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A escola, a biblioteca, as professoras, o livro didático e as políticas públicas de leitura

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.3 A LITERATURA E A ESCOLARIZAÇÃO

3.3.3 A escola, a biblioteca, as professoras, o livro didático e as políticas públicas de leitura

Um dos campos que se interessa pelo entendimento de questões relacionadas ao acesso à leitura literária é o da sociologia da leitura. Nesse sentido, um de seus interesses está relacionado ao percurso de uma obra, desde sua criação até a chegada às mãos do leitor. O fato de um livro se constituir realmente em uma obra de arte, não basta para que chegue ao público. Até que esse percurso se complete, muitas coisas acontecem, fazendo com que a obra se torne também mercadoria. Haverá necessidade de passar por diversas instâncias de mediação.

De uma maneira ou de outra, as obras que chegam às escolas nem sempre são selecionadas previamente pelos professores. E, mesmo as que são, o são dentro de um rol daquelas que já passaram pela seleção do mercado editorial e dos critérios estabelecidos pelos programas governamentais como, por exemplo, o Programa Nacional da Biblioteca Escolar

(PNBE22). Fato é, que com ou sem materiais escolhidos por eles próprios, os professores, assim como a escola, se constituem em mediadores de leitura no sentido declarado por Hauser (1977). Segundo ele, toda pessoa ou instituição que se interpõe entre a obra de arte e o público exerce uma função de mediação, função essa, que para ele, pode ser “útil” ou “inútil”. Para Michèle Petit, antropóloga francesa, o papel dos mediadores é aproximar os leitores e os textos.

O gosto pela leitura não pode surgir da simples proximidade material com os livros. Um conhecimento, um patrimônio cultural, uma biblioteca, podem se tornar letra morta se ninguém lhes der vida. Se a pessoa se sente pouco à vontade em aventurar- se na cultura letrada devido à sua origem social, ao seu distanciamento dos lugares do saber, a dimensão do encontro com um mediador, das trocas, das palavras "verdadeiras", é essencial (PETIT, 2008, p. 154).

De modo semelhante à Kalman (2004), Petit (2008) entende que o acesso a certos bens culturais não é sinônimo de apropriação. Ela ressalta que quem exerce o papel de mediador é um professor, um bibliotecário, um livreiro, um amigo, um familiar, alguém capaz de construir pontes entre o leitor e o texto.

Na escola, as mediações podem envolver diversos agentes (o coordenador, o bibliotecário, os alunos, etc.), porém são os professores que, na condição de mediadores, têm maior responsabilidade, em virtude do alcance de sua ação sobre as demais instâncias responsáveis pela escolarização da literatura infantil.

Segundo Soares (1999), as três instâncias principais responsáveis por essa escolarização são a biblioteca da escola; a leitura e os livros de literatura; a leitura e o estudo de textos como componente básico das aulas de Português. Salientamos que tais instâncias, uma vez que se interpõem entre o leitor/aluno e a obra literária, em alguns casos também podem se configurar como mediadores da leitura literária realizada no contexto escolar. Soares acredita que, na terceira instância, a escolarização é mais intensa, portanto é nela que a autora se detém por meio da análise de propostas de livros didáticos.

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Conforme informações obtidas no portal do MEC, Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), foi criado em 1997, com o objetivo de promover o acesso à cultura e o incentivo à leitura nos alunos e professores por meio da distribuição de acervos de obras de literatura, de pesquisa e de referência. O atendimento foi feito de forma alternada: ora contemplando as escolas de educação infantil, de ensino fundamental (anos iniciais) e de educação de jovens e adultos, ora atendendo as escolas de ensino fundamental (anos finais) e de ensino médio. Até o ano de 2014, o programa atendeu de forma universal e gratuita todas as escolas públicas de educação básica cadastradas no Censo Escolar, sendo suspenso no ano seguinte sob a justificativa de falta de recursos e com a promessa de retomada para o ano de 2016. Entretanto, o prazo não foi cumprido e, em 2017 o governo de abandonou o programa declarando que o PNBE foi incorporado ao programa do livro didático e que "novo edital para aquisição das obras literárias está em elaboração com previsão para 2018". (http://portal.mec.gov.br/programa-nacional-biblioteca-da-escola)

Assim como ela, antes de abordarmos essa terceira instância, trazemos algumas considerações da própria autora bem como de Petit (2008) que tratam a biblioteca e a leitura de livros como instância de escolarização ou de mediação da leitura literária.

Como uma instância de escolarização da literatura, a biblioteca escolar desempenha seu papel por meio de diferentes estratégias. A primeira delas é se constituir num local de guarda da e de acesso à literatura. A biblioteca escolar adquire um estatuto simbólico que, posteriormente, pode se traduzir na base da relação que o aluno estabelecerá com o livro ou com outras bibliotecas públicas ou mesmo com particular.

A segunda estratégia gira em torno da organização do espaço e do tempo para acessar e para ler os livros. Em relação e essa estratégia, a autora levanta questionamentos que são fundamentais em nossa pesquisa:

(...) onde se pode ou se deve ler (na própria biblioteca escolar? em que lugar da biblioteca?), quando e durante quanto tempo se pode ler (durante a “aula de biblioteca”? quando se pode ir à biblioteca buscar um livro? Quanto tempo de pode ficar com o livro?) (SOARES, 1999, p. 23).

A terceira estratégia diz respeito à seleção dos livros, quais livros a biblioteca oferece ou não aos alunos. E a quarta relaciona-se à socialização da leitura:

[...] quem indica ou orienta a escolha do livro a ler – a professora? A bibliotecária? que critérios definem a orientação seletiva de leitura para uma série ou outra, para meninos ou para meninas? a orientação seletiva de tipos e gêneros de leitura, de autores? (SOARES, opus citatum).

Por fim, a autora destaca os rituais de leitura, desde fichas a serem preenchidas aos modos de ler que incluem leitura silenciosa e também o cuidado com os livros e a postura de quem lê: não escrever nem dobrar suas páginas e sentar-se adequadamente.

Para Petit (2002), a biblioteca, como instância mediadora é um lugar que deve ser preservado, pois é o espaço que favorece o encontro com pessoas e com livros. Ela salienta que não é exatamente a escola ou a biblioteca que fazem a mediação da leitura, mas as relações humanas que são possibilitadas por esse local. A ideia é reiterada no livro Os jovens e a leitura, no qual expõe uma pesquisa sobre a importância da leitura e o papel das bibliotecas na vida de jovens oriundos da zona rural e da periferia de grandes cidades da França:

[...] não é a biblioteca ou a escola que desperta o gosto por ler, por aprender, imaginar, descobrir. É um professor, um bibliotecário que, levado por sua paixão, a transmite através de uma relação individual. Sobretudo no caso dos que não se sentem muito seguros a se aventurar por essa via devido a sua origem social, pois é como se, a cada passo, a cada umbral que atravessam, fosse preciso receber uma autorização para ir mais longe. E se não for assim, voltarão para o que já lhes é conhecido (PETIT, 2008, p. 166).

Nesse sentido, além de compreender a importância do espaço físico necessário para promover os encontros, Petit (2008) ressalta que o papel dos bibliotecários, cujo foco não era somente os livros, mas as pessoas, foi enfatizado por vários jovens que participaram de sua pesquisa.

Retomando as questões discutidas por Magda Soares em seu artigo, a segunda instância de escolarização da literatura infantil é a leitura de livros. Na escola, a leitura de livros sempre será orientada e avaliada por um professor. Ainda que se busquem subterfúgios e estratégias para incentivar a leitura e disfarçar seu cunho avaliativo, isso sempre fará parte do processo escolar. Na escola, não se lê apenas por prazer, como fazem as pessoas que gostam de leitura e leem fora dela. De uma forma ou de outra, a leitura deverá ser verificada pelo professor, seja por meio de uma conversação, de uma exposição, de um seminário, de uma resenha, um resumo ou de outro meio, o aluno terá de demonstrar sua compreensão.

Por último, conforme dissemos, Magda Soares se deteve na leitura e o estudo de textos como componente básico das aulas de Português e o fez analisando propostas trazidas por livros didáticos que circulavam até então. A partir da análise realizada, ela afirma que essa é a instância de escolarização da literatura mais frequente na escola e também a mais inadequada:

Inadequada porque há uma seleção pouco criteriosa de autores e obras, e, sobretudo, porque os textos são quase sempre pseudotextos, isto é, fragmentos sem textualidade, sem coerência; e ainda porque as atividades que se desenvolvem sobre os textos não se voltam nem para a textualidade nem para a liberdade do texto. Não será excessivo afirmar que a obra literária é desvirtuada, quando transposta para o manual didático, que o texto literário é transformado, na escola, em texto informativo, em texto formativo, em pretexto para exercícios de metalinguagem (SOARES, 1999, p. 47).

A autora analisa exemplos retirados de livros didáticos de 1ª a 4ª séries, mas não revela o nome dos livros dos quais foram retirados os exemplos analisados e justifica que isso seria penalizar uma determinada obra e um determinado autor por falhas que são frequentes nos livros didáticos em geral. Sendo assim, também não temos como saber sua data de publicação. Entretanto, sabemos que o artigo foi publicado em 1999, isso significa que, certamente, são anteriores a algumas orientações de políticas públicas que influenciam esse tipo de produção, especialmente o Programa Nacional do Livro Didático23 (PNLD), conforme

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O Programa Nacional de distribuição gratuita de livros didáticos para estudantes de escolas públicas brasileiras é antigo. Existindo desde 1929, com outras denominações, em 1985 o decreto nº 91.542 institui (PNLD). Em 1996 adquiriu uma nova configuração: a Secretaria de Educação Básica passou a ter a responsabilidade de coordenar e avaliar o conteúdo das obras inscritas no PNLD, em parceria com universidades públicas. Assim, os livros didáticos passaram a ser submetidos a avaliações realizadas por especialistas. Essa configuração também

destaca Bunzen (2007), em um artigo, no qual analisa a diversidade de gêneros no livro didático.

O artigo ressalta as mudanças ocorridas na natureza do material textual, nos livros de Língua Portuguesa, atribuindo-as a um conjunto de fatores, entre os quais são citados: a mudança de Leis de Diretrizes e Bases Educacionais 5.672 e 5.692, de 1971; a influência, na década de 70, dos estudos da teoria da comunicação; a defesa do texto como unidade de ensino; os estudos críticos do letramento e os estudos acerca dos gêneros discursivos; os conceitos de letramento e gênero que juntos com a diversificação das situações de produção e de circulação de textos são temas centrais nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e, por conseguinte, nos livros didáticos produzidos após a publicação do documento e, pelos próprios critérios proposto pelo PNLD.

Para sabermos como anda essa instância de escolarização analisada por Soares há quase vinte anos, seria necessária uma análise dos livros atuais. Levando em conta o que documentos oficiais como os PCNs e o que próprio PNLD, por meio do Guia do Livro Didático (GLD) determina em relação à literatura como quesitos para sua aprovação. Entretanto, como esse não é o foco principal desta pesquisa, essa análise é realizada somente nos livros utilizados pelas professoras das escolas observadas. De qualquer forma, é importante que observemos o que dizem esses documentos.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1997, p. 37): “É importante que o trabalho com o texto literário esteja incorporado às práticas cotidianas da sala de aula, visto tratar-se de uma forma específica de conhecimento”. O documento ressalta ainda as singularidades e as propriedades compositivas desse tipo particular de escrita, bem como o exercício de reconhecimento destas para se trabalhar de modo a contribuir para a formação de leitores capazes de reconhecer as sutilezas, as particularidades, os sentidos, a extensão e a profundidade das construções literárias. Sendo que valorizar a leitura como fonte de informação, via de acesso aos mundos criados pela literatura e possibilidade de fruição estética consiste em um dos objetivos gerais do ensino da língua portuguesa.

Observamos que o trabalho com o texto literário está inserido no contexto da diversidade dos gêneros textuais que devem compor as práticas voltadas para o ensino da Língua Portuguesa, mas os Parâmetros não definem tratamento didático ou objetivos específicos para a abordagem do texto.

tem sido objeto de pesquisas, especialmente no Estado de São Paulo, e alvo de muitas críticas no âmbito das Políticas Públicas de Educação.

De maneira geral, são os objetivos desse documento que embasam as orientações do GLD, incluindo os pontos que são voltados para o ensino da literatura. O Guia, publicado pelo Ministério da educação (MEC), com o objetivo de auxiliar os professores no processo de escolha dos livros distribuídos às escolas públicas pelo Programa Nacional do Livro Didático, é elaborado por áreas do currículo. E, no que concerne à Língua Portuguesa, ele apresenta informações sobre os princípios e critérios sob os quais as coleções foram avaliadas e aprovadas, as resenhas que apontam as contribuições que essas coleções trazem para o letramento, a aquisição do sistema de escrita, o ensino da leitura, a produção escrita, a oralidade e os conhecimentos linguísticos.

Dentre os princípios gerais que norteiam a avaliação das coleções destinadas ao Ensino Fundamental I e II, os Guias publicados em 2013 e 201524 estabelecem que a fruição estética e a apreciação crítica da produção literária associada à língua portuguesa, em especial a da literatura brasileira devem partir das práticas de letramento, às quais os alunos deverão ter pleno acesso como forma de participação social e exercício de cidadania.

Quanto à natureza dos textos selecionados para compor o livro didático, ambos os Guias reafirmam a importância da heterogeneidade textual e dos textos literários. No Guia de Livros Didáticos: PNLD 2014, voltado para os Anos Finais do Ensino Fundamental, a orientação é posta com as seguintes palavras:

O conjunto de textos que uma coleção oferece para o ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa deve justificar-se pela qualidade da experiência de leitura que

possa propiciar ao aluno, contribuindo para sua formação como leitor proficiente,

inclusive como leitor literário. Uma coletânea deve, portanto:

1. estar isenta tanto de fragmentos sem unidade de sentido quanto de pseudotextos, redigidos com propósitos exclusivamente didáticos;

2. ser representativa da heterogeneidade própria da cultura da escrita – inclusive no que diz respeito à autoria, a registros, estilos e variedades (sociais e regionais) linguísticas do Português –, permitindo ao aluno a percepção de semelhanças e diferenças entre tipos de textos e gêneros diversos pertencentes a esferas

socialmente mais significativas de uso da linguagem;

3. ser adequada – do ponto de vista da extensão, da temática e da complexidade linguística – ao nível de escolarização em jogo;

4. incluir, de forma significativa e equilibrada em relação aos demais, textos da

tradição literária de língua portuguesa (especialmente os da literatura brasileira);

5. incentivar professores e alunos a buscarem textos e informações fora dos limites do próprio livro didático (BRASIL, 2013, p.17).

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O PNLD é executado em ciclos trienais alternados, assim o Guia para cada etapa de educação básica acompanha essa periodicidade. No caso do Ensino Fundamental I, a última publicação antes do início de nossa pesquisa de campo ocorrera em 2015 como suporte para distribuição no período de 2016 a 2018 e do Ensino Fundamental II a última publicação foi em 2013 para a vigência do período de 2014 a 2017.

O Guia de Livros Didáticos: PNLD 2015, voltado para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental traz orientações bem semelhantes:

O conjunto de textos que uma coleção apresenta deve constituir-se como um instrumento eficaz de acesso do aluno ao mundo da escrita. Portanto, é imprescindível que, respeitado o nível de ensino em jogo, a coletânea ofereça ao aprendiz uma amostra o mais possível representativa desse universo. Logo:

 a seleção textual deve justificar-se pela qualidade da experiência de leitura que possa propiciar, e não pela possibilidade de exploração de conteúdos curriculares; os pseudotextos, criados única e exclusivamente com objetivos didáticos, são inaceitáveis;

 os gêneros discursivos presentes na coleção devem ser representativos da heterogeneidade do mundo da escrita, inclusive no que diz respeito a registros, estilos e variedades (sociais e regionais) do Português;

 os textos da tradição literária de língua portuguesa são imprescindíveis, especialmente os da literatura brasileira;

 os autores devem ser representativos de diferentes tendências, estilos e/ou movimentos;

 no caso dos volumes que compõem a coleção de Letramento e Alfabetização, a presença de textos da tradição e da literatura oral é imprescindível;

 também é imprescindível a presença de textos pertencentes a esferas socialmente mais significativas de uso da linguagem (como a jornalística, a científica etc.).;

 entre os textos selecionados, os integrais devem comparecer em quantidade significativa; no caso dos fragmentos, é de fundamental importância que a unidade esteja preservada e que os cortes sejam adequadamente assinalados;

 as fontes completas de cada texto ou fragmento precisam vir claramente indicadas;

 a coleção deve incentivar professores e alunos a buscarem textos e informações fora dos limites do próprio livro didático (BRASIL, 2015, p. 16).

Como podemos observar, os critérios exigidos para que as coleções sejam aprovadas parecem cercear boa parte dos problemas que Soares (1999) associa à inadequação da escolarização da literatura infantil, especialmente no que diz respeito aos pseudotextos, às adaptações e à fragmentação.

Em relação aos pontos abordados nesta seção, salientamos que compreendemos, assim como Soares, que trabalhar com o texto literário ou com qualquer outro texto na escola é sim escolarizá-lo, pois a escola como instituição social cumpre a função de ensinar. O que precisamos compreender são outras questões.

Precisamos entender os modos como esta escolarização vem sendo feita e por que se faz desta ou daquela maneira. Precisamos compreender que concepções fundamentam as práticas e que funções elas cumprem ao se concretizarem no cotidiano escolar. Assim, nesta pesquisa, voltamos nosso olhar para as três instâncias de escolarização arroladas por Soares na interação com os agentes responsáveis por elas no chão da escola: a biblioteca da escola; a leitura e os livros de literatura; a leitura e o estudo de textos como componente básico das aulas de Português.