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2 OS ESTUDOS CONVERSACIONAIS NA LINGUÍSTICA

MOMENTO INTERATIVO

2.2. Diferentes correntes teóricas

São os anos de 1970 que veem surgir a emergência do campo de estudo em análise da conversação, tornando-se as conversações objeto de investigação sistemática. Dado seu caráter transdisciplinar, a reflexão no campo do interacionismo está amplamente diversificada, não sendo possível mencioná-lo como um domínio homogêneo, mas

convém falar de um ‘campo movente’ que atravessa diversas disciplinas e cuja unidade repousa mais sobre alguns postulados fundamentais – como a ideia de que o discurso é uma produção coletiva – do que sobre a existência de um conjunto unificado de proposições descritivas (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 17).

A característica transdisciplinar do campo em tela se efetivou desde suas origens, relacionando-se de forma parcial com disciplinas como a psicologia social e interacionista, a microssociologia, a sociologia cognitiva, a sociologia da linguagem, a sociolinguística, a linguística, a filosofia da linguagem, a etnolinguística, a etnografia, a antropologia, a cinésica, a etologia da comunicação, dentre outras (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006). Essa multiplicidade de relações lhe confere um quadro metodológico também diversificado, muitas vezes, confusamente articulado, já que tais disciplinas apresentam fronteiras muito frequentemente superpostas.

Para colocar “um pouco de luz nesse imbróglio disciplinar”, Kerbrat- Orecchioni (2006, p. 17-24) procede a um levantamento das diferentes linhas teóricas, separando-as em quatro grandes tipos de enfoque: 1) o enfoque psicológico e psiquiátrico; 2) os enfoques etno-sociológicos; 3) a abordagem linguística; e 4) a abordagem filosófica. A seguir, aparecem os comentários dos referidos enfoques e abordagens.

Os estudos interacionistas de cunho psicológico e psiquiátrico são representados pela Escola de Palo Alto20, “cujas preocupações são, primeiramente, de ordem terapêutica” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 17). Nesse sentido, são observados casos como disfunções de relação conjugal, esquizofrenia. O tratamento desses indivíduos deve incidir na transformação do que se chama “sistema relacional global”, no qual eles estão inseridos, uma vez que esse sistema está de alguma forma alterado nesses pacientes.

Com relação aos enfoques etno-sociológicos, a referida autora afirma que são os mais importantes, subdividindo-os em: a) Etnografia da Comunicação; b) Etnometodologia; e c) Sociolinguística. Referindo-se ao enfoque da Etnografia da Comunicação, Kerbrat-Orecchioni (2006) aponta como autores importantes Hymes e Gumperz. O primeiro pesquisador se posiciona contrariamente à concepção de linguagem como aquela que entende que falar uma língua é produzir e compreender um número infinito de frases bem elaboradas, visão representada pelo posicionamento chomskyano.

Mais que isso, para Hymes (1995), falar uma língua é dominar as condições de uso adequado das possibilidades que a língua oferece. Nesse sentido, a competência linguística, de Chomsky, “deve ser considerada no interior de um conjunto mais amplo, no qual saberes lingüísticos e saberes socioculturais estão inextricavelmente misturados” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 19). Assim, o autor postula a chamada competência comunicativa, noção entendida como “o conjunto de capacidades que permitem ao sujeito falante comunicar de modo eficaz, em situações culturalmente específicas”.

Desenvolvendo uma competência comunicativa e não apenas uma competência linguística, os falantes poderão interagir em sociedade, uma vez que ter o domínio das estruturas linguísticas é insuficiente, necessitando ir mais além, ou seja, usar a língua efetivamente dentro de contextos reais. O conceito de competência comunicativa propõe a ênfase na mensagem, e não na forma

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Nome por que ficou conhecido um núcleo de investigação científica, nas áreas da psicoterapia e psiquiatria, fundado em 1959, em Palo Alto, na Califórnia, oriundo do Mental Research Institute. Teve como base principal uma equipe de investigadores do início da década de 50, liderada por Gregory Bateson. Disponível em: http://www.infopedia.pt/$escola- de-palo-alto. Acessado em: 30/05/2010.

em que ela se apresenta. É um conceito que pode ser entendido como sendo a habilidade de interpretar, expressar e negociar significados em contextos mais diversos. É também um conceito dinâmico e interpessoal que se aplica não somente à língua escrita, mas também à falada.

A competência comunicativa está baseada em quatro componentes fundamentais: 1) A competência gramatical: é o domínio do código linguístico; 2) A competência sociolinguística: é a compreensão do contexto social; 3) A competência discursiva: é a capacidade de produzir um discurso coerente e coeso; e 4) A competência estratégica: são estratégias que compensam o conhecimento incompleto do código linguístico ou fatores que limitam o seu uso (HYMES, 1995). Essas quatro características servem de base para a abordagem comunicativa, proporcionando aos usuários oportunidades variadas de atuação, refletindo a real utilização da língua.

Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 19), comentando a forte crítica de Hymes às ideias de Chomsky, lembra que aquele autor já chamou o “bebê chomskyano” de monstro, “predestinado a uma morte rápida”, uma vez que esse indivíduo seria capaz de elaborar frases perfeitamente gramaticais, porém não apresentaria capacidade para utilizá-las no momento e no lugar oportunos, nem com o interlocutor adequado, nas mais variadas situações de uso. Nesse sentido, vale ressaltar também os comentários de Marcuschi (2008, p. 37), enfatizando que “Chomsky representa um reducionismo violento do fenômeno lingüístico”. Apenas com o advento dos estudos pragmáticos e os novos enfoques sobre a língua é que se observa “um deslocamento considerável do ponto de vista do sistema para a atividade comunicativa”.

Ainda conforme Kerbrat-Orecchioni (2006), os estudos em Etnografia da Comunicação devem adotar um procedimento indutivo e naturalista, observando eventos de comunicação em seu meio natural, considerando “o mais exaustivamente possível os dados recolhidos” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 20).

Comentando as pesquisas em Etnometodologia, a mencionada autora esclarece que esse termo deve ser entendido da seguinte forma:

trata-se de descrever os métodos (procedimentos, saberes e técnicas) que os membros de uma dada sociedade utilizam para gerir

como convém o conjunto de problemas comunicativos que eles têm de resolver na vida cotidiana (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 20).

A autora aprofunda seus comentários, apontando que a Etnometodologia segue alguns princípios, tais como: a) todos os comportamentos observáveis nas trocas cotidianas são rotinizados, ou seja, “repousam sobre normas implícitas, admitidas como evidentes”; b) as normas que sustentam os comportamentos sociais preexistem parcialmente, ao mesmo tempo em que essas normas são permanentemente reatualizadas e reengendradas pela prática diária num movimento contínuo de construções interativas de ordem social; c) o procedimento etnometodológico é teoricamente aplicável a todos os campos da atividade social, servindo de alicerce para o surgimento de uma vertente da etnometodologia, a conhecida análise da conversação, sob o impulso de Sacks, Schegloff e Jefferson, “cujo objetivo é descrever o desenvolvimento das conversações cotidianas em situação natural” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 20-2). O terceiro enfoque etno-sociológico mencionado pela autora é a Sociolinguística21, representada pelos estudos de autores como Labov, Fishman e Goffman.

Ao tecer considerações sobre a terceira corrente teórica, a abordagem linguística, Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 23) lembra que, apesar de as conversações serem, antes de tudo, objetos de investigação da linguagem, a Linguística só tenha se interessado pelo seu estudo muito tardiamente e sob pressão de pesquisas realizadas fora de seus alcances fronteiriços. Esse posicionamento equivocado revelou uma Linguística que se “ocupava essencialmente desse sistema abstrato que é a língua, apreendida a partir de exemplos produzidos para a circunstância”. Apenas recentemente é que a Linguística assiste a uma reabilitação do empirismo descritivo, ou seja, reconhece-se a necessidade de se observarem as produções efetivas (corpora

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A sociolinguística é uma “área que estuda a língua em seu uso real, levando em consideração as relações entre a estrutura lingüística e os aspectos sociais e culturais da produção lingüística. Para essa corrente, a língua é uma instituição social e, portanto, não pode ser estudada como uma estrutura autônoma, independente do contexto situacional, da cultura e da história das pessoas que a utilizam como meio de comunicação”. Essa vertente investigativa “firmou-se nos Estados Unidos, na década de 1960 com a liderança do lingüista William Labov e é comumente denominada de sociolingüística variacionista ou teoria da variação” (CEZARIO e VOTRE, 2008, p. 141).

autênticos), priorizando-se também os discursos orais e dialogados, ambos considerados “como a forma primordial de realização da linguagem”.

Nesse sentido, aparecem os estudos linguísticos de cunho interacionista que, em certa medida, pegaram “o bonde andando” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006, p. 23). Durante a época de 1980, a Linguística tenta recuperar o tempo perdido, graças a pesquisadores que se debruçaram ativamente sobre a análise de conversações. A autora menciona como representante dessa linha a Escola de Genebra, no domínio francófono. Aqui no Brasil, podem-se citar, como exemplo dessa mesma linha de pensamento, os trabalhos produzidos por ocasião da construção da Gramática do Português Falado, mais especificamente o grupo da organização textual-interativa.

Finalizando suas contribuições no que tange às diferentes correntes em análise das interações, Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 24) menciona a abordagem filosófica, tendo como representante a filosofia anglo-saxônica de Austin e Searle, que estudaram os atos de fala, retomando “a concepção pragmática do discurso, segundo a qual ‘dizer é fazer’”. Nessa perspectiva, também aparecem os estudos de Grice, que postula o Princípio da Cooperação e as Máximas Conversacionais.

Silva (2005, p. 36), muito pertinentemente, comenta que estabelecer definições claras dessas diferentes correntes é uma tarefa difícil, como foi possível observar na apresentação das quatro linhas teóricas. Dessa forma, a título de conclusão, o autor afirma que “a opção por um enfoque ou outro depende do conceito que se tem da natureza do objeto que se deseja estudar e das metas fixadas para cada investigação em particular”.