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Diário de Bordo

Nome : Sandra Daniela Silva

Data: Terça, 21 de Março de 2018

Experiência/atividade/situação: Turno de Intervenção no Hospital do Porto (12h30 – 15h00)

Objetivos de observação do dia:

Observação

Cheguei ao turno, e encontrei a mãe da J. que me disse logo que estava de saída, que só tinha passado pelo Hospital para a J. fazer o penso e um antibiótico. Nesse momento, disse à mãe que era muito bom sinal e pedi para ver a J. porque queria dar-lhe um beijinho. Quando cheguei ao quarto, a J. estava muito bem-disposta e já se denotava algumas diferenças físicas desde a última vez que a tinha visto, uma vez que o seu cabelo já tinha crescido e o seu corpo desinchado de todos os tratamentos que tinha feito. Perguntei-lhe como se sentia, e ela disse que muito bem e que já tinha brincado imenso em casa, não tendo saudades nenhumas do Hospital. Durante aquele tempo a enfermeira estava-lhe a fazer o penso, e também foi uma forma de ela descontrair mais facilmente, porque estava entretida a responder-me e a falar comigo que nem se apercebia das dores que poderia sentir. Quando já estava a sair do quarto, perguntei-lhe se já tinha “matado” as saudades do irmão, e ela disse-me que sim e que até já tinham feito muitos desenhos juntos. Lembrei-me de lhe fazer esta pergunta, uma vez que ela durante todas as visitas que lhe fiz, falava muito sobre o irmão e o cão, e as saudades que sentia de casa. No final, a mãe da J. disse-me para ir visitar o quarto do B., porque ele durante o dia já tinha manifestado interesse em jogar às cartas com alguém, e era por isso uma boa oportunidade. Como a minha colega de estágio, não tinha mais nenhum quarto para ir visitar, decidimos ir as duas juntas bater à porta do quarto do B. e perguntar se queria companhia para brincar ou jogar a alguma coisa. Quando bati à porta, ele respondeu-me logo que queria jogar às cartas e disse para entrarmos. Antes de vestir a respetiva bata e calçar as luvas, fui buscar

um baralho de cartas desinfetado ao armário da Associação. Como não havia cartas normais, escolhi o UNO, mas, quando cheguei perto dele, perguntei-lhe se havia algum problema e se queria na mesma jogar com estas cartas. Ele disse que sim, e pediu à mãe (que se encontrava de saída para ir tomar café) para lhe arranjar a cama, puxando-o mais para cima, e colocando umas almofadas nas suas pernas. Quando a mãe lhe estava a fazer isso, o B. gritou muito alto e disse que tinha dores muito grandes cada vez que lhe tocavam, a mãe acalmou-o e disse mesmo: “Pronto, já passou. Não precisas ficar assim, agora eu vou lá fora e tu ficas aqui com as meninas”. Assim que a mãe voltou as costas, notei que o B. não tinha muita mobilidade nos membros superiores, então não estava a perceber como ia ser possível jogar às cartas assim, uma vez que ele não ia conseguir mexer as mãos. Senti que perguntar-lhe diretamente isso podia ser difícil, e obter uma resposta pouco agradável da outra parte, por isso esperei que fosse ele a dizer como íamos proceder ao jogo. E assim foi, enquanto estava a pensar em todas estas possibilidades, o B. disse “Vamos começar, podes dar as cartas?”. Eu dei as cartas, e quando lhe tentei pôr nas mãos, as cartas caíram todas porque ele não tinha força para segurar, e aí eu disse-lhe: “Como queres fazer? Onde queres que eu coloque as tuas cartas?” ao qual ele me respondeu: “Não sei, estou a ver que assim não vou conseguir jogar. Não consigo segurar nas cartas”. No momento que dizia isso a sua cara ficou mais triste, os seus olhos encheram-se de lágrimas e o ambiente ficou mais tenso, nem a minha colega conseguiu proferir uma palavra. Eu não queria que aquele fosse um momento mau e triste para o B., o nosso objetivo ali era fazê-lo sorrir e tornar o dia dele mais bonito, e eu senti que tinha de o conseguir fazer. Posto isto, reagi com normalidade, e disse-lhe: “Está bem. Vamos jogar de outra maneira, tu ficas com a Samantha (colega de estágio) e jogam os dois contra mim, assim ela pode segurar nas tuas cartas e tu escolhes o que queres jogar. O que achas da ideia?”. Pensei mesmo que o B. ia concordar com a minha sugestão, e que ia ser assim que conseguiríamos jogar todos às cartas, e fazer algo que ele queria tanto. Mas isso não aconteceu, o B. disse que não, que queria que todos jogássemos e que fosse mesmo uma competição, que ao fazer assim “não ia ter piada nenhuma”. A verdade é que me começaram a faltar formas de contornar o problema, já não sabia o que lhe ia dizer, mas também não queria desistir, nem queria que ele se sentisse mal ou “inútil” porque não conseguir segurar numas simples cartas. A minha reação foi novamente dizer-lhe que percebia o que ele queria dizer, e a única forma de mudarmos isso era esperarmos que a mãe dele chegasse e assim jogávamos em equipa, já conseguíamos competir na mesma e o B. ia ter a ajuda da mãe para segurar nas cartas. No momento que eu

disse isto, ele disse que sim e denotou-se no rosto dele uma postura mais benevolente para com toda a situação, não levantando problemas nem questionando mais nada. Pouco tempo depois, a mãe do B. chegou e explicamos como íamos fazer para jogar ao UNO, e nesse momento o B. disse: “Já não quero jogar as cartas, não podemos jogar a outra coisa? Acho que quero jogar ao jogo das palavras”. A mãe nesse momento respondeu logo: “Não se admirem, ele é mesmo assim, farta-se muito rápido das coisas”. Eu não sabia que jogo das palavras era o que ele estava a falar, e depois de lhe perguntar fiquei a saber que era o famoso jogo do “STOP” em que cada pessoa tem que escrever palavras numa série de categorias, começadas sempre pela mesma inicial. Gostei muito da ideia, mas fiquei desde logo intrigada, então se o B. não conseguia mexer as mãos, como ia fazer para escrever? Saí do quarto e fui ao armário da Associação buscar material, e mal cheguei ao quarto ele disse: “A minha mãe vai jogar também e escreve as minhas palavras”. Então aí, tudo fez mais sentido, e percebi como ele queria fazer. Eu e a minha colega ficamos na mesma equipa, para ser mais justo, e comecei a perceber que o B. estava a ter dificuldades para dizer à mãe as palavras, parecia mesmo que não estava a conseguir. Com algum esforço, fizemos algumas rodadas deste jogo, mas o B. apresentou muitas limitações em coisas mesmo simples, o que eu não estava a entender o porquê de acontecer. No final deste jogo, o B. pediu para que lhe lesse uma história, mas a mãe disse logo que ele estava sempre a pedir-lhe para ler a mesma história, e que agora se quisesse realmente que eu lhe lesse uma teria de escolher algo diferente. Ele desistiu logo da ideia, e deu de seguida outra dizendo: “Vamos jogar aquele jogo que tu dizes uma palavra, eu digo outra, depois ela outra e sempre assim até alguém se enganar”. Eu disse que aquele jogo era muito divertido, mas que para isso tínhamos de escolher uma categoria para dizermos sempre palavras dessa mesma categoria. Naquele momento o B. pensou e respondeu-me que não, que não era preciso, era só dizer as palavras. Como não estava a entender voltei a insistir e disse-lhe que se não tivéssemos uma categoria, pelo menos ter uma letra para todas as palavras começarem com essa letra. Ele voltou-me a responder que não, e que apenas queria dizer palavras, sem regras. Naquele momento custou-me muito perceber como um menino de 12 anos, queria fazer um jogo que não tinha sentido nenhum, sem objetivos, sem regras. Contudo, respeitei a sua vontade e assim fizemos o jogo, apesar de ter durado muito pouco tempo porque ele voltou-se a cansar muito rápido e preferiu mudar para outro. De seguida fizemos mímica, e este jogo já durou muito mais tempo, e fomos rodando entre todos os que estávamos no quarto (eu, a minha colega de estágio e o B.). Pouco tempo depois, a mãe do B.

voltou ao quarto e nesse momento ele disse-lhe que queria muito beber um chá e pediu à mãe para lhe ir buscar um. Entretanto, entrou o irmão mais velho do B. no quarto e ele ficou muito feliz quando o viu, eu pedi para me apresentar e ele fê-lo com muito agrado, perguntando se não queria jogar também connosco à mímica. O irmão disse que não, que preferia ficar a assistir e foi o que aconteceu. Quando a mãe voltou, o B. queria muito beber o chá, mas a mãe disse para esperar porque o chá estava muito quente, ele voltou a insistir que queria e mãe levou-lhe a chávena e no momento que ele provou, disse logo: “Está muito quente! Não quero! Podes pousar e bebo mais daqui a bocado”. A forma como o B. proferiu estas palavras foi um pouco dura e bruta, mas a mãe manteve sempre a calma e foi muito compreensiva com ele naquele momento, respeitando a sua vontade e não questionando mais nada. Passado algum tempo, chegou também o pai do B. e foi recebido com muitos sorrisos pelo filho, denotando-se uma cumplicidade muito grande entre ambos. Senti que aquele era o momento certo para nos ausentarmos, uma vez que o B. devia usufruir da companhia de todos os que o foram visitar, sendo que na despedida o B. foi muito simpático, assim como os pais, que agradeceram o tempo que estivemos lá.

No final da visita, quando saí do quarto, aproveitei que a mãe também foi à casa de banho para trocar algumas palavras com ela. No início ela mencionou a importância destes momentos, uma vez que por muitas vezes os pais estão tão cansados e saturados que já não conseguem interagir e ser dinâmicos como as pessoas externas fazem. Ao longo do discurso a mãe disse que se sentia mesmo muito desgastada, uma vez que já está no Hospital há muitos meses seguidos, sem ter oportunidade de ter outra rotina, e vivenciar outros momentos. Mencionando mesmo que: “É difícil estar constantemente a ver os nossos filhos a sofrer e não puder fazer nada para mudar isso. Acaba por ser um cansaço psicológico muito grande, em que todas as ajudas servem de forças para ultrapassar estes momentos”. No final desta frase, fez logo a ponte para a situação que se passou dentro do quarto relativamente ao chá, e disse: “A menina viu que eu lhe disse que o chá ia estar muito quente, mas mesmo assim ele quis. E depois respondeu-me como se eu tivesse a culpa. Isto é algo que acontece diariamente, é em nós pais que eles descarregam as dores e frustrações. Mas nós também temos as nossas, e vamos descontar em quem? Nos profissionais de saúde? Não pode ser. É difícil, tem sido difícil, mas uma pessoa não quer estar aqui preocupada a dar-lhe regras e a ser dura, porque não vale a pena. Duro já é o momento que eles passam!”. Neste momento eu questionei a mãe, se sentia que era mais benevolente com o B. por ele estar a passar por este período de doença, ou se

anteriormente já tinha esta postura. A mãe disse que não, que sempre foi uma mãe muito rigorosa, muito severa no que diz respeito à educação dos filhos, mas que este não era o momento certo para permanecer assim. Mas, no entanto, frisou que nunca deixaria que o filho lhe faltasse ao respeito ou fosse mal-educado com alguém, mas que facilita ao nível das respostas e da forma como ele lhe fala, uma vez que a medicação também tem efeitos de irritabilidade, e que sente que ele também não queria ser assim. Chegou mesmo a dizer: “É nestas coisinhas que precisamos de ajuda, nem sempre sabemos se estamos a fazer o certo, se o caminho é para este lado ou para o outro. Era importante existir alguém que falasse abertamente connosco destas questões. De vez em quando comentamos entre os pais alguns assuntos, mas cada um age de determinada maneira, não sabemos mesmo qual é a certa”. Expliquei à mãe que era normal que se sentisse assim, uma vez que ninguém está preparado para vivenciar algo assim, que nem sempre ela ia fazer o certo, mas que tudo que fizesse ia ser com o maior amor possível e preocupação pelo seu filho. Terminei a conversa referindo que ia estar sempre disponível para conversar, e que me iria encontrar mais vezes pelo serviço, podendo ajudá-la naquilo que precisasse. A mãe agradeceu imenso, e voltou a frisar a importância que estas conversas tinham, pelo menos para “arejar” a cabeça.

Contratempos

(problemas, dificuldades, inseguranças, dúvidas…)

Durante as outas vezes que tinha ido ao Hospital do Porto, o B. já se encontrava lá internado, mas estava sempre com a porta fechada e nunca queria visitas, exceto da família (pais e irmão). Muitas dessas vezes, eu estava no quarto de outras crianças, e ouvia-se constantemente o B. a chorar e a gritar. A mãe da J. chegou-me a confidenciar que ele era uma criança que gritava muito durante o dia por causa das dores e que os enfermeiros tinham muita dificuldade em lidar com ele.

Quando me apercebi que ia passar um turno com o B., fiquei apreensiva, porque tinha receio de não conseguir lidar bem com o sofrimento dele, uma vez que ele estava sempre cheio de dores. Não sabia como ele ia reagir à minha presença, e não queria que o que já sabia dele influencia-se os momentos que poderíamos vir a passar juntos. Contudo, senti que o turno correu muito bem e que, apesar de todas as dúvidas que me surgiram e algumas situações mais constrangedoras, consegui contornar os obstáculos e proporcionar ao B. momentos felizes

e divertidos. Sinto é que para os pais terem mais abertura para falarem, é necessário criar uma maior proximidade com a criança, uma vez que acabam por me ver depois como uma facilitadora de relações e sentem-se mais à vontade para conversarem sobre as suas inseguranças e/ou fragilidades.

Desafios profissionais

(tomadas de decisão, planos, (re)formulações, reflexões, novos conhecimentos, mudanças…)

Senti que todo este acompanhamento ao B. foi muito desafiante, na medida que tinha de estar constantemente a desenvolver a minha capacidade de improviso de forma a conseguir estabelecer uma ligação próxima com ele, sem que lhe causasse qualquer tipo de sofrimento. No final, quando pude conversar com a mãe, consegui desenvolver ainda mais a escuta ativa, uma das principais competências de um mediador. É importante que exista esta escuta ativa, para que seja gerada uma maior confiança por parte dos cuidadores em mim, e para também promover o relacionamento interpessoal. Sinto que consegui desenvolver a empatia, e certamente que numa próxima oportunidade, a mãe do B. já me irá procurar para continuar a conversar, tornando assim cada vez mais fácil o meu trabalho nos acompanhamentos ao Hospital.

Registo autobiográfico

No início deste turno de intervenção, quando voltei a encontrar a J. e a sua mãe, senti uma felicidade enorme por ver que o cabelo dela já tinha crescido. Naquele momento, parecia que me estava a imaginar há 12 anos atrás quando vi o meu cabelo a crescer depois de todos os tratamentos, e com isso veio o sentimento de um recuperar de uma nova vida. Quando questionei à J. como se sentia por ter de novo o cabelo dela, ela reagiu com leviandade e disse- me que normal, referindo mesmo “não me importo”. Ao ouvir estas palavras fiquei realmente espantada, porque não estava à espera, uma vez que na altura que eu estive doente, não via a hora de voltar a ter o meu cabelo e voltar a sentir-me “normal” aos olhos das outras pessoas. A mãe da J. fez questão de lhe ir tocar na cabeça e denotava-se a sua felicidade ao olhar para a filha e para o seu cabelinho novo, o que me fez recordar muito de quando a minha mãe me

disse com toda a felicidade “o teu cabelo já está a crescer filha!”. É muito nostálgico recordar este momento, uma vez que sinto que quando as pessoas passam connosco a nossa dor, sentem depois mais rapidamente as nossas vitórias e os nossos sucessos.

Relativamente à situação em que a mãe do B. lhe fez as vontades, considero que na altura que eu estive doente era muito assim também. Os pais, não se sentem no “direito” para chamar a atenção dos filhos, uma vez que a situação de saúde em que se encontram já é muito frágil por natureza. Os meus pais sempre me tentaram dar o possível e impossível para que eu me sentisse melhor e conseguisse suportar melhor os tratamentos, mesmo que isso lhes custasse muito e exigisse mais deles. Senti-me muitas vezes impotente, sem que pudesse fazer nada para atenuar o meu sofrimento ou as dores que sentia muitas vezes, e era na minha mãe que descarregava, uma vez que ele passava 24 horas do dia comigo e eu considerava que era a pessoa em que mais confiava naquela fase da minha vida. Mas ao mesmo tempo, era a pessoa que estava presente sempre que os enfermeiros me faziam o penso e me doía, quando me davam alguma injeção, ou cada vez que vomitava depois de um tratamento de quimioterapia, e isso fazia com que eu a visse como uma cúmplice de todo aquele sofrimento que eu passava, e muitas vezes não percebia o quanto ela sofria também. No meu período de hospitalização, a pessoa que eu mais falava, e que mais queria perto, era o meu pai. No início do tempo que estive internada, ele ia visitar-me todos os dias no final do trabalho, chegando muitas vezes quase em cima do horário do termino da visita, uma vez que a viagem Braga-Porto ainda ocupava algum tempo. Era nele que eu via um porto de abrigo, uma vez que com ele vinham lembranças da minha casa de onde tinha muitas saudades, à minha irmã que não via há muito tempo, mas acima disto tudo: era ele que eu via como o meu protetor, a pessoa que nunca deixaria que me fizessem mal.

Expressões e Sentimento(s) do dia