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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 DIALOGANDO COM PAULO FREIRE

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.

Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito (FREIRE,

1987, p. 78-79).

Na compreensão do letramento como prática social, destacamos o nome de Paulo Freire, que na década de 1970 publica A Pedagogia do Oprimido, alcançando visibilidade internacional por propor uma pedagogia baseada na proposta de diálogo e libertação, em oposição à “educação bancária” que desconsidera os saberes e o contexto social e histórico dos educandos. Mesmo não empregando o termo letramento, o modo como Freire entende a alfabetização é muito próximo do que propõem os pioneiros no campo, como veremos mais adiante, eles mesmos reconhecem.

Paulo Freire parte do entendimento do homem como um ser histórico-social, que se constitui na relação com o outro, nas suas interações. E, isso não significa compreender o homem como um ser limitado pelo seu contexto, por suas condições materiais. Ao contrário disso, desde a sua tese de doutorado, Educação e Atualidade Brasileira, defendida em 1959, Freire já deixava claro esse entendimento, ao cunhar o conceito de “dialogação” em oposição ao conceito de “assistencialização”:

A “assistencialização” é o máximo de passividade do homem diante dos acontecimentos que o envolvem. Opõe-se ao conceito nosso de “dialogação”, que não coincide com o de “parlamentarização” do professor Guerreiro Ramos. Enquanto na “assistencialização” o homem queda mudo e quieto, na “dialogação”

ou na “parlamentalização” o homem rejeita posições quietistas e se faz participante. Interferente. O assistencialismo é uma dimensão da “assistencialização” (FREIRE, 2003, p. 28).

Relatando sua experiência com operários ligados ao Sesi, Freire afirma que nunca ditara uma solução para resolver qualquer situação problema, que o caminho sempre foi o diálogo, por meio do qual se conhecia e se discutia a realidade. Essas discussões ocorriam em assembleias com os líderes dos operários e se davam de forma verdadeiramente democráticas. Ele ressalta: “[...]muitas vezes saímos vencidos, em alguns dos pontos que defendíamos. Não só vencidos, mas, em alguns casos, convencidos” (FREIRE, 2003, p. 23).

Na Pedagogia do oprimido, obra publicada pela primeira vez em 1970, Paulo Freire reflete acerca da educação “bancária”, na qual não existe o diálogo, por isso mesmo, é antidialógica, estando a serviço do sistema opressor. Uma educação que engendra uma falsa visão do homem, na qual haveria uma dicotomia na relação homem-mundo, como se os homens estivessem simplesmente no mundo e não com o mundo e com os outros. Em oposição a essa ideia, ele aprofunda o conceito:

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.

(...)

Se é dizendo a palavra com que, “pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens.

Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes (FREIRE, 1987, p. 78-79).

No diálogo se concentra a possibilidade de que o homem se reconheça como um ser com capacidade de interagir com o mundo e com os outros. Portanto, a educação libertadora tem como essência a dialogicidade.

A perspectiva do diálogo como elemento indispensável à formação humana, bem como a maioria de seus ensinamentos, acompanha a vida e a obra de Paulo Freire. Em Pedagogia da autonomia, dentre outras passagens, o autor reforça esse pensamento ao falar sobre a escuta:

Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que em certas condições, precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. Até quando, necessariamente, fala contra posições ou concepções do outro, fala com ele como sujeito da escuta de sua fala crítica e não como objeto de seu discurso (FREIRE, 1996, p.113).

Só podemos dialogar quando há escuta, quando nos dispomos a compreender o ponto de vista do outro. Acreditamos que essa postura é fundamental em qualquer relação humana, mas, sobretudo, ela precisa fazer parte da relação professor-aluno e pesquisador-pesquisado, especialmente quando adotamos a etnografia como base para a pesquisa. Com esta concepção de diálogo/escuta, com o desejo de compreender, não de julgar, é que fazemos nossa pesquisa. No decorrer de nossas leituras, observamos movimentos de aproximações sendo estabelecidas entre Paulo Freire e os Novos Estudos do Letramento. Embora o autor não tenha falado em “letramento”, do ponto de vista teórico, suas obras aproximam-se do que propõem os estudiosos desse campo e podem se constituir em um forte apoio para este estudo.

As pesquisadoras Bartlett e Macedo (2015) apresentam em um ensaio aproximações da concepção de alfabetização freireana e o modelo de letramento ideológico proposto pelos Novos Estudos do Letramento (NEL) representado por Street, (1984, 2003); Barton e Hamilton (2000); Barton (2000) e Gee (1995). As autoras explicitam pontos de convergência dos pensamentos, uma vez que, para Freire, a escolarização não é neutra, mas um processo político que exige das instituições o conhecimento do aluno e o respeito pelos seus saberes e pela sua cultura, tendo entre seus princípios o elo crítico entre a reflexão e a ação e o diálogo como uma importante ferramenta na mediação dos saberes. Freire defendeu a inseparabilidade entre a leitura da palavra e a leitura do mundo, contribuindo, assim, para uma abordagem social da alfabetização11 e do letramento. Na esteira desse pensamento, o modelo ideológico de letramento, proposto por Street (1984), concebe o letramento como uma prática social e cultural, permeada pelas relações de poder emanadas das estruturas sociais.

O reconhecimento acerca das contribuições de Paulo Freire e de outros estudiosos para a perspectiva dos Novos Estudos do Letramento também é destacado por Lankshear (1999). Discorrendo sobre as contribuições transdisciplinares ao estudo sociocultural da linguagem e do letramento na grande divisão, o autor relaciona uma série de movimentos que teriam alavancado a “virada social”, chegando aos Novos Estudos do Letramento, entre eles estão a etnometodologia, a sociolinguística interacional, a etnografia da comunicação, a psicologia sócio-histórica baseada no trabalho de Vygotsky e seus pares, os estudos de Bakhtin e o trabalho de Paulo Freire. Acerca deste último, ele comenta:

11

No Brasil a teoria de Paulo Freire emprega o termo “alfabetização”, entretanto o que ela postula está tão próximo do campo do letramento que a tradução de sua obra para a língua inglesa como uma teoria do letramento crítico: critical literacy.

Besides these ‘social turn movement’ influences, other notable early lines of influence on the emerging sociocultural paradigm included the work of Paulo Freire in Brazil and other Third World settings from the 1960s, and work done in the ‘new’ sociology of education during the 1970s.

Freire’s ‘pedagogy of the oppressed’ (Freire 1972, 1973, 1974) explicitly denounced psychologistic-technicist reductions of literacy, insisting instead that ‘Word’ and ‘World’ are dialectically linked, and that education for liberation involved relating Word and World within transformative cultural praxis. Freire asserted the impossibility of literacy operating outside of social practice and, consequently, outside processes of creating and sustaining or re-creating social worlds. For Freire, the crucial issues concerned the kinds of social worlds humans create in and through their language-mediated practices, the interests promoted and subverted therein, and the historical option facing education of serving as either an instrument of liberation or of oppression (LANKSHEAR, 1999, s.p12).

Lankshear destaca a importância de Paulo Freire, especialmente no que tange à Pedagogia do Oprimido, por ser uma obra que denuncia o reducionismo das tendências psicologistas-tecnicista da alfabetização, defende que “palavra” e “mundo” estão dialeticamente ligados e que a educação para a libertação não pode se dar fora das práticas sociais. Street (2014, p. 36), mesmo tendo algumas ressalvas ao chamado “método Paulo Freire”, também admite que ele foi o militante mais influente e radical do letramento.

Decorrente da compreensão do homem como um ser histórico, que se constitui na relação com o outro, temos todo um modo de entendimento da vida, da educação, da concepção de língua/linguagem e do ensino sintonizados. Implicando na consciência de que não existe neutralidade na educação como querem impor os defensores da Escola Sem Partido13, mas que toda educação é um ato político e pedagógico.

Por trás da aparente neutralidade que se quer impor, existe a ideologia da domesticação e da alienação dos sujeitos para a manutenção do sistema repressor. A perseguição aos que têm essa consciência é antiga. Gadotti (2008) registra sua experiência como educador, que durante seu trabalho de andança pedagógica, muitas vezes, chegava a certas faculdades a convite dos alunos e era considerado persona non grata pelos dirigentes dessas instituições que tentavam desqualificar a atividade desenvolvida, alegando que ele era mais um político do que um pedagogo. Por razões semelhantes, por se empenhar na educação dos pobres, Paulo Freire sofreu a perseguição do regime militar no Brasil (1964-1985), foi preso e forçado ao exílio.

12 Embora tenhamos as informações acerca da referência da obra impressa, nesta consulta, utilizamos a versão

disponível em: http://everydayliteracies.net/files/literacystudies.html, a qual não se encontra paginada.

13 Projeto de lei 193/2016 com o objetivo de por fim à escola democrática, o projeto tramitou no congresso até

A resistência se torna ainda mais necessária se considerarmos que o presidente, eleito em 2018, declarou no seu plano de governo que é preciso expurgar Paulo Freire da Educação, ferindo o artigo 206 da própria Constituição Federal, no que tange ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, colocando-nos diante de mais uma ameaça à democracia. É na Escola Democrática que queremos continuar dialogando com nossos alunos sobre o direito de dizerem a sua palavra. Não é à toa que, dentre tantos trechos nos quais Freire fala sobre o diálogo, elegemos o que está posto na epígrafe desta seção para expressar o nosso dizer.

É evidente, também, que isso faz toda a diferença nos rumos da educação e, consequentemente, no modo como fazemos nossas pesquisas. Em relação às pesquisas e às práticas escolares que envolvem o ensino de língua, a interação pela linguagem, que se constrói no diálogo é o ponto central da questão.