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Cláudia Furtado, filha de Cláudio Gervásio Furtado, expressa, em entrevista cedida no trabalho de pesquisa para esta tese, os dilemas dos descendentes diaspóricos das famílias da elite cuiteense. Segundo ela, é preocupante que as reuniões com a família extensa estejam ocorrendo sempre em situações de falecimento. Os velórios se tornaram a oportunidade para que todos se reencontrem:

A gente se reúne pouco, mas quando a gente procura se reunir, a gente acha muito bom, muito gostoso. Então, como nossa família é grande, porque Papai contando com ele eram oito, a de mamãe oito, então assim oito filhos pra lá e oito pra cá e cada um com quatro, cinco filhos, né. A gente tava comentando que praticamente a gente se reúne quando uma pessoa falece e só em funeral, e isso é muito ruim, é péssimo! Quando Tia Alba fez noventa anos a gente se reuniu, aí Tia Elita também fez e se reuniu. Quando tem formatura, casamentos a gente procura chamar todo mundo, o máximo que a gente puder. Então, isso a gente se reúne. Aqui em Cuité-PB, até então Cristina tem a casa por aqui(Cuité). Na Festa da Padroeira, na Semana Santa, o pessoal gostava de se reunir e quando tem São João em Campina Grande a gente se reúne também, mas não reúne todo mundo, sabe? (Cláudia Furtado Carneiro da Cunha, entrevista em 28/07/2017)

Podemos analisar que aquele lugar associado à origem, ao passado, insiste em se impor no presente como lugar de perda, de morte. A questão levantada por Cláudia Furtado não é específica de sua família. Em muitas entrevistas que fizemos, aparece a dificuldade de manter as reuniões familiares, os vínculos primários que informam uma identidade e um lugar social.

A identidade aparece como uma forma dos membros das famílias se localizarem no sistema social e serem reconhecido socialmente. A identidade é uma estratégia de inclusão e exclusão pois ela informa a que grupo social o indivíduo se vincula e o diferencia dos demais. Estas identidades vão se evidenciar por meio das narrativas que se constroem e reconstroem entre os diferentes atores sociais. Ao relembrar o passado, os entrevistados/narradores são

estimulados a reviverem e recontarem suas vidas conforme o que é lembrado no presente. O passado está no presente e um não elimina o outro; os dois estão imbricados em uma mesma esfera simbólica e se conectam. Contudo, os entrevistados, ao narrarem suas vidas, utilizam alguns filtros e estes filtros advindos do presente não diminuem a relevância dos fatos passados; mais do que isso, as experiências contadas e recontadas ganham significados e servem para repensar o presente e o passado. Com as raízes no município de Cuité, os entrevistados e as entrevistadas lembram dos pais, da infância e da juventude transcorridas e sua ligação com o lugar. As transformações sociais associadas à modernização da sociedade brasileira corresponderam, no interior da Paraíba, à necessidade dos homens e mulheres da elite buscarem novos caminhos por meio da educação formal.

Isso porque:

a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. Se assimilamos aqui a identidade social à imagem de si, para si e para os outros, há um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao indivíduo c, por extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o outro. Ninguém pode construir uma autoimagem isenta de mudança, de negociação, de transformação em função dos outros. A construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de aceitabilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros. Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente renegociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um grupo. (POLLAK, 1992, p. 204)

As histórias contadas por alguns membros das famílias estudadas não existem isoladas, compõem parte do momento histórico que conecta a redes sociais, através da disseminação do modo de ver e viver no espaço social e por culturas familiares direcionadas por meio de padrões de comportamento estabelecidos, em que os papéis sociais são determinados segundo a hierarquia social, que vai compor uma forma de memória coletiva. No próximo capítulo, os aspectos da memória e da hierarquia social serão analisados a partir dos esforços biográficos realizados por alguns membros da elite cuiteense.

CAPÍTULO III

MARCADORES DAS DISTÂNCIAS SOCIAIS NAS NARRATIVAS BIOGRÁFICAS DE ANTIGAS FAMÍLIAS DA ELITE CUITEENSE

O interesse sociológico na temática da estratificação social objetiva compreender como as desigualdades entre indivíduos num dado momento do tempo são reproduzidas entre e através das gerações (BOTTERO, 2005). A reflexão sobre as desigualdades sociais deve resultar em uma narrativa processual, que apreenda as dinâmicas que engendram os modos pelos quais as distâncias sociais são criadas, legitimadas e mantidas. Não são apenas os acadêmicos e especialistas, no entanto, que refletem sobre a produção e reprodução das desigualdades. Esse tema é recorrente na vida cotidiana, como parte das disputas simbólicas que são travadas em torno da “representação” válida do que se acredita ser o “real” (BOURDIEU, 2004). Grupos sociais cujo status ou pertencimento à classe dominante passa a ser questionado ou ameaçado pela dinâmica das transformações sociais parecem dedicar-se, porém, com mais afinco às lutas relativas à representação “verdadeira” das distâncias sociais.

Nesta tese, partimos de materiais biográficos e autobiográficos produzidos por membros das antigas famílias de grandes proprietários de terra da região do Curimataú paraibano, para refletir sobre os modos pelos quais esses indivíduos manejam um conjunto de marcadores das desigualdades e distâncias sociais, num momento em que seu status social privilegiado passa por um processo de reavaliação em virtude da crise do latifúndio como modo de organização social, crise esta intensificada nas décadas de 1970/1980. São analisados três livros, publicados a partir de meados da década de 1980, em edições financiadas pelos próprios autores, em que reminiscências do passado são organizadas em narrativas que buscam tornar coerentes e acessíveis as histórias familiares a partir das histórias individuais. São eles: “O diário de Vovô Pedro” (1986), editado por Marisa Alverga, a pedido dos filhos de Pedro Simões Pimenta, com base em seus diários, lançado quando de seu aniversário de 90 anos; “Nós Dois” (2004), autobiografia escrita por Elza Elísia Fonseca dos Santos Furtado, das tradicionais famílias Fonseca, Venâncio dos Santos e Furtado, filha e esposa de políticos destacados do município de Cuité; e “Família Henriques: 200 anos de Picuí e famílias V.I.P” (2008), uma mistura de história de família com notas autobiográficas, de autoria de Heleno Henriques de Araújo.

De acordo com Bottero (2012), mudanças sociais de longo prazo afetam o significado das hierarquias sociais para as pessoas. Para estabelecer a sua própria posição, as pessoas

costumam se comparar com aqueles que são próximos (vizinhos, amigos etc.) e socialmente semelhantes a si mesmos. Mas também podem comparar a si mesmos em pontos anteriores no tempo, ou às gerações anteriores. A história da família oferece uma maneira de explorar essas questões e a análise das narrativas familiares/biográficas permite realizar, de acordo com a autora, duas tarefas relacionadas: a) examinar os processos de comparação social pelo qual a posição social hierárquica está determinada; e b) explorar como a mudança social em si afeta o senso de posição relativa e da desigualdade das pessoas.

Assim, a análise dos três livros acima indicados buscou apreender as marcas de diferenciação social que são mobilizadas pelos autores em seus escritos, que expressam as maneiras pelas quais eles representam as distâncias sociais no passado e no presente, sob o pretexto explícito de contar a história individual e familiar. Ressalta-se as inter-relações entre o individual e o coletivo, no compartilhamento de práticas, crenças, representações e lembranças, em que o passado e o presente são entrelaçados de modo a informar a posição social de seus autores e de suas famílias.

Estas questões foram discutidas a partir da compilação dos marcadores de distância social (em múltiplas narrativas e controvérsias) utilizados nos relatos publicados e no tratamento dado pelos autores às próprias genealogias. O olhar sobre a história da família promove certos tipos de comparações sociais, entre "então e agora", e entre parentes imediatos, o que pode escamotear as hierarquias sociais (CANDAU, 2014). Contudo, a capacidade de determinar a posição social também depende da qualidade das informações disponíveis, proporcionando diferentes campos de visão em relação às desigualdades. Mas a história da família também aumenta perguntas sobre o presente no passado e as maneiras pelas quais os historiadores da família localizam os seus antepassados (BOTTERO, 2012).