sujeito que busca fundamentalmente dois objectivos indissociáveis, a que as perguntas «quem sou eu?» e «que