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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.3 A LITERATURA E A ESCOLARIZAÇÃO

3.3.2 Literatura: conceito, práticas e letramento literário

Do mesmo modo que o conceito de literatura de tempos em tempos e por diferentes razões se altera, como afirma Eagleton (2001), as práticas sociais em torno da leitura e, consequentemente, da leitura literária, também são alteradas. Para demonstrar o quanto o conceito de literatura é cambiante, Dezotti (2004) toma o exemplo dado por Lajolo (2001), no qual a autora afirma que se Willian Shakespeare, à sua época, fosse apresentado a professores de literatura inglesa como um autor de literatura, certamente ele seria repudiado. Retomamos agora esse exemplo, para tentar abordar duas questões. Uma em relação ao conceito de literatura e outra em relação às práticas da leitura literária, especialmente às práticas realizadas no contexto escolar.

No que concerne à primeira, mesmo concordando que o conceito de literatura é flexível e historicamente situado, a partir do momento em que nos propomos a fazer uma pesquisa sobre as práticas de letramento construídas com base na leitura literária, temos que esclarecer o que está sendo tomado por literatura neste estudo. Candido (2004) afirma que as acepções de literatura variam conforme as línguas e que em português:

[...] a literatura é o conjunto de produções feitas com base na criação de um estilo que é finalidade de si mesmo e não instrumento para demonstração ou exposição. Mais restritamente, é o conjunto de obras em estilo literário que manifestam o intuito de criar um objeto expressivo, fictício na maior parte (CANDIDO, 2004, p. 18).

Concordando com o princípio de que a literatura é esse conjunto de produções ficcionais criadas em um estilo que é fim de si mesmo é que, nesta tese, entendemos literatura como ...todas as criações de toque poético ficcional ou dramático... folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações (CANDIDO, 1989, p. 112), tomando como base a definição cunhada pelo autor. Conforme explicitamos na seção anterior, para Candido, a literatura é um bem incompressível, e sua a função primeira é satisfazer a necessidade de ficção e fantasia que todo ser humano, criança ou adulto, possui (CANDIDO, 1972).

No caso da criança, a literatura escrita para ela, é também chamada de literatura infantil. Apesar de haver controvérsias no que a define (HUNT, 2010), assim como Cademartori (1986), entendemos que sua linguagem, seus temas e os pontos de vista nela engendrados devem interessar a esse público específico, sem que o adjetivo “infantil”

descaracterize a arte. E, consideramos que, assim como o substantivo, o conceito ao qual se refere o seu adjetivo, também está condicionado a contextos sociais e temporais.

No que diz respeito à segunda questão, as práticas sociais de leitura literária, analogamente ao que ocorre com os conceitos de literatura, elas também se modificam. Nos salões da corte portuguesa do Século XIV, declamavam-se cantigas líricas, nas tabernas, cantigas satíricas; nas fábricas de charutos cubanos e depois nas americanas eram realizadas leituras públicas; o gosto burguês elegeu o romance, os folhetins para serem lidos silenciosamente; enfim, a prática social da leitura literária foi vivenciada em muitos momentos, de diferentes formas. Mas, e em relação ao processo de sua escolarização? Houve mudanças?

Lajolo (2001) ressalta que, no Colégio Pedro II, no século XIX, as práticas consideradas como literatura incluíam sermões, orações e poemas que eram analisados e decorados, para que os alunos pudessem imitar seu estilo. Atualmente, os poemas permanecem dentro do rol de textos considerados literários e presentes no processo de escolarização. Quanto aos sermões, os únicos reconhecidos pela crítica como textos literários e que continuam a fazer parte do currículo do Ensino Médio, são os Sermões do Padre Antônio Vieira, escritos no Século XVII, inseridos nos manuais didáticos muito mais a partir da perspectiva historiográfica do que de qualquer outra. E, as orações, embora contrariando a legislação vigente, que define uma educação laica, continuam presentes em muitas escolas, mas não como textos literários, portanto não são consideradas como prática de leitura literária.

Outra autora que contribui para que compreendamos como eram as práticas escolares de leitura literária é Lígia Chiappini Leite que, na década de 1986, publicou na revista Linha D’Água um artigo intitulado: Gramática e literatura: desencontros e esperanças, no qual começa discorrendo sobre sua experiência escolar e relata que as literaturas brasileira e portuguesa, assim como a língua portuguesa, compunham a disciplina denominada Português. Ela afirma que nas aulas, os alunos liam, redigiam, eram informados acerca dos conhecimentos literários, (especialmente da história da literatura, da poética e da retórica tradicionais) e da língua (gramática normativa). E, embora as aulas fossem ministradas por um único professor, língua e literatura eram campos separados e didaticamente distribuídos em horários diferentes. Com a promulgação da lei 5692/71, a separação se acentuou. A antiga disciplina de Português passa a ser Comunicação e Expressão e no Primeiro Grau, não inclui a literatura. Essa compunha somente o programa do Segundo Grau.

A aproximação de língua e literatura ocorria quando o professor trazia exemplos da literatura para ilustrar a aula de gramática:

Às vezes, pretendendo tornar a aula de gramática mais interessante, (e duplamente útil, ilustrando seus alunos) o professor trazia (ou traz) um texto literário para nele exercitar a busca de orações subordinadas ou de substantivos abstratos. Também era (e é) frequente a utilização de enunciados pescados lá e cá em contos, romances ou poemas de escritores consagrados para transformá-los, como a própria gramática o faz, em norma, ou ao contrário, em exemplos de exceções permitidas, porque provindas da pena de uma autoridade (o autor famoso) (LEITE, 200121, p. 18) Leite critica essa separação e as formas de ensino, uma vez que a matéria-prima da literatura é a linguagem, estudar literatura também é estudar língua e vice-versa. A autora chama a atenção para as concepções de língua e de literatura que fundamentam tanto a separação de campos de estudo, quanto às práticas exercidas em sala de aula. Fazendo uma síntese, ela apresenta cinco acepções da palavra:

1. A literatura como instituição nacional, como patrimônio cultural. 2. A literatura como sistema de obras, autores e público.

3. A literatura como disciplina escolar que se confunde com a história literária. 4. Cada texto consagrado pela crítica como sendo literário.

5. Qualquer texto, mesmo não consagrado, com intenção literária, visível num trabalho da linguagem e da imaginação, ou simplesmente esse trabalho como tal (LEITE, 2001, p. 21).

A primeira, a terceira e a quarta estariam relacionadas, tradicionalmente, à forma como a escola a utiliza, ou seja, às práticas escolares que incorporam uma visão elitista dos textos, exemplares ilustrativos a serviço da reprodução didática dos valores dominantes. A segunda acepção não é desprezada pela autora, mas não seria objeto de estudos nos primeiros anos, período em que o mais importante é exercitar a leitura e a escrita para que a reflexão histórica e teórica seja feita a partir da vivência e do processo que os gera que é o trabalho criativo com a linguagem. Nesse sentido, ela explicita que a quinta acepção, o trabalho com a linguagem, permite a integração da língua e da literatura desde a alfabetização ou mesmo antes dela, pelo gosto de ouvir e contar histórias, de brincar com as letras e os sons, de inventar textos.

Dentro dessa acepção mais ampla de literatura, a autora pensa em possibilidades educacionais diferentes da proposta pelos ideais da escola burguesa. Leite ressalta que uma educação crítica e transformadora da sociedade que a sustenta, também pressupõe uma concepção de linguagem e de língua que transcenda aquela que tradicionalmente predominou na escola, de instrumento, cujo domínio técnico garantiria a comunicação verbal oral e escrita. Associando língua, literatura e ensino a autora completa:

Na medida que a escola concebe o ensino da língua como simples sistema de normas, conjunto de regras gramaticais, visando a produção correta do enunciado

21

Estamos utilizando uma segunda publicação do artigo que originariamente foi publicado na revista Linha D’Água (1986). Está consta no livro O texto na sala de aula (cf. Referências).

comunicativo culto, lança mão de uma concepção de linguagem como máscara do pensamento, que é preciso moldar, domar para, policiando-a, dominá-la, fugindo ao risco permanente da subversão criativa, ao risco do predicar como ato de invenção e liberdade. Por isso, na escola, os alunos não escrevem livremente, fazem redações, segundo determinados moldes; por isso não leem livremente, mas resumem, ficham, classificam personagens, rotulam obras e buscam fixar a sua riqueza numa

mensagem definida (LEITE, 2001, p. 24).

E, traz alguns questionamentos acerca de como seria se a escola não dicotomizasse língua e literatura numa proposta que ela chama de linguagem como trabalho não alienado, superando as concepções tradicionais que marcaram as práticas escolares. Entre esses questionamentos, ela indaga:

[...] até que ponto também se a literatura para de ser mero veículo de conteúdos gramaticais ou outros e a língua deixa de ser mero sistema de normas a decorar, e se integram dialeticamente numa prática de alunos-sujeitos do dizer e do pensar, o que está superando é toda uma concepção do saber como soma de informações a consumir, um conhecimento sedimentado no reproduzir sem inventar, e está se afirmando o saber como um trabalho do pensamento? (LEITE, 2001, p. 24-25).

Embora os textos de Lajolo (2001) e Leite (2001) não tenham o objetivo de analisar as práticas de leitura literária nas escolas brasileiras, ambos possibilitam reflexões acerca delas. As autoras não foram as únicas a se preocupar com os problemas decorrentes da relação escola e ensino de literatura.

Zappone (2007) se ocupa dessa discussão explicitamente. Em um artigo no qual traz os conceitos de letramento e dos modelos autônomo e ideológico propostos por Street como práticas sociais que usam a escrita, a autora procura relacioná-los ao uso da escrita literária. O texto propõe uma apropriação dos conceitos de Street para compreender o ensino de literatura. Partindo do conceito de letramento como conjunto de práticas sociais que utilizam a escrita como sistema simbólico empregado dentro de padrões tecnológicos em contextos específicos e para determinados fins, a autora afirma que a apropriação do conceito ao campo dos estudos literários pode ser pertinente, desde que trabalhada com a escrita dentro deste conceito e compreendendo as especificidades do texto literário, sendo que a mais marcante delas é o caráter da ficcionalidade.

No artigo, Zaponne (2007) lança mão de informações trazidas por Razzini (2000) para mostrar os modos de leitura no período compreendido entre 1838 a 1957, por meio de trechos do programa de ensino do Colégio Pedro II. Em relação aos exemplos explicitados e discutidos ela afirma que:

A partir dessas indicações dos programas do Colégio Pedro II, a leitura literária era reduzida a uma estratégia de ensino de língua (gramática), e como modelo de escrita. As principais práticas de leitura dos textos literários observadas eram a leitura de excertos, entendendo-se por leitura a oralização dos textos, com vistas a uma boa

recitação dos mesmos, do que se pode depreender a preocupação com uma leitura mecânica, que visava a reprodução ou decodificação do código, sem se importar com o sentido do mesmo. Assim, evidencia-se a prevalência de um modelo de letramento e de letramento literário autônomo, pois centrado na autonomia do texto, considerando sua compreensão ou a construção de seus sentidos como uma simples conseqüência da descodificação das palavras do texto (ZAPPONE, 2007, p.57).

Ainda tendo como argumento que a entrada do ensino literário na escola brasileira se deu por meio do modelo autônomo, a autora apresenta trechos da Reforma de ensino, proposta por Gustavo Capanema, em 1942. E, também comenta as alterações denominativas da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) 5692/71 que, conforme já explicitara Leite (2001), não geraram mudanças significativas para o ensino.

No contexto, da forma em que a literatura foi escolarizada, Zaponne (2007) critica a desconsideração do universo do aluno, pois no modelo proposto, os sentidos são preexistentes ao ato da leitura, são dados pelo texto e pelas entidades autorizadas: os críticos, a historiografia, o professor ou o livro didático que disseminam valores e práticas da sociedade e da literatura burguesa. Ela acredita que, por essa razão, a leitura de contos, romances ou poemas na escola tenha se tornado sinônimo de atividade didática, geralmente enfadonha, uma vez que os modos pelos quais os sentidos são atribuídos aos textos não são explicitados aos alunos e eles também não são convidados a interagir com os textos, indagando seus sentidos. Tais práticas, muitas vezes, terminam por afastar o aluno do universo da literatura.

Os exemplos resgatados por Zappone (2007) corroboram para o entendimento das práticas de ensino no campo da literatura no Brasil conforme tentávamos demonstrar com as discussões, a partir de Lajolo (2001) e Leite (2001). Além disso, ela advoga em favor da aplicação do conceito de letramento partindo do viés proposto por Street (2010) para o campo literário, ou seja, propõe um conceito de letramento literário.

Entretanto, em relação a essa proposição, é necessário que nos lembremos de dois pontos. Primeiro que a expressão já vem sendo empregada no Brasil há algum tempo. Em 1997, Graça Paulino emprega pela primeira vez o termo “letramento literário” no texto intitulado “Funções e disfunções do livro para crianças”, publicado em O Jogo do livro infantil. E, em 1999, o termo é apresentado à Associação Nacional de Pesquisa em Pós- Graduação (ANPED). Paulino (2001) define a expressão da seguinte forma:

Usamos hoje a expressão letramento literário para designar parte do letramento como um todo, fato social caracterizado por Magda Soares como inserção do sujeito no universo da escrita, através de práticas de recepção/produção dos diversos tipos de textos escritos que circulam em sociedades letradas como a nossa.

Sendo um desses tipos de textos o literário, relacionado ao trabalho estético da língua, à proposta de pacto ficcional e à recepção não-pragmática, um cidadão literariamente letrado seria aquele que cultivasse e assumisse como parte de sua vida

a leitura desses textos, preservando seu caráter estético, aceitando o pacto proposto e resgatando objetivos culturais em sentido mais amplo, e não objetivos funcionais ou imediatos para seu ato de ler (PAULINO, 2001, p. 117-118).

Como podemos perceber, a autora define o letramento literário como uma prática social que cultiva e assume a leitura literária, preservando seu caráter estético e o pacto proposto com o universo cultural, ficcional acima de objetivos funcionais imediatos ao ato da leitura. Embora Paulino (2001) não estabeleça a relação direta com os conceitos de Street (2010), como propõe Zappone (2007), ela apresenta um conceito de leitura como prática social, e no caso da leitura literária, é aquela que compreende o caráter estético, ficcional e não pragmático. Nesse sentido, a autora parece aproximar-se do entendimento da leitura literária, conceito proposto pelo modelo ideológico. Com isso, ela também aponta a necessidade de mudança de comportamento no ensino de literatura que seria proporcionada pelo letramento literário:

Eis, pois, a evidência de que, para romper-se um ciclo de submissão, repetição, padronização, contrário ao letramento literário, é preciso manter viva a discussão sobre valores estéticos e suas funções, restabelecendo, ao mesmo tempo, a consciência do professor, ou do orientador, mediadores escolares da leitura, e, afinal, dois dos principais responsáveis pelas disfunções do livro para crianças. (PAULINO, 2001, p.118).

O ciclo de submissão, repetição e padronização é o que parece ser caracterizado por Zappone (2007) como a via de entrada da literatura na escola perspectiva do modelo autônomo, sendo necessário romper com “práticas tradicionais”. Nesse sentido, o conceito de letramento literário cunhado por Paulino, parece ter se fixado no campo da educação, indicando certa idealização do trabalho com o texto literário no contexto escolar. Nessa vertente, caminham outros pesquisadores, como Cosson (2011), ao reiterar que:

[...] devemos compreender que o letramento literário é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola. A questão a ser enfrentada não é se a escola deve ou não escolarizar a literatura, como bem nos alerta Magda Soares, mas sim como fazer essa escolarização sem descaracterizá-la, sem transformá-la em um simulacro de si mesma que mais nega do que confirma seu poder de humanização (COSSON, 2011, p. 23).

Se pensarmos no letramento, aliado ao conceito de literatura, proposto por Candido (1989), estamos considerando que o ensino da literatura envolve um conjunto de práticas que promovem a interação entre o leitor, o escritor e o texto e que, de fato quando isso ocorre, temos a perspectiva desejada pelos estudiosos do letramento literário, como Paulino (2001) e Cosson (2011).

Mas, por outro lado, conforme lembra Street (2010, p. 35), se “[...] em Etnografia paramos de julgar a priori e buscamos uma atitude mais investigativa”, será que podemos negar ou julgar que quando as práticas, que se realizam com o texto literário dentro da escola, não ocorrem na perspectiva proposta por Paulino, essas deixam de ser consideradas práticas de letramento literário, a exemplo daquelas que Zaponne (2007) associa ao modelo autônomo?

Apesar de sabermos que, muitas vezes, elas servem para afastar o leitor da leitura, historicamente como demonstramos, elas estiveram presentes na cultura escolar de nossa sociedade.

Mesmo concordando com os ideais propostos por Paulino (2001) acerca do que seria um cidadão literariamente letrado, tomamos o termo letramento literário num sentido mais amplo, tentando com o nosso olhar de pesquisadora não determinar, a priori, e nem julgar como deveriam ser as práticas escolares adequadas que objetivam formar esse cidadão-leitor- ideal. Isso significa que procuramos analisar as práticas de letramento literário que ocorrem no contexto escolar. Não somente como um conjunto de habilidades que os alunos deveriam alcançar para serem considerados literariamente letrados fora desse contexto, procurando compreendê-las como práticas que podem ou não fazer parte desse grupo cultural específico, formado pela cultura escolar e que, muitas vezes, são fundamentadas em raízes históricas que precisam ser compreendidas antes de serem julgadas ou ditadas de cima para baixo.

3.3.3 A escola, a biblioteca, as professoras, o livro didático e as políticas públicas de