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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.2 LETRAMENTOS: PERSPECTIVAS E IMPLICAÇÕES

3.2.2 Os Novos Estudos do Letramento

Os Novos Estudos do Letramento, expressão traduzida do Inglês New Literacy Studies, doravante NEL, designam estudos sobre o letramento desenvolvidos a partir da perspectiva antropológica e etnográfica da pesquisa. Esses estudos têm influenciado trabalhos desenvolvidos na academia brasileira por pesquisadores que compreendem as práticas de leitura e escrita para além da aquisição de um sistema de escrita em uma dada língua. Pesquisadores que compreendem que questões ideológicas repousam nessas práticas e que, portanto, elas devem se configurar como possibilidades de reflexão que trazem implicações para políticas educacionais.

No contexto internacional, diversos estudiosos têm se dedicado à análise do fenômeno do letramento a partir dessa perspectiva. Brian Street é considerado um expoente nesse campo da pesquisa. Seu livro Literacy in Theory and Practice, publicado em 1984, é referência conceitual na área. Outros nomes são importantes no avanço desses estudos, mas além Street, vamos destacar inicialmente os de Shirley Heath, David Barton e Mary Hamilton por trazerem conceitos relevantes para nossa pesquisa.

Brian Street, professor do King’s College, esteve no Brasil em 2007 e proferiu a conferência intitulada Os novos estudos sobre o letramento: histórico e perspectivas. Na ocasião, ele explicitou sua incursão no campo como pesquisador dos NSL e destacou alguns conceitos que são essenciais para o campo e, com efeito, para a pesquisa que realizarei. Essa conferência, assim como a de Magda Soares, foi publicada em 2010, no livro Cultura escrita e letramento16, organizado por Marildes Marinho e Gilcinei Teodoro Carvalho.

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De modo geral, a obra traz muitas contribuições para o campo no Brasil, por isso será referência em diversos momentos em nossa pesquisa e, especificamente, recorro aos conceitos letramento, evento, práticas de

Street (2010) esclarece que não há uma única forma de letramento, relatando suas experiências no Irã e em outros lugares, ele afirma que observou diferenças consideráveis entre o letramento comercial, letramento do Alcorão, letramento escolar. Ele ressalta que: “as pessoas podem estar envolvidas em uma forma e não na outra, suas identidades podem ser diferentes, suas habilidades podem ser diferentes, seus envolvimentos em relações sociais podem ser diferentes” (STREET, 2010, p. 37).

Tal percepção implica no entendimento de que, muitas vezes, as decisões tomadas no âmbito das políticas que envolvem programas de alfabetização em larga escala pretendem-se autônomas e desconsideram peculiaridades e características próprias de determinados lugares. A crítica feita pelo autor é reportada a um modelo hegemônico de letramento, no qual subjaz a ideia de que existe uma neutralidade no processo de aquisição do sistema de escrita, independentemente do contexto no qual ela aconteça, como se existisse uma forma universal de ser letrado, bastando-se para tanto a aplicação de um conjunto de técnicas. Para o pesquisador, esse modelo que ele chama de autônomo, está vinculado ao estabelecimento de categorias classificatórias que distinguem pessoas letradas das não letradas.

Em oposição ao modelo autônomo, Street (2010) propõe um modelo ideológico no qual o letramento é reconhecido dentro de uma dimensão ideológica, envolta em relações de poder ao mesmo tempo em que é permeada de significados e práticas das culturas próprias dos locais onde elas acontecem, indo além das perspectivas cognitivistas de aquisição da cultura letrada. Entretanto, precisamos considerar que o modelo autônomo também é portador de ideologias que, nas relações sociais de poder, representam valores e interesses ideológicos a serviço das formas reprodutoras da sociedade para manutenção do poder dominante.

Diante do exposto, é evidente que pode se compreender o porquê de o termo letramento ser empregado também no plural letramentos no campo dos debates sobre o assunto. É do interior desse campo que Street (2010) traz outros dois conceitos, eventos de letramento e práticas de letramento, importantes para as pesquisas na área. O primeiro, Street (2010) afirma ter sido cunhado pela norte americana Shirley Heath, tendo como base a expressão eventos de fala na área da Linguística Aplicada e, o segundo é do próprio Street:

Para Heath, o termo “eventos de letramento” se refere a “qualquer ocasião em um trecho de escrita é essencial à natureza das interações dos participantes e a seus letramento, explicitados por Street nesse texto e também no livro Letramentos sociais: abordagens críticas do

letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação, pela possibilidade de poder citar o autor na

processos interpretativos” (HEATH, 1982)17. O conceito de “práticas de letramento”

se coloca num nível mais alto de abstração e se refere igualmente ao comportamento e as conceitualizações sociais e culturais que conferem sentido aos usos da leitura e/ou da escrita. As práticas de letramento incorporam não só “eventos de letramento”, como ocasiões empíricas às quais o letramento é essencial, mas também modelos populares desses eventos e as preocupações ideológicas que os sustentam (STREET, 2014, p. 18).

Na esteira dessas definições, Barton e Hamilton (2000) também adotam os conceitos de evento e de prática de letramento em seus estudos. Atribuindo a ampliação do conceito de evento à Shirley Heath, eles esclarecem que os eventos podem ser observáveis, surgem no interior das práticas, sendo moldados por elas. Focalizando a linguagem oral, Barton e Hamilton (2000, p. 8-9) fazem um paralelo entre sociolinguistas como Jay e Lemke e Bahktin, afirmando que os eventos de interação verbal, mais do que as propriedades linguísticas formais de textos isolados é que deveriam ser observados. Os autores também estabelecem a relação entre os eventos de letramento e os textos. Estes são componentes fundamentais nos eventos de letramento e o estudo do letramento é, em parte, o estudo do texto e de como eles são produzidos e usados: “Texts are a crucial part of literacy events and the study of literacy is partly a study of texts and how they are produced and used” (BARTON; HAMILTON, 2000, p. 9).

Para eles, o conceito de prática de letramento, como uma prática social, ultrapassa o senso comum de que seria o que as pessoas fazem com a escrita, what people do with literacy, pois envolve aspectos do comportamento humano que nem sempre podem ser objetivamente observáveis, mas que permeiam os eventos, tais como valores, atitudes, sentimentos, relações pessoais. Esses aspectos estão relacionados a ideologias, identidades sociais, às relações de poder.

A ideia de letramentos que explicitamos em Street (2010), também é compartilhada pelos autores ao afirmarem que existem diferentes letramentos que são associados aos diferentes domínios da vida, por exemplo, a casa, a escola, o local de trabalho. As atividades que acontecem no interior desses domínios são configurações particulares das práticas de letramento, nas quais os participantes atuam em vários eventos. De acordo com Barton e Hamilton (2000), as práticas de letramento são modeladas por instituições sociais, como a

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O trecho de Heath (1982) explicitado por Street na citação acima se encontra no artigo intitulado What no

Bedtime Story Means: Narrative Skills at Home and School, publicado em 1982 e na versão espanhola El valor de la lectura de cuentos infantiles a la hora de dormir: habilidades narrativas en el hogar y en la escuela,

publicado em 2004. Nesse artigo a pesquisadora relata, de forma sintética, resultados de um estudo etnográfico por ela desenvolvido.

escola, por exemplo, que contribuem para dar suporte às práticas de letramentos dominantes, uma vez que, alguns são mais visíveis e influentes do que outros. Eles chamam a atenção para o fato de que os estudos sobre as práticas de letramento devem situar as atividades de leitura e de escrita em contextos mais amplos, visto que as pessoas se apropriam dos textos com objetivos próprios e em contextos históricos situados, podendo ser modificadas conforme a época e a sociedade.

Embora o objetivo principal dessa pesquisa não esteja relacionado à investigação de como os alunos se apropriam dos textos literários, essa apropriação depende, entre outros fatores, das relações de disponibilidade e acesso aos materiais escritos. Kalman (2004) faz uma reconceitualização dessas noções e afirma que:

Disponibilidad denota la presencia física de los materiales impresos y la

infraestructura para su distribuición (biblioteca, puntos de venta de libros, revistas, diarios, servicios de correo, etcétera) mientras que acceso refiere las oportunidades para participar en eventos de lengua escrita, situaciones en las cuales el sujeto se posiciona vis-à-vis con otros lectores y escritores, así como a las oportunidades y las modalidades para aprender a leer y escribir [...] (KALMAN, 2004, p. 26).

Segundo a autora, a diferença desses conceitos surgiu durante sua pesquisa de campo em Mixquic, pois a presença dos livros em uma biblioteca, por si só, não promovem a leitura. Esses conceitos nos auxiliam a olhar os materiais disponíveis e aqueles que os alunos tiveram acesso nas escolas pesquisadas.

É pensando nessas e em outras questões que giram em torno dos estudos sobre o letramento que queremos refletir em nossa pesquisa acerca das práticas do letramento literário no contexto escolar.