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O JOGO SÉRIO E A LUDIFICAÇÃO

O jogo digital e o jogo analógico, transformado e aumentado tecnologicamente, não têm sido difundidos apenas pelos motivos lúdicos enquadrados pela indústria do entretenimento. A tecnologia tem ajudado à disseminação de jogo, essencialmente pela popularidade dos jogos digitais e da inundação do mercado pelas pequenas aplicações casuais das redes sociais e dos dispositivos móveis. Porém, o interesse pelo jogo não se extingue no fim último de entreter. As características que reconhecemos na definição de um jogo, a interactividade, enquadrada por um conjunto de regras, a imersão e o ligante emocional, que cativa na prática de uma mecânica e na obtenção de um objectivo, têm sido aplicados às mais diversas áreas desde muito antes da era computadorizada, embora apenas só de forma conceptual e comportamental, distante das potencialidades tecnológicas veiculadas num jogo em meio digital. A primeira formalização do termo “jogo sério” é mencionada no livro Serious Games.204 Clark Abt defendia que jogos com conteúdo social que exigissem uma

decisão e uma postura activa dos jogadores, não só era capaz de servir o propósito de educar pensamento, como a intervenção. Segundo o autor: “Serious games have an explicit and carefully

thought-out educational purpose and are not intended to be played primarily for amusement. This does not mean that serious games are not, or should not be, entertaining.” 205 Com o advento das

tecnologias e dos jogos digitais a consciência da utilidade desta perspectiva tem sido aplicada, com sucesso, aos domínios da política, do exército e do negócio, com variadas finalidades. A acrescentar à educacional, temos a persuasão, a exploração de impacto de políticas, estratégias de gestão económica e a motivação empresarial e industrial.206 No passado recente ainda mais

áreas, e no fundo todas as indústrias que viram nas características de jogo a possibilidade de optimizar actividade e/ou rendimento, apropriaram-se de alguma forma da tecnologia, dos meios, e das técnicas de criação e experiência de jogo. O universo dos negócios e da gestão faz uso dos jogos corporativos; a saúde treina o corpo clínico e incute hábitos aos pacientes; o exército recruta e treina psicologicamente e fisicamente (exemplos dos jogos com finalidade mista America’s Army e Full Spectrum Warrior, ambos encomendados por forças militares); a política veicula os jogos para criticar, divulgar ideologias ou formar a sociedade; os gabinetes sociais suscitam e direccionam a consciência colectiva para valores específicos; entre outras áreas como os media e a publicidade em geral. Esta procura levou à emergência de novos profissionais dedicados ao estudo, desenvolvimento e implementação destes sistemas. Jogo não é só aplicado mas desenvolvido com prioridades diferentes das do objectivo lúdico. Isto conduz a uma diferenciação importante, definida

204 De Clark Abt, publicado em 1970.

205 Abt, 1970, as cited in Serious Game University, 2011, “Defining Serious Games” para. 3

206 “Given the importance of models and simulations in public policy making, and the need to improve their effectiveness, the governmental and non-governmental model and simulation building communities should be striving to explore and build on other existing modelbuilding practices. Some of the most interesting work being done is within the interactive entertainment industry”. Abt, 1970, as cited in Harteveld, 2011, p. 16

pelas escalas de empregabilidade diferentes. O acto de associar e integrar características de jogo207

a qualquer outra tarefa sem a prioridade do entretenimento é denominada de gamification. Um termo transposto recentemente para o português sobre a forma de “ludificação”.

O termo jogo sério pode, mesmo com esta explicação, ser entendido como um oxímoro: “How

can something be both serious and a game? The two seem mutually exclusive.”208 Esta é uma

perspectiva imediata e aparente do termo. Do lado aposto também poderíamos dizer que o jogo é o mesmo, a finalidade é que muda. O entendimento do termo está no intermédio. Um jogo digital como

Guitar Hero é criado e jogado com o intuito de divertir, mas acaba por servir de lubrificante cultural

e social. Jogos de simulação, como o Steel Beasts Professional (simulador de tanque usado por vários exércitos) e X-Plane (simulação de pilotagem civil), têm o objectivo de educar uma mecânica, mas não deixam de cativar pela acção, pela escolha e feedback, e pela distância da consequência física no contexto de uma simulação. A diferenciação depende mais do que a definição do objectivo, depende do contexto em que é jogado e da mensagem que quer transmitir pela mecânica e pela narrativa. O jogo como o conhecemos, geralmente, não têm imbuída nenhuma mensagem, só se preocupa com a experiência, sem moralidades subliminares a não ser as que provocam imersão no mundo ou mundos que conforma. A ludificação normalmente implica uma mensagem. Mecânica, objectivo e narrativa convergem para um impacto físico, para a relação com o físico. O processo instaura métodos de percepção e interacção com a realidade física. A ludificação conduz à interpretação do material pelo olhar formatado pelo jogo.

Peacemaker, Phylo e o modelo de educação ludificado da Khan Academy são exemplos

representativos da diversidade de propósitos na aplicação de jogo, ou características de jogo, a várias actividades. O primeiro exemplo é uma abordagem, da tipologia puzzle, ao conflito Israelita- Palestiniano que procura sensibilizar o jogador para a situação real. O jogo já recebeu diversas menções pelo contributo diplomático e promoção da paz. O segundo, Phylo, é outro puzzle que catalisa a destreza mental e espírito competitivo associada ao jogo digital para, a competir com algoritmos gerados pelo computador, optimizar a descodificação de sequências genéticas. A

Khan Academy é uma escola online, sem fins lucrativos, que procura providenciar “a free world- class education for anyone anywhere.”209 O modelo educacional da academia aproxima-se das

características definidores dos MMORPG, tem conteúdo gerado pelos jogadores, o novo modelo de negócio free-to-play associado aos recentes mundos virtuais e uma progressão de ensino similar à evolução de um avatar no contexto do jogo (com recompensas, skill-trees e personalizações). A expansão de jogo e dos elementos e características usualmente associadas à actividade de jogar

207 A nível motivacional, ao nível das mecânicas competitivas no alcançar de um objectivo e ao nível da condução regrada, sancionada e recompensada.

208 Harteveld, 2011, p. 67 209 Oosterhuis, 2002, p.46

têm, como tudo, pela diversidade de propósitos que servem, apropriações boas e outras claramente más. Os jogos ou tácticas normalmente subservientes à educação, formação e sensibilização de um assunto na sociedade são as aplicações mais positivas. Contudo, no mundo dos negócios e das optimizações da indústria, a ludificação pode alienar qualquer divertimento colateral da actividade, distanciando-se assim de uma associação saudável ao conceito comum de jogo.210 Associar o

jogo a uma manipulação social com o intuito de melhorar resultados produtivos é uma tendência perigosa cada vez mais disseminada pelas grandes empresas. A ludificação neste contexto deturpa as características que, num jogo normal, são usadas para cativar a atenção, proporcionar vício saudável nas mecânicas, na interacção, no contacto com narrativas, na liberdade e consequência das escolhas. Numa ludificação negativa os jogadores jogam por necessidade, numa “imersão forçada” e sempre consciente, a competitividade é exacerbada e a interacção é conduzida por um sistema de regras de risco/recompensa desproporcional. A aproximação ao físico de um jogo sério é um ponto delicado no equilíbrio entre “jogo” e “sério”. Enquanto que num jogo digital a falha no contentamento dos jogadores resulta no desastre comercial da aplicação, no físico a obrigação de jogar e a obrigação de jogar um mau jogo, pela ausência de possibilidade de desprendimento, tem implicações sociais complicadas de destrinçar. Isto é particularmente importante quando é criado um sistema com um intuito e não existe uma manutenção da relação entre esse sistema e o jogador que conforma, originando um desvio no intuito. Este desvio não está só relacionado com o acompanhamento do sistema, mas com uma inflexibilidade estrutural e a incapacidade de, até um certo grau, ser prevista alguma adaptabilidade futura.

A relação com o trabalho arquitectónico começa a tornar-se clara quando estabelecemos uma analogia entre espaço/volume/função/Homem e sistema, sistema de jogo, jogo sério. Jogo está em todo o lado, a arquitectura também.

210 Andrew Sempere releva uma preocupação que deveria ser geral: “I’m afraid that most of the time when companies or organizations look to gamification they are trying to do two things: 1. “Trick” people into doing a boring or unrewarding job cheaply or for free. or 2. Create an excuse for quantitative analysis in order to justify actions they wish to take (hiring and firing people based on scores, for example).” A. Sempere, comunicação pessoal, 2013

3.2

O JOGO (DIGITAL)

NA ARQUITECTURA

Jogo difunde-se por todas a parte, numa e noutra realidade, paralelas e intersectadas. Segundo Jesse Schell o impacto desta difusão esta patente da tendência da economia: “We’re shifting into

an enjoyment-based economy.”211 É compreensível que a redefinição das perspectivas do Homem

seja moldada por um digital formatado pelas leis do jogo: pela interactividade, pelas respostas personalizadas, pelo poder que confere. A sociedade acultura-se de virtual e é conformada pelo que proporciona, pelo que mima quando o físico nega. Significamos mais. O poder é diferente. Existe poder. Existe democracia. O governo não é um, mas muitos. Não entramos em guerras onde o inimigo é apontado e em massa seguimos, mas em revoluções onde descobrimos o nosso próprio caminho, as nossas próprias vontades, o nosso próprio lugar. Não respeitamos só leis mas ajudamos a conforma-las e a liberdade é flexível. Esta perspectiva não se restringe ao escape para um mundo substituto. A ficção não confere uma nova vida, uma nova existência, mas a ilusão de uma, que conscientemente sabemos ser só possível de encarnar no virtual. Deixa-nos, no entanto, com a esperança que de olhos abertos o físico seja mais do que um parque de diversões (com o conteúdo bom e o mau), seja antes uma caixa de areia que conformamos todos juntos, que tem o nosso nome e que luta para nos convencer que tem piada sujar as mãos. O alternativo deixa-nos com a intrínseca ânsia de poder, injecta-nos a necessidade de sentir mais do próprio físico, de personalizar cada experiência, de encarar cada tarefa como uma, de personalizar o nosso espaço, de personalizar tudo o que reveste e medeia a nossa existência.212 Queremos comida orgânica,

televisão HD, e impressão 3D do que desenhamos porque não nos chega só contemplar o que é virtual e pode ser físico. Queremos a autenticidade incomparável do físico. Podemos chamar de realidade e de verdade a algo imaterial, compreendemos que existe, embora intocável, e grande parte da satisfação pessoal pode estar ao nível da emoção inteligível. O que nos dá ou não prazer

211 Schell, 2010, as cited in Graft, 2013

212 “The better we get at virtual experiences, the more important the non-virtual will become, and along the way we will develop an entirely new and curious set of “analogs” that are worth experiencing and understanding.” A. Sempere, comunicação pessoal, 2013

é subjectivo. O que é não subjectivo é a vontade do homem procurar autenticar essa verdade com físico, com emoção que parte dos sentidos. Mesmo que o estado imersivo seja progressivamente profundo, ainda não atingimos o estado de pod do Matrix. Não perdemos a consciência que a imersão, o mergulho, implica um regresso, implica uma garrafa de ar que se esgota e precisa de ser renovada. Por mais que saiba nadar, por mais natural que seja a imersão, neste presente, longe de especulação, de distopia e utopia, longe da era de uma máquina capaz de actuar ao nível da inconsciência, o regresso ao material é garantido, não há avatar que nos prenda e que possa substituir a existência única que temos. Mas pode influencia-la, muito. Pode moldar a perspectiva do que temos e viciar o desejo de voltar. Pode viciar a vontade de estender o que somos no virtual para fora, ou o que somos fora para o virtual. Seja como for, dentro ou fora, somos diferentes. O virtual provoca um paralelismo inconsciente entre o poder que temos no virtual e o que queremos ter no físico, e isso valoriza as duas existências. Sabemos perfeitamente as barreiras imersivas de um jogo digital mas filtramos o poder que nos é dado. Volto ao físico e vejo a arquitectura de forma diferente. Não é forma e função mas sistema que dá poder e experiência única. Volto ao físico e não é o mesmo espaço, não o sinto da mesma forma e a minha profissão não é a mesma. Já não a consigo compreender como dividida entre realidades, mas indivisível na união das duas.

O físico não tem só que estruturar as incursões no virtual mas adaptar-se ao intermédio. Não tem só que constituir a base de imersão exclusiva virtual, mas a base da imersão mediada. O físico tem que estimular o seu lado não para se valorizar só a si mas toda a experiência partilhada. Esta problemática implica a redefinição de arquitectura e de arquitecto, implica a colaboração entre quem trabalha nos dois planos, porque, enquanto o físico é invadido por tecnologia, o virtual é invadido pelo Homem.

A realidade física é cada vez mais um palco de interacção, de experiências programadas e de experiências desenhadas por cada um. Se o virtual precisou de analogias do material para conformar jogo, o material usa agora o virtual para o trazer de volta. Jogar, jogo e jogadores já não são exclusivos do virtual ou da definição comum de uma actividade lúdica do físico. Interagir é jogar porque esperamos a resposta que não prevemos e que depende da nossa pergunta. Jogo é a comunicação que estabelecemos com o que nos rodeia, que vicia e é mecanicamente aliciante. Jogadores somos todos.

O jogo digital propõe uma visão diferente do plano físico. Adquiriu uma importância que jogo analógico não atingiu no plano onde se manifesta, porque no virtual não conforma só uma actividade mas mundos e realidades paralelas. Popularizou o espaço que a arquitectura vanguardista procurava e povoou-a de vida, utilidade, necessidade e gozo. E agora, com a tecnologia difundida, um presente atropelado por futuro, espaço desmaterializado e conceitos divididos, precisamos do que sabe, como sabe e como o usa como ferramenta. Precisamos de compreender como jogo digital invade o físico e redefine jogo analógico, espaço, experiência e existência, como nos empresta as ferramentas e os métodos que os desenvolvem e os ligam ao utilizador, como sugere a articulação de realidades como

se fosse embaixador de um universo estranho, trocasse perspectivas e negociasse intervenções. Florian Schmidt compreende que o que conta no fim, no inevitável regresso do virtual, “is what we can take back from immersion into our real lives. Virtual worlds must not be a replacement for reality, but a contribution to it. Ultimately, play affects our reality.”213 Precisamos dos mundos digitais para

superar a existência dividida, para colmatar o que falhamos. O mundo que não desliga, que não entra em manutenção, este mundo que chamamos de real, de material, do verdadeiro, é o que compreende o jogo mais complexo e importante de todos. Tal como o “amigo virtual” que interpela Kas Oosterhuis também perguntamos: “a game? is life a game?”214