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Letramento: dos conceitos existentes e do conceito empregado em suas origens no

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.2 LETRAMENTOS: PERSPECTIVAS E IMPLICAÇÕES

3.2.1 Letramento: dos conceitos existentes e do conceito empregado em suas origens no

A introdução do letramento no Brasil é abordada por vários autores, entre os quais podemos citar os nomes de Mortatti (2004), Marinho (2010) e Soares (2010). Essas autoras são unânimes em situar o surgimento do termo em nosso país, por volta da metade da década de 1980. Mortatti (2004) afirma que ele parece ter sido empregado pela primeira vez por Mary Kato em 1986, na apresentação de seu livro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística, sendo relacionado à tarefa escolar de formar cidadãos funcionalmente letrados.

Em 1988, na introdução de Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso, a autora Leda V. Tfouni estabelece um sentido para o termo centrando-o nas práticas sociais de leitura e escrita e nas mudanças que elas podem ocasionar em uma sociedade ao se tornar letrada. Posteriormente, em 1995, ela publica Letramento e alfabetização, e declara no prólogo que o uso da palavra letramento (como um neologismo) deve-se ao fato de não haver encontrado

outra em nossa língua que pudesse ser empregada para explicitar o fato de ser possível estar exposto aos usos sociais da escrita, mesmo sem saber ler e escrever. No mesmo ano, Ângela Kleiman organiza uma coletânea de artigos, nos quais os autores abordam diferentes aspectos do letramento e publica o livro intitulado Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita.

Ainda em 1995, Magda Soares publica um artigo na Revista Brasileira de Educação falando sobre o “alfabetismo” no mesmo sentido em que a palavra literacy vinha sendo empregada na língua portuguesa. Em uma nota ela explicava que o vocábulo parecia-lhe um neologismo, por isso optava por utilizar a palavra alfabetismo. Porém, o termo letramento foi se consolidando na academia brasileira e, um ano depois, em 1998, a própria Magda Soares explica sua adesão ao termo com a publicação do livro Letramento: um tema em três gêneros14.

Marinho (2010) ressalta que a introdução do termo letramento no Brasil não é somente a questão de uma acomodação lexical, mas uma questão conceitual. O questionamento em torno do conceito não é uma especificidade brasileira. Graff (1995), historiador social, pesquisador da história da alfabetização e professor na Universidade do estado de Ohio, no início da obra Os labirintos da alfabetização15, traz uma série de citações de autores, como Olson (1975/76), Haverlock (1976), Trigger (1976), Gough (1968) e Ong (1970), expondo diferentes perspectivas disciplinares e ideológicas, com o objetivo de chamar a atenção para a necessidade de uma “reconceitualização” do letramento. No que diz respeito aos seus efeitos e as suas consequências, segundo ele, até recentemente, o imaginário popular e as concepções acadêmicas eram similares, bem como as discussões sobre o tema são consideradas superficiais. Dos últimos séculos até a nossa contemporaneidade, elas teriam servido para reforçar o “mito da alfabetização”, que por sua vez, explica o lugar que o letramento ocupa na sociedade, na política, na cultura ou na economia, desconsiderando o papel vital do contexto sócio-histórico.

Quem propõe a reflexão acerca dessa questão, no contexto brasileiro, é Magda Soares na conferência Práticas de letramento e implicações para a pesquisa e para políticas de alfabetização e letramento, proferida em 2007 e publicada em 2010, no livro Cultura

escrita e letramento, organizado por Marildes Marinho e Gilcinei Teodoro Carvalho, com

14

Letramento: um tema em três gêneros é referenciado nesta tese com a edição de 1999.

15

O livro de Harvey Graff, Os labirintos da alfabetização, é uma tradução inadequada do título The Labyrinths

of Literacy, conforme atesta Soares (2010, p.57), o sentido adequado para o termo literacy é letramento e não

apresentações do I e do II Colóquio Internacional sobre Letramento e Cultura Escrita, realizados pela Universidade Federal de Minas Gerais. Conforme a autora:

O conceito de letramento no Brasil e os vários conceitos de literacy, em países de língua inglesa, são conceitos semelhantes, mas não idênticos. Essa diferença na conceituação de letramento resulta em diferentes implicações para a pesquisa e para políticas educacionais (SOARES, 2010, p. 55).

Além de comparar os conceitos de letramento no Brasil entre si e com os de outros países, ela apresenta uma síntese dos pontos de vista acerca do letramento em diferentes áreas. Na antropologia, são as práticas sociais de leitura e escrita e os valores atribuídos a essas práticas em uma dada cultura. Na linguística, são os aspectos da língua escrita que diferenciam a da língua oral remetendo aos aspectos linguísticos, psicolinguísticos e sociolinguísticos das práticas de escrita. Do ponto de vista psicológico, o letramento é relacionado às habilidades cognitivas necessárias para compreensão e produção de textos. E, do ponto de vista educacional, são as habilidades de leitura e escrita de crianças, jovens e adultos, em práticas sociais que envolvem a língua escrita (SOARES, 2010, p. 57).

Ela conclui que, no contexto brasileiro, ainda que lentamente, o conceito de letramento surge e é incorporado pelo meio acadêmico, dentro das perspectivas pedagógica e linguística e não da histórica ou antropológica:

[...] o que nos falta são estudos e pesquisas na perspectiva antropológica dos eventos de letramento em camadas populares, estudos e pesquisas que venham esclarecer as diferenças nas relações com a cultura escrita entre as diferentes subculturas a que pertencem os alunos presentes nas salas de aula (SOARES, 2010, p. 62).

Soares (2010) afirma ainda que isso interfere na situação da pesquisa nesse campo dentro da área educacional e explicita três implicações dessa interferência: a primeira é que olhamos para o letramento e para alfabetização com o objetivo de avaliar; a segunda é que faltam estudos na área antropológica, e, a terceira são as lacunas nas pesquisas que buscam compreender o letramento. Nesse sentido, a autora lembra que as pesquisas brasileiras voltam-se mais para o campo da aquisição do que ela chama de tecnologia da escrita do que para a compreensão das práticas escolares de leitura e escrita em sua relação com essas mesmas práticas no contexto social e curricular em outras áreas do ensino.

No que se refere à primeira implicação, Soares problematiza a pressão que recai sobre as instituições de ensino em torno das estatísticas. Ela ressalta a necessidade de pesquisas sobre as causas que determinam esses resultados, em especial, dos baixos resultados e supõe que entre elas estão “as diferenças entre grupos socioculturais quanto ao acesso a

materiais escritos, quanto à natureza do material escrito disponível, quanto aos valores atribuídos, quanto aos usos [...]” (SOARES, 2010, p. 63). Essa percepção acerca das lacunas existentes na pesquisa brasileira sobre o letramento na perspectiva antropológica vem sendo demarcada pela autora desde 1988, quando ela já apontava a quase inexistência de pesquisas sobre a função social da escrita num artigo intitulado Alfabetização: a (des)aprendizagem das funções da escrita, na Educação em Revista.

É com base nos aspectos mencionados na análise de Soares que pretendo iniciar a discussão acerca da inserção do letramento literário nesse campo da pesquisa, mas antes disso é importante compreender um pouco do que trata os Novos Estudos sobre o Letramento.