• Nenhum resultado encontrado

II. Enquadramento teórico

2.2. Família: papéis, funções e impacto da doença

A experiência de uma doença oncológica infantil é um acontecimento de vida que requer uma adaptação quer do próprio doente quer da sua família. Almico e Faro (2014) salientam que

Não só o diagnóstico, mas o tratamento do câncer também é acompanhado de dor e sofrimento para a criança e sua família, por ser muitas vezes incompreendido por ambos, já que os procedimentos invasivos e dolorosos do tratamento desgastam, às vezes, mais do que a própria doença. (p.724)

O doente, criança ou jovem, tem de se adaptar e adquirir novas competências e formas de se olhar que lhe permitam adaptar à situação, mas a família também vivencia uma situação

de crise. De acordo com Almico e Faro (2014, citando Ribeiro e Castro, 2007)

A falta de compreensão da doença e do tratamento na quimioterapia gera na criança sensação de perigo e de que algo ruim está acontecendo com ela, principalmente pelo facto de as limitações consequentes da doença interferir em sua vida social, impedindo-a de ir à escola, de brincar e realizar as atividades cotidianas. Logo, ajustes são necessários também na família e, especialmente, na vida do principal cuidador, para que todos possam se adaptar ao novo contexto da doença e aos desafios inerentes ao processo” (p.724).

A vivência de uma doença oncológica é traumática e destabiliza todos os membros familiares envolvidos. A família enquanto unidade cuidadora adquire um novo papel e incorpora um conjunto de mudanças e privações nunca antes experienciadas. Isto porque,

Ao nível do funcionamento familiar, para além de surgirem novas rotinas, verifica-se também o impacto da doença nos padrões comunicacionais, na redistribuição de papéis e no acréscimo de novas responsabilidades. Por vezes, as interações e dinâmica familiar passam a estar centradas na doença, o que pode desencadear conflitos e dificuldades na reestruturação familiar (Marques, 2017, p.36).

Durante todo o processo de doença, o sistema familiar é confrontado com uma série de mudanças e alterações, confrontando-se com dificuldades e necessidades variadas que exigem dos seus membros uma (re)adaptação a uma nova realidade (Canteiro, 2015). Inevitavelmente, passa a existir um foco extremo de atenção para onde são canalizadas todas as energias e todos os recursos, o que origina um sério comprometimento das relações intrafamiliares e sociais, recursos económicos e desemprego, sobrecarga física e emocional, entre outros (Costa, 2012). Torna-se, assim, essencial promover a resiliência da família e capacitar o cuidador informal de mecanismos e estratégias individuais, que, face às adversidades vividas durante o processo de doença, consiga enfrentar, resistir, adaptar e reagir positivamente (Ciuro, 2007). Mas,

O medo da perda da criança e dos receios constantes fazem com que o espaço no seio familiar seja todo ocupado com a criança doente. A centralização na criança é assim um processo que as famílias não conseguem evitar, impondo- se a toda a dinâmica do funcionamento familiar” (Marques, 2017, p.38).

Estas incertezas que surgem na vida das famílias e dos cuidadores de forma abrupta e persistente, aliadas a tantas outras caraterísticas desta doença, é que determinam que a centralização na criança se torne um processo tão fulcral e com implicações tão profundas para

toda a família. Normalmente pode acontecer que um dos pais ou cuidador sacrifique o seu emprego para poder dedicar todo o seu tempo e atenção à criança doente, ou seja, “a doença oncológica tem um impacto adverso sobre a rotina social e profissional das famílias, exigindo muitas vezes, que abandonem o emprego para cuidar da criança doente” (Marques, 2017, p.37). Todavia, o mesmo autor salienta que “a família, no contexto oncológico, é fundamental, sobretudo porque constitui o contexto de ajustamento onde a criança responde à doença. Neste sentido, a família pode ser equacionada como uma entidade que dá apoio, mas que, simultaneamente necessita de ser apoiada” (Marques, 2017, p.40). É aqui que reside toda a problemática, na medida em que todas estas famílias e cuidadores têm de ser dotados de conhecimentos que os possibilite lidar com a pessoa cuidada, sem descuidar a si próprios. Isto porque cuidar de si próprio deve ser encarado pelo cuidador familiar como uma atitude natural face a todas as dificuldades que vivencia no seu quotidiano de cuidados, reconhecendo em si mesmo as suas capacidades físicas e emocionais para lidar com essa nova realidade.

A adaptação à doença não é fácil e com isso advém uma alteração no quotidiano, tanto da criança/jovem com doença oncológica, como dos seus cuidadores. Segundo Almico e Faro (2014, citando Beck e Lopes, 2007)

os cuidadores relataram que diversas áreas de sua vida são afetadas, pois se veem obrigados a abrir mão do trabalho, do estudo, da hora de sono, da vida social, do lazer, do prazer, da vida familiar e do seu cuidado pessoal. Ainda segundo a pesquisa, gerenciar o tempo e reduzir a tensão são as principais preocupações dos cuidadores, porque as atividades de cuidar impedem o cuidado pessoal e o lazer” (p.725).

Entende-se com isto que, o cuidador não dispõe do tempo necessário que até então tinha, para realizar todas as suas tarefas, uma vez que,

o responsável pelo cuidado da criança/adolescente, com o decorrer do tratamento, defronta-se com novas atividades e tarefas do cotidiano familiar. Ao mesmo tempo em que promove cuidado, ele ainda mantém suas rotinas domésticas. Porém, nem sempre é possível conciliar ambos, pois necessita alterar uma série de hábitos e costumes; assim, seu modo de vida e comportamentos sofrem ajustamentos” (Silva et al., 2009, p.337).

Relativamente à dinâmica familiar, consegue-se perceber que os familiares são diariamente confrontados com exigências da própria doença, uma vez que têm de manter o

suporte emocional e psicológico ao familiar doente. Reorganizar as rotinas da família, assumir novos papéis ou funções sociais, ou redefinir as regras de funcionamento do sistema familiar, são exemplos disso.

De entre as alterações da dinâmica familiar destacam-se as dificuldades profissionais e financeiras, Silva e colaboradores (2002) mencionam que

A centralização na criança acarreta consequências na dinâmica familiar, de entre as quais se salientam as dificuldades profissionais. Normalmente um dos pais sacrifica o seu emprego para poder dedicar todo o seu tempo e atenção à criança doente, o que pode trazer dificuldades financeiras como uma preocupação acrescida e fonte de tensão familiar” (p.52).

Com todas estas mudanças, pode também vir a surgir uma separação ou aproximação nos casais, uma vez que “há casos também em que, pela distância da díade paciente - cuidador por um período de tempo longo, a relação familiar é desestruturada a ponto de haverem rupturas como separações do casal e mesmo a busca por uma terceira pessoa pelo progenitor que ficou em casa” (Sampaio, 2011, p.493).

Em algumas famílias, (...) a separação é a solução já que as diferenças individuais na adaptação e na maneira de enfrentar a doença são demasiado incompatíveis. Se existem casais em que ambos preferem partilhar sentimentos e preocupações, noutras um dos membros do casal opta por se defender não falando sobre o assunto, contrastando com a necessidade de desabafar do seu parceiro. Por outro lado, em algumas famílias, o casal sai reforçado, já que apenas unidos conseguem lutar e ajudar o filho a lutar contra a doença” (Silva et al., 2002, p.53).

É importante também frisar que com todos estes acontecimentos a sucederem, os cuidadores para puderem dedicar todo o seu tempo à criança que está hospitalizada, acabam por se separar mais dos outros filhos, existindo por isso uma diminuição da atenção dada aos irmãos. Uma vez que “o impacto da doença no irmão pode ser sentida de várias maneiras: na diminuição da atenção prestada pelos pais, e separação do irmão durante as hospitalizações” (Silva et al., 2002, p.53). O internamento da criança, muitas vezes, traz saudades de casa e dos irmãos. E é importante, tentar manter os irmãos presentes, uma vez que isso pode ajudar a diminuir as saudades de casa e da rotina. “(...) Quando o paciente tem irmãos, há ainda que se ter a preocupação com eles, pois eles também sofrem por ver o irmão doente e pela falta de atenção de seus progenitores, acarretando ciúmes, tristeza e tendência ao isolamento social” (Silva et al.,

2009, p.335). Os irmãos de crianças com cancro podem-se sentir sozinhos diante as mudanças do seu dia-a-dia da família, e durante o tratamento. Deve-se, sempre que possível, incluí-los nesse processo e oferecer informação e carinho, explicando as necessidades de cuidados com o irmão/irmã doente, sem se esquecer que eles não estão doentes e precisam de continuar a sua rotina.

Já com as rotinas modificadas, muitas vezes longe da família (filhos e companheiros), os cuidadores também sofrem com o afastamento dos amigos. Numa fase tão difícil das suas vidas, e em que precisam de apoio dos mais próximos, muitas vezes isso não é possível de acontecer. Segundo Silva e colaboradores (2002) “o afastamento dos amigos relativamente a uma família que passa por este problema é frequentemente referido (...) Esses amigos parecem não estar preparados para enfrentar a situação, não saber como lidar com ela, acabando por se afastar (p.54). É fulcral, o apoio de todas as pessoas à volta, amigos e familiares, para ajudar a enfrentar esta fase, mas “(...) por vezes, são os próprios pais dos amigos que não permitem a aproximação e incentivam o afastamento, numa tentativa de proteger os filhos de determinados sofrimentos, de uma realidade cruel da qual acham que podem e devem defender os seus filhos” (Silva et al., 2002, p.54). Uma vez que isto acontece, os cuidadores acabam por se sentir uma revolta e solidão ainda maior, mesmo que a “(...) ação de cuidar esteja embasada no amor, há momentos conflituosos em que os familiares cuidadores sentem-se tristes (...)” (Volpato, 2007, p.529). Para Silva e colaboradores (2009) “os sentimentos de segurança, medo, desespero e perda invadem a criança e, principalmente, a sua família, que se defronta com inúmeras dificuldades durante o tratamento do câncer (...)” (p.335). Geralmente os familiares, dão prioridade às necessidades do doente, o que resulta em famílias cujas necessidades não se encontram satisfeitas, o que se irá traduzir numa diminuição da capacidade de conferir suporte ao seu familiar doente. É fulcral, uma grande estabilidade emocional por parte dos cuidadores, para que consigam enfrentar os tratamentos e a vida diária durante todo o processo de doença. As necessidades psicossociais destes devem estar satisfeitas, e com isso é possível possibilitar um melhor cuidado possível ao doente.

“Para poder ajudar os filhos, os pais procuram informações junto dos médicos e enfermeiros e da investigação em livros e artigos. Conversar com outros pais que tenham passado pelos mesmos problemas ou que sirvam de exemplo como alguém que se curou são muito importantes podendo até fazer renascer as esperanças dos pais e com que encontrem novos recursos para poder enfrentar a doença com mais força, segurança e otimismo, que, por sua vez,

poderão transmitir aos filhos” (Silva et al., 2002, p.55). Os cuidadores sentem esta necessidade, de ouvir uma palavra amiga ou de consolo, nos momentos mais tristes e de mais sofrimento. Mas acima de tudo, o que procuram, é respostas para o problema que a criança está a ultrapassar e perceber se realmente irá ficar tudo bem, baseando-se nas histórias e percursos de outras crianças que vivenciam ou já vivenciaram uma doença oncológica. Para estes cuidadores “a necessidade de conversar com os amigos ou familiares sobre as suas tristezas consiste em compartilhar as preocupações para aliviar as pressões e emoções” (Volpato, 2007, p.529).

A perda de autoestima é outra das adaptações à doença, por parte dos cuidadores, assim como do próprio doente. Ao dar toda a atenção ao dependente, o cuidador perde algumas competências que carece para um continuo bem-estar pessoal. Assim, para que consiga ser proativo e corajoso nas suas funções necessita então de “incorporar uma nova atitude, ou seja, um estímulo ao reencontro consigo mesmo” não o fazendo “esquecer a própria saúde” nem colocando a “própria vida em prol do ente cuidado” (Vicenal, 2013, p.25). Para Volpato (2007) “Diante de tantas mudanças é de fundamental importância que o familiar cuidador possa cuidar de si próprio, procurando manter sua integridade emocional, psicológica e física para assim continuar dedicando-se ao paciente” (p.528).

A autoestima é uma caraterística essencial na vida do ser humano na medida em que este precisa de se sentir satisfeito para conseguir atingir a sua realização pessoal. Ao sentir-se feliz com a sua identidade o cuidador vai conseguir afastar-se de sentimentos “negativos como a ansiedade, a depressão e a agressão” (Freire & Tavares,2011, p.185), atingindo o valor e o apreço, dando mais importância à sua pessoa. Percebe-se com isto que, a autoestima é um ponto crucial na vida do ser humano pois significa o bem-estar do individuo, a sua honorabilidade e consideração interior, respeitando-se sempre a si próprio. No que respeita ao cuidador, estas caraterísticas irão ser importantes para que este consiga conciliar as suas emoções e pensamentos, não só com a pessoa que está a ser cuidada, mas também no seu ambiente familiar, em conformidade com a sua profissão.

É importante que o cuidador seja visto como um ser humano, também este, com dificuldades, necessidades, interesses e sonhos, assim como um elemento importante para a sobrevivência e bem-estar do dependente. “Torna-se assim, essencial, promover a resiliência da família e capacitar o cuidador informal de mecanismos e estratégias individuais, que face às adversidades vividas durante o processo de doença consiga enfrentar, resistir, adaptar e reagir positivamente” (Ciuro, 2007, p.25).

Os co-dependentes são definidos como possuidores de baixa autoestima, de grande dependência, de uma tendência para minimizar as suas próprias necessidades em detrimento das necessidades dos outros, de uma enorme dificuldade em lidar com a intimidade, grande ansiedade, depressão e híper vigilância. Assim, ajudar a pessoa a recuperar a sua dependência será um tratamento demorado e terá que envolver o maior número de pessoas próximas. (McCrady e Epstein, 1996).

A instalação de um quadro de doença no seio de uma família causa diversas perturbações, como conseguimos perceber anteriormente. Quanto maior o grau de dependência do doente e a carga psicológica do diagnóstico, maiores esforços são exigidos, assim como tarefas adicionais, que podem ser a gota de água no equilíbrio da família habitualmente muito ocupada. Realçando que “Como os familiares cuidadores dedicam-se a cuidar por sentirem amor, compaixão, preocupação e zelo para com o paciente, é importante que esteja bem consigo mesmo, visando proporcionar ao membro doente uma minimização do seu sofrimento e a busca do bem-estar”

(Volpato, 2012, p.531).