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1.6 Ocupação de cargos políticos pelas famílias da elite cuiteense

1.6.6 Poder político em Cuité: um negócio entre famílias de elite

Buscamos demonstrar, nesta seção, o predomínio político das cinco famílias da elite cuiteense que pesquisamos nesta tese de doutorado. Entre 1947, ano da primeira eleição direta para prefeito no município, e 2016, último mandato de Euda Fabiana de Farias Palmeira Venâncio, totalizando 16 disputas eleitorais, representantes das cinco famílias só não foram eleitos prefeitos em quatro oportunidades: 1978-198260, 1989- 199361, 1993 a 199662 (mas o vice-prefeito é um Venâncio dos Santos) e 2005-200863 (mas o vice-prefeito era um Fonseca). Três destas derrotas foram para o médico Antônio

60 Membros da famílias Venâncio dos Santos foram derrotados por Antônio Medeiros Dantas, ainda hoje

médico local e na época aliado da família da Costa Pereira.

61 Mais uma vez a família Venâncio dos Santos é derrotada eleitoralmente, perdendo para Cícero Cândido

da Silva, na época advogado, e posteriormente membro do Ministério Público Estadual, apoiado pelos da Costa Pereira. Foi um dos principais responsáveis pela denúncia que resultou na inegibilidade de Osvaldo Venâncio dos Santos Filho (Bado).

62 O médico Antônio Medeiros Dantas ganha seu segundo mandato como prefeito, desta vez derrotando

seu antigo aliado, Jaime da Costa Pereira Filho, também médico, com o apoio dos Venâncio dos Santos.

63 Terceiro mandato de Antônio Medeiros Dantas, mais uma vez derrotando Jaime da Costa Pereira Filho,

Medeiros Dantas, ora apoiado pelos da Costa Pereira contra candidatos dos Venâncio dos Santos, ora apoiado pelos Venâncio dos Santos contra os da Costa Pereira.

Estas famílias eram proprietárias de terras no final do século XIX e ao longo do século XX. A propriedade da terra, porém, não explica totalmente o domínio político, já que, nas últimas décadas, como demonstramos, suas propriedades têm sido divididas, vendidas ou desapropriadas para fins de reforma agrária. A dissolução do patrimônio fundiário, contudo, não dilapidou o capital simbólico/eleitoral destas famílias.

Só o capital econômico, portanto, é insuficiente para explicar o sucesso eleitoral. O nome da família se converte num capital político e simbólico, ativado a cada quatro anos nas disputas municipais. Na verdade, terminadas as eleições, as rivalidades permanecem, através de uma série de recursos políticos (cargos e favores, principalmente) que são permanentemente disputados.

A delimitação de posições políticas ocorre até mesmo quando da realização de velórios na cidade. Dependendo da ligação política que o cidadão falecido estabelecia com algumas destas famílias, seus velórios serão visitados por seus correligionários. No dia quatro de outubro de 2018, pudemos acompanhar dois “enterros”64 realizados simultaneamente, cujos mortos pertenciam a grupos políticos opostos. Em cada lado era possível observar que os cortejos fúnebres eram seguidos, em grande parte, por pessoas do grupo político ao qual o morto pertencia, mesmo não sendo eles das famílias de elite. As disputas eleitorais no município de Cuité permanecem, portanto, atreladas às famílias tradicionais e a suas rivalidades. Contudo, entre rupturas e permanências, não é possível desconsiderar as transformações recentes no cenário político, social e econômico do país e da região. Processos de modernização ressignificam permanentemente a influência política destas famílias, que precisam mudar suas estratégias eleitorais e suas alianças.

CAPÍTULO II

A DIASPÓRA DA ELITE CUITEENSE: DESLOCAMENTOS DOS

DESCENDENTES

A partir dos anos 1960, duas tendências passam a se fortalecer em relação a estas famílias da elite local: um crescente deslocamento de seus membros mais jovens, que se mudam para outras cidades, como Campina Grande, João Pessoa, Recife, entre outras; e a dissolução do patrimônio fundiário. No município de Cuité, os filhos das famílias abastadas começaram a migrar para estudar em outras cidades e muitos destes membros não retornam mais. Consequentemente, após a morte dos patriarcas das famílias e a crise no setor rural, os filhos que migraram passam a dissolver o patrimônio fundiário e reinvestir o capital em outros patrimônios.

Este capítulo procura demarcar as linhas gerais do processo de deslocamento dos membros das principais famílias que compuseram, no século XX, a elite em Cuité (PB), que chamamos de diáspora, entendida como um processo que redefine a dinâmica social, cultural e histórica do pertencimento, referindo-se à perda progressiva dos laços de alguns dos descendentes das famílias da Fonseca, Furtado, da Costa Pereira e Venâncio dos Santos com a cidade de Cuité65.

Hall (2003), em seu livro Da diáspora – Identidades e mediações culturais, afirma que situações de diáspora devem ser definidas pelas conjunturas históricas pessoais e estruturais. Para ele

(...) a identidade cultural não é fixa, e sempre hibrida. Mas é justamente por resultar de formações históricas especificas, de histórias e repertories culturais de enunciação muito específicos,' que ela pode constituir um "posicionamento", ao qual nós podemos chamar provisoriamente de identidade. Isto não é qualquer coisa. Portanto, cada uma dessas histórias de identidade está inscrita nas posições que assumimos e com as quais nos identificamos. Temos que viver esse conjunto de posições de identidade com todas as suas especificidades. (HALL, 2003, p. 432-433)

65 Neste capítulo, não trabalhamos com dados referentes aos deslocamentos da família Simões, mas o

processo de diáspora também foi vivenciado por alguns de seus descendentes. As fontes para recuperar os dados destas família estavam menos acessíveis no momento da pesquisa e, assim, tomamos as outras quatro famílias para fundamentar as análises sobre os deslocamentos dos descentes da elite cuiteense.

O deslocamento do sujeito diaspórico e sua condição produzem estranhamento, lembranças e indagações que envolvem, ao mesmo tempo, a relação do migrante com sua cidade de origem e com seu novo lar e a busca por uma identidade cultural. Mesmo que tradicionalmente o termo diáspora seja empregado para situações de grupos sociais subalternos, não é incomum sua utilização para falar de deslocamentos de membros da elite social. Guimarães (2002), por exemplo, chamou de diáspora o deslocamento de pesquisadores brasileiros na década de 1990. Gardner (2008) nomeou de diáspora o deslocamento transnacional de membros da elite indiana (classes médias e altas) e como suas vivências e estratégias se diferenciam dos migrantes indianos das classes mais pobres.

A diáspora dos membros das famílias de elite de Cuité ganha significado junto ao processo paralelo de dissolução do patrimônio fundiário, que expressa por sua vez processos sociais mais gerais, fazendo com que outras profissões sejam buscadas, normalmente associadas a algum tipo de formação superior. Buscamos, neste capítulo, descrever e analisar a diáspora dos descendentes das famílias de elite a partir da construção de árvores genealógicas que indicam o lugar de residência atual e a profissão dos membros das famílias e de entrevistas realizadas com estes sujeitos diaspóricos que estão hoje com idade acima de 50 anos. Em suas narrativas, eles combinam memórias da infância em Cuité e também suas experiências posteriores como residentes em outras localidades. Escolhemos trabalhar com este grupo justamente por esta situação de liminaridade. Seus filhos, por outro lado, ainda que possam manter algum tipo de vínculo com Cuité, nunca residiram na cidade.

No material coletado durante a fase de pesquisa, conseguimos uma árvore genealógica do casal Jaime da Costa Pereira (1920-2004) e Inês Duarte Costa (1921-). Eles tiveram 10 filhos (dos quais, apenas 01 ainda é residente em Cuité, enquanto um outro filho, médico, Jaime da Costa Pereira Filho, de quem já tratamos antes, reside em João Pessoa, mas mantém uma clínica em Cuité, onde atende uma vez por semana, e participa ativamente da vida política local). Estes 10 filhos (seis dos quais foram entrevistados durante a pesquisa) deram 28 netos (dos quais apenas um reside em Cuité e outra, filha de Jaime Filho, também trabalha na clínica do pai, mas mora em João Pessoa). Lembramos que o ramo de Jaime da Costa Pereira é o principal desta família e mesmo que ainda tenha bastante influência política local, como mostramos anteriormente, isso não significa que a estratégia dominante na família tenha sido a de manter laços com a cidade.

Do casal Claudio Gervásio Furtado e Elsa Elísia Fonseca dos Santos Furtado, são cinco filhos, dos quais apenas dois residem em Cuité. Duas filhas residem em Campina Grande e uma em Brasília (todas entrevistadas durante a pesquisa). Há ainda dados para outras famílias. Foram feitas entrevistas com membros da família Simões, Fonseca e Venâncio dos Santos.

As entrevistas foram feitas em meio às lembranças do passado, recompondo parte das trajetórias de sua vida. O passado em Cuité é relembrado e o “interior” emerge como o diferente da grande cidade. A cidade de Cuité é relembrada como o lugar simples e também, para alguns, como um lugar com o qual não se identifica mais, sem interesse de retornar para viver no município.

Ao pensarmos como os entrevistados vão articulando suas memórias, estes vão pontuando determinados acontecimentos que perpassam a memória dos demais membros da mesma família e vão construindo suas narrativas com suas histórias pessoais entrelaçadas com as memórias construídas coletivamente. Pollak (1992), ao falar de memória, afirma que:

Se destacamos essa característica flutuante, mutável, da memória, tanto individual quanto coletiva, devemos lembrar também que na maioria das memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis. Todos os que já realizaram entrevistas de história de vida percebem que no decorrer de uma entrevista muito longa, em que a ordem cronológica não está sendo necessariamente obedecida, em que os entrevistados voltam várias vezes aos mesmos acontecimentos, há nessas voltas a determinados períodos da vida, ou a certos fatos, algo de invariante. É como se, numa história de vida individual - mas isso acontece igualmente em memórias construídas coletivamente - houvesse elementos irredutíveis, em que o trabalho de solidificação da memória foi tão importante que impossibilitou a ocorrência de mudanças. Em certo sentido, determinado número de elementos tomam-se realidade, passam a fazer parte da própria essência da pessoa, muito embora outros tantos acontecimentos e fatos possam se modificar em função dos interlocutores, ou em função do movimento da fala. Quais são, portanto, os elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva? Em primeiro lugar, são os acontecimentos vividos pessoalmente. Em segundo lugar, são os acontecimentos que eu chamaria de "vividos por tabela", ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se participou ou não. Se formos mais longe, a esses acontecimentos vividos por tabela vêm se juntar todos os eventos que não se situam dentro do espaço-tempo de uma pessoa ou de um grupo. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de

identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada. (POLLAK, 1992, p. 201).

A posição do sujeito dentro da sociedade depende do tempo e lugar. Portanto, as identificações identitárias significativas remetem à posição social que o indivíduo ocupa no grupo social.

Pollak (1992, p. 204) afirma que “a memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado.” No caso dos entrevistados alguns pontos são recorrentes e a memória individual e coletiva se encontram em várias das histórias narradas. Nessas histórias, Cuité emerge como lugar que oscila entre o estranhamento e o familiar.