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Ao estudar narrativas de vida, buscamos compreender o jogo social da memória e da identidade enquanto elementos das desigualdades ou diferenças sociais. Para Candau (2014, p.137), a busca identitária movimenta e reorganiza, regularmente, as linhagens mais bem asseguradas, jogando com a genealogia naturalizada (“relacionada com sangue e solo”) e a genealogia simbolizada (constituída a partir de relato fundador). O autor também ressalta que as memórias genealógicas não são as mesmas entre os camponeses, os burgueses, os nobres ou as classes médias.

De acordo com Candau (2014), a memória familiar é uma memória curta e cada indivíduo sabe que, uma vez que a profundidade de sua memória não vai além de duas ou três gerações, ele mesmo vai ser esquecido algum tempo após sua morte. Essas memórias, mesmo quando inscritas na elaboração de uma identidade coletiva, buscam salvaguardar a memória de seus ancestrais e também a do genealogista.

Para Bottero (2012), as memórias de família são uma história de como um indivíduo irá mobilizar seu passado e dar-lhe significado, mais ou menos conscientemente. A memória da família é o resultado do trabalho de reapropriação e negociação que alguém fez vis-à-vis a história. E a investigação sobre a genealogia familiar cumpre a tarefa de apoiar um senso de 'eu' através de busca de conexões ancestrais. A história familiar retrabalha a auto - identidade e a genealogia é, frequentemente, enquadrada como uma busca para saber "quem é você" em termos de “de onde você vem”.

Mas a memória não é fiel aos fatos (AUGRAS, 1997). O testemunho vivo e a rememoração são produtos da subjetividade. A análise dos esforços dos historiadores de família permite, assim, compreender como questões de mudança à longo prazo afetam a percepção de posição social histórica das pessoas e assim a sua consciência das desigualdades relativas em face dessa mudança.

Para Portelli (1997):

Ainda que esta [a memória] seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre por meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes – exatamente iguais. (PORTELLI, 1997, p 16)

Ao explorar histórias de família, Bottero (2012) interessa-se pelas hierarquias sociais e em como as desigualdades estão entrelaçadas através de laços pessoais e conexões sociais. Ela explora este tema a partir de três ângulos em seu trabalho: usando o parâmetro dos laços sociais para mapear hierarquias; pensando em como laços e a interação social podem contribuir para teorizar hierarquia e desigualdade; e como a rede de conexões sociais afeta a visibilidade da desigualdade.

As hierarquias sociais, por outro lado, expressam modos de conexão, relações de interdependência entre indivíduos e grupos, que Norbert Elias (2005) abordou através do conceito de figuração. As figurações devem ser apreendidas em fluxo, com processos sociais interligados, mas com temporalidades distintas. Assim, é preciso tomar as histórias de família como expressão das experiências de certos indivíduos e também como uma aproximação a redes de interdependência, em diferentes escalas de análise.

É necessário um estudo qualitativo das histórias de família, explorando como - no processo de pesquisa das suas árvores genealógicas (ou origens sócio históricas) - historiadores da família investigaram processos históricos e como situam a si e a seus ancestrais, dentro de narrativas de mudança histórica e social. Teixeira (2003, p. 39) afirma que as “narrativas são reconhecidas e analisadas como meio de se conhecer como o social se personifica nos sujeitos, como a dinâmica social pode ser retratada nas vidas singulares cotidianas”.

Através das histórias da família, o sujeito produz um conhecimento sobre si, sobre os outros e o cotidiano, revelando-se através da subjetividade, da singularidade das experiências. O sujeito como uma figura central no processo de pesquisa sublinha a importância das apropriações da experiência vivida, das relações entre subjetividade e narrativa, que concede ao sujeito o papel de ator e autor de sua própria história. A elaboração de uma narrativa inscreve-se na subjetividade e estrutura-se num tempo, que não é linear, mas num tempo da consciência de si, das representações que o sujeito constrói de si mesmo. Assim, segundo Halbabwachs (apud CANDAU, 2014, p. 137), o conjunto de lembranças que compartilham os membros de uma mesma família participa da identidade particular dessa família.

Bottero (2012) argumenta que, dentro de algumas gerações, as vidas ligadas em árvores genealógicas guardam grandes transformações sociais, em uma escala que levanta questões sobre como as pessoas dão significado às desigualdades em face dessas alterações. Para ela:

(…)whilst the „case family history method‟ has generated family stories to investigate „family transmission‟ (Bertaux and Delacroix 2000; Thompson 2005). Less attention, however, has been paid to the significance of social hierarchy or social mobility for family historians themselves. Yet within a few generations, the linked lives in family trees bear witness to major social transformations, and on a scale which raises questions about how people make sense of inequalities in the face of such widespread change. (BOTTERO, 2012, p.55)

Esta tese parte do pressuposto que as narrativas biográficas aqui trabalhadas são um meio de refletir sobre transformações sociais e como elas são percebidas e vivenciadas ao longo do tempo, num processo de elaboração e reelaboração da história local e familiar. Por este motivo, optou-se por trabalhar com narrativas familiares interligadas, pois mesmo que tratem de três diferentes famílias, estas famílias compartilham uma mesma condição social (proprietários de terra), convivendo (ao longo do século XX) num mesmo espaço (Curimataú Paraibano). A ênfase da análise, porém, será dada aos marcadores mobilizados pelos autores para tratar das distâncias sociais, oferecendo assim uma compreensão mais detalhada sobre as maneiras pelas quais lidam com as desigualdades e hierarquias sociais. A produção literária local é tratada, assim, como produtora de esquemas de apreensão de processos históricos que envolvem as famílias do Curimataú Paraibano.