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E A DIALÉCTICA SANDBOX/THEME PARK

O papel do jogador no mundo virtual de qualquer jogo digital tem sido muito parecido com o papel de qualquer pessoa no mundo físico. No físico, apesar do conceito da prática de arquitectura abranger o espírito expedito de qualquer semiprofissional com umas noções de conformação espacial, as intervenções volumétricas e urbanistas de maior escala estão reservadas à encomenda profissional. No virtual, as experiências são na sua maioria projectadas pela indústria, ou curiosos que fazem uso da informação livre que circula na Internet e de motores de jogo abertos à utilização do público. Exemplos disto são as modificações, como o caso de Counter-Strike, que atingiu maior sucesso do

que o jogo original modificado (Half-Life), ou as texturas, mapas e outros elementos secundários, com impacto mais reduzido do que uma alteração a nível da mecânica, e que vão pautando as intervenções das comunidades interessadas em expandir os jogos.

Estas intervenções na limitação do que nos rodeia, por parte de leigos, ou externos a uma equipa de projecto, são encaradas de forma diferente, tanto no físico como no virtual. Se alguém, sem licença, num espaço público, interferir de alguma forma com os elementos que conformam esse espaço, corre o risco de ser acusado de vandalismo ou de subverter o uso dos espaços de forma pouco-ortodoxa e, por isso, ilegal. No virtual as intervenções dos jogadores fazem progressivamente parte do processo contínuo de desenvolvimento do jogo. A flexibilidade do virtual permitiu aos

designers de jogo compreenderem que a ideia da “Plug-In Architecture” dos Archigram estava mais

perto do possível no universo de qualquer jogo digital, e que não se formalizava só na resposta às necessidades e desejos das comunidades, mas também na formatação da hipótese de que cada jogador pudesse responder por si. A análise da imersão e ligação emocional, estabelecida num mundo virtual, serviu para compreender que a necessidade de intervir na criação da própria realidade é superior à mera curiosidade de uma minoria em programar sistemas ou recursos de um jogo. Esta é a evolução lógica da forma como os MMORPG conseguem cativar e criar vício em tanta massa populacional. É uma questão de lealdade, de controlo e posse psicológica sobre o avatar.177

Minecraft, apesar de ser mais considerado como uma plataforma de desenvolvimento do que um

jogo, é uma evolução sobre a falha do Second Life porque criou um sistema aberto e intuitivo para construir e destruir espaço, todo o espaço. O jogador tem a ilusão de controlo absoluto. Inovou sobre uma receita complexa e, mesmo sem narrativa, mesmo com gráficos “pixelizados”, vicia pela capacidade, descomprometida, com que um jogador pode criar e marcar o seu mundo.

Os designers de jogo compreenderam que viver uma experiência não é suficiente quando se pode ajudar a conforma-la, que várias são melhor do que uma, e que a possibilidade de as fazer já é tão valiosa quanto as experiências em si. A solução não é abrir os motores de jogo para a comunidade criar as suas próprias versões, mas integrar, nos próprios mundos, a capacidade dos jogadores criarem e desenvolverem espaço e os seus próprios sistemas. Não é para ser mais uma característica ou tipologia de jogo, mas um sistema que proporciona um fim, um começo, ou uma continuação que para cada jogador é única. Este processo tem o nome específico de Sandbox (caixa de areia). A nomenclatura podia ser adjectivada de perfeita quando tomamos consciência daquilo que define: um sistema, com um conjunto estruturado de mecânicas, que é programado e introduzido no jogo como uma ferramenta para o jogador desenvolver conteúdo, da forma que quiser, desde que dentro

177 Como afirma Mike Foster quando sintetiza as palavras de Dr. Lawrence Sanders no âmbito de um estudo sobre as razões da lealdade num jogo MMO: “One of the main conclusions drawn by the study is that MMOs that offer players greater ownership of their characters and the game world via customization and that player-created/controlled structures and situations tend to fare higher on the loyalty scale. Essentially, games allowing players greater control over the minutia of their character’s lives and the world around them are doing a better job of creating a positive environment for encouraging loyalty.” Foster, comunicação pessoal, Janeiro, 2013

fig. 2.79 Estação de crafting em Guild Wars 2 fig. 2.80 User Interface do mercado em Guild Wars 2

fig. 2.81 Controlo de nave e avatar, Eve online fig. 2.82 Mercado de Eve Online fig. 2.83 Instância personalizável Captain’s Quarters, Eve fig. 2.84 Universo de combate, Eve Online

dos limites definidos. Como exemplos temos os processos de gathering e o crafting,178 o player

housing e o city building, as economias dependentes da interacção dos jogadores, entre outros

como “farming, court system, casinos, treasure-hunting, pet system, music system with peripheral

instrument support, diplomatic missions e entertainer skills”179(fig.2.79-2.80) Todas estas ferramentas

não fazem o jogo, mas intensificam a imersão e a ligação que estabelecemos, enquanto jogadores pensantes e criativos, com ele. Apesar de limitados, são paralelos às mecânicas que consideramos principais, as dominadas pela narrativa embebida. Esta sensação de alternativa, de dispensável, de opcional, é o que dá mais poder à ferramenta, o que os significa ainda mais. Diferem de eventos programados, indiferentes à personalidade e subjectividade de cada jogador. Não quer dizer que esses eventos não sejam necessários, ou valiosos, quer dizer que precisam de ser complementados com mais presença de quem vive a experiência, e não de quem a programa. O jogo EVE Online é composto por uma enorme Sandbox, onde existem poucos elementos definidores dos eventos programados. (fig.2.81-2.84) O conteúdo sem intervenção criativa do jogador (o chamado de conteúdo

Theme Park) é reduzido ao mínimo. A interacção em EVE Online confere tanto poder ao jogador que

depende inteiramente dele para sobreviver, não existem NPCs a povoar o mundo.

A associação do primeiro termo Sandbox a este último Theme Park tem formalizado a dicotomia principal a marcar o desenvolvimento recente dos mundos online, especialmente os dos MMO onde esta discussão está mais acesa. Sandbox contra Theme Park. A definição deste último é tão evidente quanto a do primeiro. Tem sido o método principal de desenvolvimento dos jogos digitais. É a criação de experiência programada, de conteúdo. Como o nome indica, é o parque de diversões que já existe e para onde vamos procurar diversão. É o conteúdo que encontramos sempre que temos os 3 primeiros tipos de narrativa espacial, sempre que nos é entregue uma história para seguirmos, uma história que não é a nossa.

São compreensíveis as vantagens da aplicação de um sistema Sandbox, especialmente contanto com a velocidade com que os jogos alimentados pelo conteúdo Theme Park perdem a validade. Além da experiência não ser o suficientemente programável e personalizável, é engolida demasiado rápida. Os jogadores têm padrões de vontade diferentes, de ligação diferente com as narrativas, com as mecânicas. Depositam prazer em objectivos diferentes. As empresas não são capazes de produzir conteúdo diferente para um parque de diversões sem antes ter sido totalmente devorado o conteúdo anterior. A articulação de sistema e conteúdo é essencial, não só para validar a experiência única, mas para também garantir um espaço de tempo maior entre as intervenções qualificadas dos criadores no mundo virtual. É arriscado criar um jogo que considere maioritariamente sistemas de interacção e pouco conteúdo programado, como no caso de EVE Online. Este é um caso com uma comunidade muito específica, profundamente cativada pela gestão política e económica do jogo.

178 Simulação, simplificada, de profissões como pedreiro, pescador, moleiro, alfaiate, com a capacidade de criar uma vasta diversidade de itens que influenciam a economia e a jogabilidade do próprio jogo.

fig. 2.85 The Foundry - Interface exterior de criação de recursos para Neverwinter

fig. 2.86 The Foundry - Interface exterior de criação de recursos para Neverwinter fig. 2.87 The Foundry - Interface exterior de criação de recursos para Neverwinter

Depender só do desejo dos jogadores e não de conteúdo, atrai o assombro do risco de fracasso eminente. À parte disto, outra problemática prende-se com a flexibilidade dos sistemas Sandbox. Criar conteúdo é moroso mas sem grandes condicionantes imprevistas. Criar sistema é complicado por que é preciso considerar todos os constrangimentos que deverão existir para satisfazer o jogador, mas não invadir outros sistemas paralelos do jogo, e o sistema central que os liga e articula a todos. Quanto maior liberdade for dada ao jogador mais significada é a experiência, mas também, pela imprevisibilidade, mais complicada é de controlar. Tem que ser achado um equilíbrio, entre a liberdade de uma Sandbox, e a qualidade e controlo de um Theme Park.180

Existem duas estratégias para abordar a procura deste equilíbrio. Uma delas, nos casos em que os sistemas são interiores, conformados pelo jogo, é a de baliza-los, disfarçadamente, de modo a serem revestidos pela ilusão de serem infinitamente flexíveis. Exemplo disto é o caso da versão mais recente de Simcity, um jogo em “god-mode”181 de criação e gestão de cidades. Quanto maior

for a liberdade garantida ao jogador, maior é a dispersão imprevisível dos seus actos. Neste caso especifico, os designers de jogo estabeleceram dois opostos de resultados possíveis. De um lado o limite é uma cidade totalmente sustentável, urbanisticamente bem definida e equilibrada socialmente, politicamente e economicamente. Do outro, o oposto, uma cidade caótica, no limiar de esgotar recursos não-renováveis, aparentemente desgovernada. Não é suposto o jogador atingir nenhum destes limites. Não é previsível, que, pelo menos a maioria, chegue a desenvolver o seu projecto a um destes pontos, mas que fique num intermédio.

A outra estratégia é permitir à comunidade que, no caso de sistemas exteriores ao jogo,182

valide os próprios sistemas que cria, visto ser impossível desviar a equipa que está dedicada ao desenvolvimento de conteúdo qualificado para o processo de avaliação de conteúdo amador. Esta estratégia é abordada pelo mais recente jogo da Cryptic Studios, Neverwinter:183(fig.2.85-2.87) Mesmo

assim, apesar de este método ser já bastante positivo, o departamento criativo de Guild Wars 2 mantém uma busca activa por um sistema que evolua sobre este julgamento de quem joga e crítica, um que se valide a si mesmo, sem precisar de intervenção externa. 184

Está é uma geração que procura e quer poder. A indústria compreende esta tendência. Os jogos

180 “(...)combining elements from both of these world-building approaches has the potential to create some compelling gameplay opportunities.” Edelominius, 2013

181 Terminologia que reflecte a perspectiva superior de controlo sobre os elementos de jogo.

182 Sistemas estes normalmente pautados por uma liberdade de construção mais evasiva, exemplos de mapas e adições à mecânica ou interface.

183 “(...)what’s brilliant about that game is that Cryptic’s Foundry will allow everyone to become a Dungeon Master and create their own campaigns. You’ll have the good and not so good, but the social sharing and voting system will let the cream rise to the top.” Murphy, 2012

184 Como explica Colin Johanson: “I think the key is how do you build a system that lets players generate content unto infinite volumes and you don’t have to review it but it also works and gets in the game.”Johanson, 2013

já não podem ser desenvolvidos e entregues para comercialização como produto acabado. Faz parte do mundo virtual operar-se uma extensão do jogador sobre o criador do jogo. Não existe uma troca de papéis mas uma redefinição. Por um lado a experiência para o jogador é cada vez mais personalizada, continua, dinâmica, viva e significada com intervenção que produz impacto no mundo, como se fizesse parte da criação do próprio mundo. Por outro lado, o trabalho do design de jogo é um loop infinito na criação de sistemas e na análise de como são recebidos pelos jogadores. O jogo é desenvolvido como um serviço e os jogadores fazem parte da equipa. A Valve compreendeu que não só não era capaz de competir, com as comunidades, em quantidade de conteúdo para os seus jogos, como percebeu que trabalhar esse conteúdo começa a fazer parte do entretenimento a par do objectivo lúdico do jogo, como explica Kris Graft: “Whether it’s making games or distributing them,

the focus for Valve going forward is going to be how it can provide the framework for its customers to be entertained, and to make entertainment. Games are goods and services that are part of a large economy.” 185

O modelo económico da comercialização de jogos digitais, por influência colateral, também é alvo de mudança. Os Free-to-Play estão em ascensão. Os designers de jogo estão tão confiantes na forma como vendem o serviço da experiência que permitem a exploração gratuita, capitalizando, através de micro-transações, elementos secundários à jogabilidade que não provocam vantagem aos jogadores que decidem gastar dinheiro. Vendem a possibilidade de personalizar ainda mais a personagem e as mecânicas. Vendem conteúdo de jogo como objectivos secundários, puzzles, níveis alternativos, entre outros pacotes extensores de experiência. Acaba por não interessar se o modelo gratuito atrai muitos jogadores sem dinheiro para gastar e comprar estas pequenas adições, porque o engrossar das comunidades atrai o poder de compra capaz de financiar todo o sistema.186

Cada vez mais os jogos são trabalhos como sistemas sociais, de simbiose entre jogador e criador. De relações em cadeia, de perguntas, respostas, e contra-respostas infinitas. É difícil não fazer o paralelo com o mundo do físico e, consequentemente, com o mundo da arquitectura e a relação entre sociedade e arquitecto. Transcende a conformação espacial. Este paralelismo é focado no poder, e na necessidade de cada um, e no papel do arquitecto como capaz de criar e gerir sistemas (exactamente como o designer de jogo) em que o Homem se sinta mais humano, sinta que tem voz, tem impacto, tem presença, sinta que a experiência é sua. Pensar neste processo para o mundo físico é uma reaproximação à ideologia dos Archigram, de volta ao material. Cada um traz consigo a sua ideia de espaço, de cidade, do seu lugar no espaço, do seu lugar na cidade. Como os designers de jogo procuram compreender qual é o seu papel perante as necessidades e desejos dos jogadores de mais físico, de mais autenticidade, de mais seu, também os arquitectos têm que questionar os conteúdos Theme Park que criam e os sistemas Sandbox que lhes pedem. Como no

185 Graft, 2013

186 “Anyone who plays for free is still contributing to the success of the game.After all, the more active players the more fun paying players will have and the faster word-of-mouth will travel.” Kain, 2013

virtual, têm que questionar os modelos de negócio e a forma como vendem as suas experiências formatadas.