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3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.2 LETRAMENTOS: PERSPECTIVAS E IMPLICAÇÕES

3.2.3 Letramento e escolarização

Embora a escola seja o lugar para promover eventos e práticas de letramento, a escolarização sozinha não é garantia de que isso ocorra, em especial, quando isso é proposto na perspectiva do modelo autônomo explicitada por Street. Nesse sentido, críticas como as de Graff (1995) e Britto (2004) têm sido feitas aos sistemas de ensino e organizações como a Organização das Nações Unidas para Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) por promoverem o letramento na perspectiva desse modelo, ou seja, compreendendo as atividades de leitura e escrita como neutras, universais e desenvolvidas pela aquisição de habilidades técnicas individuais.

No cerne dessa proposta, estão concepções que não se sustentam. De um lado, o desenvolvimento econômico e pessoal está automaticamente vinculado à escolarização, de

outro, o fracasso no desempenho escolar tende a ser atribuído ao indivíduo, e, a aquisição do letramento seria a condição para o indivíduo ascender socialmente. As críticas ao modelo demonstram que nem o letramento geral de uma população está vinculado apenas à escolarização, bem como o letramento e a escolarização não são sinônimos de ascensão social.

Graff (1995) tece críticas às tentativas da UNESCO de avaliar os níveis de letramento popular e, principalmente, por associá-lo ao desenvolvimento econômico e individual das pessoas que o possuem (o mito do letramento), pois essa não é uma relação automática de causa e efeito. O autor cita como exemplo o caso da Suécia, país que atingiu o letramento geral da população, desde o Séc. XVIII, com a determinação do Rei Carlos XI e o apoio da igreja, que tomava a leitura do catecismo de Lutero: o protestante só poderia receber os sacramentos da igreja e se casar se soubesse ler a bíblia. Esse processo não teve qualquer relação com o letramento escolar ou com processos de escolarização, como pressupõem os princípios da UNESCO ao conceber sua proposta de letramento vinculando-a totalmente à escolarização.

Britto (2004), embora não mencione Brian Street, apresenta um pensamento muito próximo ao dele. Analisando os resultados das avaliações realizadas pelo Instituto Nacional de Alfabetismo (INAF), em 2001, critica o discurso hegemônico e o modelo autônomo de letramento. Para ele a alfabetização deve se dar dentro de uma perspectiva crítica semelhante à que Street concebe no modelo ideológico. O autor destaca ainda que o letramento não seria a causa da posição social dos indivíduos, mas a consequência:

A análise comparativa do nível de alfabetismo com a classe socioeconômica, o grau de instrução e o tipo de atividade profissional demonstram que são essas circunstâncias que contribuem para o letramento, e não o contrário. Em outras palavras, a condição de maior ou menor domínio de habilidades de leitura e escrita e o exercício de atividades dessa natureza é antes o resultado da situação social que a possibilidade de maior participação (BRITTO, 2004, p. 56).

Ao explicitarmos os conceitos de modelo autônomo e ideológico, nosso objetivo não é aderir à dicotomização, mas pensar no modelo de letramento ideológico, compreendendo essas questões e reconhecendo os limites da atuação escolar, sabendo também que isso não resolve o problema educacional, mas permite que, enquanto educadores, atuemos com um olhar mais crítico para o contexto e para a nossa própria prática ao propormos eventos de letramento, tal qual nos alerta Britto (2004).

No que tange à criação desses eventos e práticas no contexto escolar, Mortatti (2004) lembra-nos de que eles se tornam objetos de ensino e aprendizagem e, portanto, estão

submetidos a uma organização sistemática e metódica, com objetivos e concepções próprios do contexto escolar, envolvendo desde a seleção dos conteúdos, às atividades que serão desenvolvidas e também avaliadas.

A própria aula pode ser considerada um evento de letramento que pode variar conforme o contexto sociocultural. Para Marinho (2010), ela pode ser entendida como um macroevento, por ser um evento altamente estruturado. Dentro dela, ocorrem vários microeventos de letramento18: cópia, ditado, leituras informativas e literárias, etc. Distinguindo o conceito de eventos e de práticas, a autora enfatiza que os “eventos são orientados por princípios, regras e sentidos que permitem não apenas compreender a lógica de um evento de letramento, mas também a lógica e os significados das práticas de

letramento da instituição escolar” (MARINHO, 2004, p. 79, grifos da autora).

Aderindo aos conceitos de Street (2010), a autora salienta que o evento de letramento pode ser observado em situações em que as interações são mediadas pelo texto escrito, enquanto práticas não podem ser observadas diretamente nas atividades que são propostas porque, de modo consciente ou não, elas envolvem crenças, valores, atitudes, sentimentos e relações sociais. Nesse contexto, as práticas de letramento presentes na escola refletem e, ao mesmo tempo, promovem determinadas formas de relação com o escrito que representam certos valores e interesses sociais.

Dessa forma, quando nos propomos a compreender as práticas de leitura literária na escola à luz da perspectiva etnográfica, precisamos ter em mente quais são os nossos valores e nossas crenças sobre a linguagem para identificar e compreender os valores e crenças do “outro” que nem sempre coincidirão com as nossas.

Relacionamos os modelos autônomo e ideológico, definidos por Street (2010), às concepções de linguagem materializadas nas práticas pedagógicas que podem ser observadas nas escolas. Uma pedagogia que se fundamenta na ideia do homem enquanto sujeito passivo no processo de ensino-aprendizagem, também tende a incorporar no ensino concepções que entendem a língua/linguagem como forma de expressão do pensamento ou como instrumento de comunicação. Segundo Geraldi (1984), se partimos da primeira, tendemos a pensar que se as pessoas não se expressam bem é porque não pensam ou no mínimo não pensam bem. No caso da segunda, a língua seria um código a ser decifrado.

18 Vale ressaltar que em nossa pesquisa, não adotamos a nomenclatura de micro ou macro eventos. Chamamos

Tanto uma como outra forma são limitadas e não dão conta do trabalho de inserção do estudante nas práticas sociais de leitura e escrita, ou seja, não dão conta do processo de letramento. O autor afirma que, de uma maneira geral, a primeira corresponderia aos estudos linguísticos da gramática tradicional e, a segunda aos do estruturalismo.

Concordamos com Paulo Freire que a leitura não se esgota (e nem pode se esgotar) na decodificação da palavra escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. E, embora ele não tenha empregado o termo letramento, é evidente sua preocupação em fugir do mecanicismo de cunho estruturalista. É por isso que ele afirma que não basta dizer que Ivo viu a uva ou que A viúva viu a uva, pois é necessário saber quem produziu a uva, qual o preço da uva, quem lucrou com essa produção. Nessa mesma perspectiva ele declara:

Para mim seria impossível engajar-me num trabalho de memorização mecânica dos ba-be-bi-bo-bu, dos la-le-li-lo-lu. Daí que também não pudesse reduzir a alfabetização ao puro ensino da palavra, das sílabas ou das letras. Ensino cujo processo o alfabetizador fosse “enchendo” com suas palavras as cabeças supostamente “vazias” dos alfabetizandos. (FREIRE, 2006, p. 19)

Como alternativa a essas concepções que fundamentam o tipo de prática criticada por Paulo Freire, no tocante ao ensino da língua escrita, defendemos a concepção de linguagem como interação, proposta por Bakhtin (2004)19, em que ele afirma:

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundante da língua (BAKHTIN, 2004, p. 123).

Portanto, a interação verbal como realidade fundante da língua, e, como um fenômeno social, implica no entendimento de que os sentidos só podem ser construídos dentro de um contexto de produção. Em consonância com essa concepção, ao pensar o processo de escolarização, Street (2014) afirma que:

Todo letramento é aprendido num contexto específico e as modalidades de aprendizagem, as relações sociais dos estudantes com o professor são modalidades de socialização e aculturação. O aluno está aprendendo modelos culturais de identidade e personalidade, não apenas a decodificar a escrita e escrever com determinada caligrafia. Se, esse é o caso, então, deixar o processo crítico para depois que eles tiverem aprendido vários dos gêneros letrados usados na sociedade é descartar, talvez para sempre, a socialização de uma perspectiva crítica (STREET, 2014, p. 54).

Pensar a escola, como um local privilegiado para o aprendizado das práticas letradas numa dada sociedade, significa pensar nas concepções que são materializadas por meio do que e do como a escola ensina. Refutar concepções tradicionais e estruturais de linguagem e

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Esclarecemos que o fato de partirmos da concepção interacionista da linguagem não significa que faremos uma análise bakhtiniana em nossa pesquisa, pois isso demandaria a entrada em muitos conceitos que não serão abordados nesta tese.

assumir a perspectiva crítica apontada por Freire (2006) e Street (2014), tendo como base a concepção interacionista da linguagem, proposta por Bakhtin (2004), significa mudar as bases de ensino que fizeram parte da cultura escolar. Nesse sentido, no que tange ao ensino de Língua Portuguesa Suassuna salienta que:

[...] adotar a concepção bakhtiniana de língua enquanto discurso, interação, prática sócio-histórica significa fazer um deslocamento da regra absolutizada para dinâmica do funcionamento da língua no seio da sociedade e na mente dos indivíduos. Esse deslocamento reorienta a visão de processo de aprendizagem: os sujeitos aprendem não porque previamente lhes são mostrados modelos e regras de uma língua pronta, mas porque usam a língua em contextos históricos concretos, como resultados de suas necessidades comunicativas [...] (SUASSUNA, 2011, p. 214).

Entendemos que o processo de escolarização construído com base na prática pedagógica do diálogo freireano e fundamentada na concepção interacionista de linguagem, são elementos básicos para uma perspectiva de letramento escolar no caminho apontado por Soares (2004):

[...] o letramento pode ser tomado como um importante eixo articulador de todo o currículo da educação básica. Entretanto, o vigor do conceito de letramento para a reflexão pedagógica não reside apenas no reconhecimento da centralidade da leitura e da escrita no interior da própria escola, mas principalmente no fato de que ele instiga os educadores – e a sociedade de maneira geral – a refletir sobre a relação entre a cultura escolar e a cultura no seu conjunto, sobre as relações entre os usos escolares e os demais usos sociais da escrita (SOARES, 2004 apud MORTATTI, 2004, p. 116).

É com base nesse potencial de reflexão entre os usos escolares e os demais usos sociais da escrita que entramos no campo do letramento, objetivando compreender a leitura do texto literário no contexto escolar.