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Literatura e ensino: entre o prazer e o dever, a tarefa de formar o leitor

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.3 A LITERATURA E A ESCOLARIZAÇÃO

3.3.1 Literatura e ensino: entre o prazer e o dever, a tarefa de formar o leitor

No capítulo 1,fizemos o levantamento das pesquisas realizadas no Brasil nos últimos dez anos, e vimos que existem muitas críticas em torno do ensino de literatura nas escolas brasileiras. Mas se recuamos um pouco mais no tempo, verificamos que diversas questões mencionadas nas pesquisas da última década foram expostas no cenário educacional brasileiro bem anteriormente.

A partir da década de 1970, diversos pesquisadores e professores se debruçaram sobre a questão da relação escola e ensino de literatura. Em 1979, Maria Thereza Fraga Rocco escreve um artigo intitulado Reflexões sobre o ensino da literatura, no qual, ao mesmo tempo em que valoriza a leitura literária, admite a existência de uma crise no ensino da literatura, que segundo ela teria sido agravada pela influência dos meios de comunicação de massa. Ela afirma valorizar o conhecimento da história da literatura, mas critica o excesso de nomenclatura para análise literária e a sobrecarga de dados sobre autores, obras, etc., e chama a atenção para a necessidade de revitalizar o ensino literário, a partir de um trabalho que se inicie com textos contemporâneos, escritos em linguagem mais acessível.

Em 1981, Regina Zilberman publica Literatura infantil na escola20, obra em que discute problemas relacionados à gênese da literatura infantil: a criança como uma criação da sociedade burguesa e a literatura e a escola como meio de consolidação de seus valores. A

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autora defende o enfoque estético como superação do caráter doutrinário apontando possíveis elementos para redimensionar o papel da literatura infantil brasileira. No ano seguinte, ela organiza e publica uma coletânea de artigos sob o título Leitura em crise na escola que gerou muitas polêmicas por questionar o ensino de literatura e os problemas relativos ao interesse pela leitura nas escolas brasileiras. Em 1990, no capítulo Sim, a literatura educa, da obra Literatura e pedagogia: ponto e contraponto, Zilberman faz uma retrospectiva histórica, desde o surgimento da literatura (na antiga Grécia), passando por todos os séculos, mantendo a certeza de que o texto poético propicia a formação do ser. A autora ainda comenta a crise existente no ensino de literatura como um reflexo da falta da leitura, da falta de eficiência por parte do professor, da decadência do ensino que leva ao questionamento, da função da literatura e, em especial, de seu ensino, concluindo que a tarefa deste consiste em formar o leitor.

Nessa tarefa, é necessário considerar o papel do leitor na interação com a linguagem, pois, por meio da fantasia proporcionada pela abstração da linguagem, ele irá concretizar o texto. No livro A biblioteca imaginária, Barbosa (1996) analisa esse poder de concretude por parte do leitor, que lhe possibilita evadir sentimentos, suprir a necessidade do “sonho” (indispensável para manutenção da saúde mental), entender-se como um ser ontológico e ainda sentir prazer. Além disso, ele defende que o leitor deve ter uma consciência da leitura literária, pois quando se encontra diante de um poema, precisa conhecer a linguagem em que o poeta escreveu e a linguagem da poesia.

Para Amaral (1999), o “prazer e o dever” se encontram interligados dentro do ensino literário. A literatura deve cumprir o papel de proporcionar o prazer. Utilizando-se de uma metáfora em que compara a fruição literária à fruição sexual, ele argumenta que, do mesmo modo que um curso de educação sexual não garante o gozo, um curso de literatura organizado também não poderá garantir o prazer da leitura literária. Entretanto, nem por isso deve-se desistir e deixar de criar condições propícias para que a descoberta aconteça. Mas, se isso não ocorrer, a atividade não valerá a pena somente como dever.

Dessa maneira, formar o leitor na escola implica em lidar simultaneamente com o prazer e com o dever, pois como prática social, realizada fora da escola, a leitura literária é aquela que proporciona o prazer, sem determinados compromissos por parte do leitor de prestar contas da sua leitura para alguém. Na escola, a situação é diferente, sempre haverá uma intencionalidade e as nuances inerentes a qualquer processo educacional. Soares (2011), voltando seu olhar para a escolarização da literatura infantil e juvenil, afirma que:

[...] a escola é uma instituição em que o fluxo das tarefas e das ações é ordenado através de procedimentos formalizados de ensino de organização dos alunos em categorias (idade, grau, série, tipo de problema, etc.), categorias que determinam um tratamento escolar específico (horários, natureza e volume de trabalho, lugares de trabalho, saberes a aprender, competências a adquirir, modos de ensinar e aprender, processos de avaliação e de seleção, etc.). É a esse inevitável processo – ordenação de tarefas e ações, procedimentos formalizados de ensino, tratamento peculiar dos saberes pela seleção, e consequente exclusão, de conteúdos, pela ordenação e sequenciação desses conteúdos, pelo modo de ensinar e de fazer aprender esses conteúdos – é a esse processo que se chama escolarização, processo inevitável, porque é da essência mesma da escola, é o processo que a institui e que a constitui (SOARES, 2011, p. 21).

A compreensão da natureza da escola leva ao entendimento de que não há como a literatura, dentro da escola, não se transformar num saber escolar. Entretanto, acreditamos que olhar a leitura literária como uma prática social, pode contribuir para que coloquemos no centro das práticas escolares, a finalidade primeira, da qual o ensino de leitura literária não pode em hipótese alguma prescindir, que é a leitura de fruição.

Se esse traço da leitura literária não é preservado, ela passa a ser tratada como qualquer outra leitura informativa escolarizada. É a partir da função primeira da literatura que acreditamos que a escola deva encaminhar o processo de inserção dos estudantes no universo literário.

Candido (1989) discorre sobre o direito à literatura como um bem incompressível, ou seja, tão indispensável quanto alimento, casa ou roupas, pois do mesmo modo que estes asseguram a sobrevivência física, a arte e, portanto, a literatura, concorre para assegurar a integridade espiritual ou emocional. Se a literatura fosse retirada da escola pelos modos equivocados que ela vem sendo tratada, ao invés de resolver o problema, estaríamos incorporando mais uma forma de negar ao “homem” comum (nesse caso, o estudante) uma oportunidade de acesso e de apropriação desse bem incompressível, que muitas vezes, é propriedade apenas de uma elite.

Embora a didatização e a escolarização do texto seja uma crítica recorrente nas pesquisas que expusemos no capítulo 1, a perspectiva de escolarização da qual partimos está em consonância com o que propõe Magda Soares. Concordamos com ela que, como qualquer outro saber escolar, o problema não reside no fato de a literatura ter sido escolarizada, mas no modo inadequado em que isso ocorre. E, que por isso mesmo, o termo escolarização não pode ser entendido de modo pejorativo, uma vez que negar a escolarização da literatura ou de qualquer conhecimento tornado um saber escolar, é o mesmo que negar a escola. O que se nega é a pedagogização e a didatização quando transformam o literário em escolar de forma distorcida, falseada, deturpada, descaracterizando a natureza literária. Mas o que pode, então,

ser entendido como literário ou como literatura? E, o que a escola faz com ela para ser alvo de tantos questionamentos? São esses pontos que abordamos na próxima seção.