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REALIDADE VIRTUAL E A CONSTRUÇÃO DO VIRTUAL

Se esta dissertação focasse a evolução semântica e significada dos espaços arquitectónicos convencionais, ou se questionasse a carga emocional ligante entre forma e função, então esta desmitificação da dimensão virtual e da sua validade real seria suficiente. No entanto, o contexto tecnológico digital que nos conduziu até aos dias de hoje, além de aumentar o potencial da construção e conformação de matéria física, proporcionou uma nova vertente no processo de actualização da virtualização. A descodificação não se restringe só ao conjunto de símbolos emitidos pela nossa percepção mas abrange os de um novo patamar de codificação. A realidade física é transformada e aumentada, mas é também criada uma nova, virtual, alternativa, onde projectamos sentidos e entramos num novo estado de descodificação. Esta nova realidade não é uma descodificação do que recebemos da realidade física, mas antes uma nova realidade com uma nova virtualidade. Voltamos à definição comum e presente de virtual e realidade virtual, e que, na inocência e ignorância de uma dimensão virtual omnipresente, a sugere como uma concorrente da realidade física a que banalmente chamamos de real. Definimos realidade virtual como a desconexão de uma pessoa “of

its physical atmosphere, substituting it completely for a virtual one, electronically built, where the geometry of the space allows a projection free of obstructions, which has an important effect in the architectural perception.”33 É este virtual, esta versão digital do físico, que questionamos, é esta que

contrapomos à realidade física, que consideramos paralela e concorrente não porque é diferente mas porque quer justificar a nossa existência em si, a representação da nossa existência. É neste virtual que passamos de semiologia do espaço para representação de espaço e progressivamente para espaço em si.

Logicamente, é impossível dissociar a percepção de um espaço da mediação do aparelho sensorial. As noções de limite, de escala, de obstáculo, de passagem, de percurso, de abrigo tectónico,

32 Mies van der Rohe, 1945-51 33 Magermans, s.d., p. 1

dependem de uma mediação corporal, física, táctil, sonora, visual e, até certo ponto, gustativa e olfactiva. Quererá dizer então que a transcendência de um espaço físico não deixa de ser uma perspectiva gráfica, apenas mais descritiva do que uma descodificação verbalizada? Existe espaço que não aquele que nos rodeia num só determinado momento? E o que poderá existir não será apenas e só uma ilusão temporária dos sentidos? Voltamos a entrar numa discussão do campo metafísico que assola, mais uma vez, aumentar a crise de um sujeito já tão confuso. A célebre analogia do grito no meio da floresta, mesmo que seja num espaço físico, ilustra bem estas dúvidas. Aquele grito deixa de existir mesmo que eu não o ouça? Mesmo que não tenha conhecimento dele? O mesmo com qualquer espaço “real”. Só existe se souber que alguém o sentiu, mesmo que não seja eu? É curiosa a forma como o Homem duvida de tantas coisas mas acredita na ilusão que advém da narrativa subjectiva, possivelmente retorcida, de alguém que esteve no meio das pirâmides de Gizé. A versão mais próxima de um comum é aquela que vou escolher, involuntariamente, acreditar. A realidade virtual, apesar da reticência em aceitá-lo, apresenta-nos realidades tão verdadeiras quanto aquelas que de uma forma ou de outra são despejadas para nossa interpretação.

A nossa aproximação a um espaço é uma questão de ilusão e de crença nessa ilusão, Vejo a fotografia de uma pirâmide e escolho acreditar que existe. É um espaço mas não o visitei, mas acredito. Se essa fotografia me der a possibilidade de rodar, aumentar e mudar de cor então acredito mais na existência desse espaço? Não, porque estou ciente do seu estatuto de representação. Não chego a modificar o que acredito ser um espaço que só presente o modificaria, contudo a minha conformação mental daquele espaço já existe. Ao visita-lo, com um amigo que nunca o viu, a dependência da subjectividade dos aparelhos sensoriais diferentes e da bagagem de descodificação que nos acompanha surtirá experiências completamente distintas.

Com as inovações tecnológicas a potenciarem a nossa capacidade de comunicação e intermediação, tudo que nos rodeia é aumentado. Tocamos em mais, vemos mais, experimentamos mais. Contudo, a nossa definição de espaço continua a mesma. Ou não? A certeza desta afirmação dilui-se em dúvida a cada novo passo da tecnologia. Não a de que o espaço que nos rodeia seja mesmo espaço, mas a de que não será o único que nos conforma, o único onde experimentamos, onde existimos, importamos e interagirmos. Não é uma questão abstracta, do virtual analógico, mas um estímulo directo dos sentidos. É uma questão objectiva que, segundo José Pedro Sousa, impacta profundamente a base da arquitectura: “The direct experience of the world that predominated

until today is progressively replaced by a mediated experience through several interfaces. It is in this context that the virtualization of the body and the space happens, emerging, in both cases, a complex and disturbing conceptual depth that affects directly the bases of architecture.”34 É esta

a profundidade da dúvida que contextualiza a pertinência deste tema. Se não existisse espaço único e final numa dimensão virtual digital então a sua relação com a arquitectura não formulava a

problemática valiosa que o é nos dias de hoje, e se enuncia como um ponto-chave na evolução do conceito de arquitectura, e do próprio estado de desenvolvimento do Homem enquanto entidade pensante e executante.

O importante estabelecer neste momento é a hipótese de um espaço de fusão entre actual e virtual, ou o que Ballard e Burroughs denominaram por espaço sintético.35 O que acreditamos poder ser

considerado de espaço transcende a natureza de representação e valida-se na hipótese de ser experimentado como objectivo final e único. A própria arquitectura do espaço físico já parte do estado virtual, da nossa imaginação. A materialização de um espaço depende da nossa capacidade de responder a uma representação mental. Esta resposta diferencia o que é possível e o que não é possível, o que é aplicação ou pura investigação.36 No entanto, a necessidade de construção física

só depende do grau de representação do espaço. A construção física não é mais uma necessidade sem alternativa, sem concorrente. Apesar de discutível, e não o digo com o carácter científico mas apenas com a dúvida provável subjacente, a arquitectura expandiu o seu infinito. O plano físico já não limite validade, já não limita a realidade mas parte de uma realidade, enquanto serve de ponto de partida para uma infinidade de outras.

É inevitável, ao mesmo tempo que respondo a muitas destas dúvidas, não me deixar conduzir pela desconstrução que incentivam. O que significa isto no agora, o que significa no que estudei, no que sempre quis ser, no que acreditava como verdade e agora se sugere como ambíguo? Por mais que o sonambulismo da sociedade geral tenha sido sempre evidente, surgem, a passo acelerado, questões parecidas com estas, tão cruas e incontornáveis que a massificação da máquina computadorizada e todo o burburinho mediático que a engole, ou por ela é engolida, despertam cada vez mais consciências e aclaram o que afinal é escuro, ambíguo, mas também real e válido. As dúvidas sobre o eu, sobre o meu impacto, a minha presença e o seu significado, o atropelo das actualizações de um digital cada vez mais imponente, e de uma rede de comunicação sôfrega de ubiquidade e domínio total sobre a existência, assolam mais do que uma elite académica. A preocupação da vida profissional já não se prende com a inovação mas com a integração quase sempre tardia daquilo que já não é inovação mas quase passado. A preocupação da vida pessoal já não se limita a uma existência mas à possibilidade de muitas, mediadas e transformadas. Subitamente, ou não tão subitamente, as dinâmicas sociais estão em constantes pontos de viragem. A tecnologia que serve as realidades virtuais é sedutora e compensadora da limitação do imediato que nos rodeia. Não tem a ver com ilusão de poder ser diferente mas com a verdade que reveste esta possibilidade. Uma verdade imaterial, mas verdade. Percebe-se que o sonho americano já não está num barco no meio do Atlântico, já não é só um. O virtual, apoiado no digital, trouxe o subúrbio, a casa branca com cerca colorida, trouxe a estabilidade num mundo instável. O infinito trouxe a ideia de finito e tranquilidade.

35 Na perspectiva de Nic Clear: “spatial representations are increasingly becoming spatial propositions.” Sellars, 2008, “An Interview with Nic Clear”, para.8