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3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO

3.1 Os diferentes entendimentos sobre o tema

De acordo com Luciano Amaro (2004, p. 236), a teoria da desconsideração da personalidade jurídica não pode ser aplicada no direito tributário, em razão do princípio da estrita legalidade que rege as relações tributárias:

Resta examinar a desconsideração da pessoa jurídica (propriamente dita), que seria feita pelo juiz, para responsabilizar outra pessoa (o sócio), sem apoio em prévia descrição legal de hipótese de responsabilização do terceiro, à qual a situação concreta pudesse corresponder. Nessa formulação teórica da doutrina da desconsideração, não vemos possibilidade de sua aplicação em nosso direito tributário. Nas diversas situações em que o legislador quer levar a responsabilidade tributária além dos limites da pessoa jurídica, ele descreve as demais pessoas vinculadas ao cumprimento da obrigação tributária. Trata-se, ademais, de preceito do próprio Código Tributário Nacional, que, na definição do responsável tributário, exige norma expressa de lei (arts. 121, parágrafo único, II, e 128), o que, aliás, representa decorrência do princípio da legalidade. Sem expressa disposição de lei, que eleja terceiro como responsável em dadas hipóteses descritas pelo legislador, não é lícito ao aplicador da lei ignorar (ou desconsiderar) o sujeito passivo legalmente definido e imputar a responsabilidade tributária à terceiro.

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É possível observar, contudo, ao menos quatro correntes doutrinárias que reconhecem – diferentemente – a possibilidade de aplicação da mencionada teoria no direito tributário. Uma delas defende que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica pode ser adotada no direito tributário mesmo diante da inexistência de regra jurídica positivada a respeito, bastando, para tanto, o entendimento jurisprudencial.

Corroboramos, porém, o entendimento de Alexandre Couto Silva (1999, p. 119), para quem a formulação jurisprudencial da desconsideração da personalidade jurídica, que é baseada na equidade e na justiça, conforme já analisamos, é plenamente incompatível com a legalidade estrita exigida pelo ordenamento constitucional tributário.

A segunda corrente sustenta que a desconsideração da personalidade jurídica só pode ser aplicada no direito tributário se provir de lei complementar, conforme defende Edmar Oliveira Andrade Filho (2005, p. 77):

Um limite material incontornável é o princípio da legalidade. Portanto, a rega não pode, sem recepção por intermédio de outra, ser aplicada no campo do direito tributário. Nesta seara, as relações envolvem o emprego de poder heterônomo no que difere da natureza paritária das relações privadas. Não fosse por esta razão seria pelo fato de que, em face do art. 146 da Constituição Federal, esta matéria só poderia ser veiculada por Lei Complementar.

José Eduardo Soares de Melo (2004, p. 166) parece compartilhar desse entendimento, ao afirmar que a desconsideração da personalidade jurídica prevista no artigo 50 do Código Civil não pode ser aplicada nos lindes tributários porque não provém de lei complementar. Discordamos desse entendimento, pois, nos termos das alíneas a e b do inciso III do artigo 146 da Constituição Federal, cabe à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre contribuintes e obrigação tributária. Contribuinte e obrigação tributária, portanto, dentre outros assuntos não pertinentes para este estudo, estão sob reserva de lei complementar.

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Cumprindo a função que lhe foi constitucionalmente outorgada, o Código Tributário Nacional prescreve, no inciso I do artigo 121, que o sujeito passivo da obrigação tributária principal diz-se contribuinte quando tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador. O inciso II do mesmo dispositivo prescreve, por sua vez, que o sujeito passivo da obrigação tributária principal também pode ser o responsável, quando, sem revestir a condição de contribuinte, sua obrigação decorra de disposição expressa de lei. Também prescreve, no § 1º do artigo 113, que a obrigação principal surge com a ocorrência do fato gerador, tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária, e extingue-se juntamente com o crédito dela decorrente.

No caso da desconsideração da personalidade jurídica, vimos que a extensão da responsabilidade patrimonial ao sócio ou administrador não decorre da prática do fato gerador de um tributo, mas de um abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, não podendo tais pessoas serem consideradas, portanto, tecnicamente, contribuintes, nos termos do inciso I do artigo 121 do referido

codex tributário.

Também não podem ser consideradas responsáveis tributários, pois, apesar de sua obrigação provir de expressa de lei, já vimos que, na desconsideração da personalidade jurídica, o sujeito sobre o qual recaem os efeitos patrimoniais não é um simples responsável, mas verdadeiro obrigado

direto (PARENTONI, 2014, p. 57).

A terceira corrente, embasada no Princípio da Estrita Legalidade Tributária, sustenta que a aplicação da mencionada teoria no direito tributário depende, necessariamente, da edição de dispositivo legal específico e pontual. Dentre os teóricos que sustentam essa corrente, encontra-se Ives Gandra da Silva Martins (2011, p. 313), para quem:

No Direito Tributário, p. ex., a desconsideração da pessoa jurídica apenas ocorre havendo hipótese legal, como é o caso da distribuição disfarçada de lucros, visto que tal ramo da lei positiva é regido pelos princípios da estrita legalidade, da tipicidade fechada e da reserva absoluta da lei formal.

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Ele está se referindo ao artigo 51 da Lei Federal nº 7.450/85, segundo o qual:

Art. 51. Ficam compreendidos na incidência do imposto de renda todos os ganhos e rendimentos de capital, qualquer que seja a denominação que lhes seja dada, independentemente da natureza, da espécie ou da existência de título ou contrato escrito, bastando que decorram de ato ou negócio, que, pela sua finalidade, tenha os mesmos efeitos do previsto na norma específica de incidência do imposto de renda.

Para o mencionado autor, o dispositivo legal em questão corresponde a uma positivação específica da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário.

Ives Gandra da Silva Martins (2011, p. 315) explica, em seguida, que a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica nos lindes do direito privado é muito mais flexível do que possa ser no direito tributário, sob o argumento de que ela pode decorrer – no direito privado – de criação jurisprudencial ou normativa, de integração analógica, de interpretação extensiva ou de flexibilidade exegética, que estão à disposição do intérprete para a busca do “real desenho” dos fatos ocorridos naquele universo do direito, concluindo, com base nisso, que:

(...) a teoria da desconsideração foi estalajada pelo Direito Fiscal brasileiro apenas e enquanto decorrente de hipótese normativa, vedada sua aplicação a partir da construção pretoriana, posto que tal concepção implicaria, se adotada, ofertar elasticidade exegética à norma, que os princípios da tipicidade fechada, reserva absoluta e estrita legalidade vedam. A quarta corrente defende, por sua vez, que a desconsideração da personalidade jurídica só pode ser admitida no direito tributário se houver regra

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Parecendo filiar-se tanto à terceira quanto à quarta correntes, Heleno Taveira Tôrres (2003, p. 470) afirma que:

A desconsideração da personalidade jurídica, para os fins de aplicação da legislação tributária, poderá ser praticada tanto quando se esteja em presença de leis especiais quanto na hipótese de aplicação de uma regra geral que a autoriza, à luz de determinados pressupostos. Por esse motivo, em lei específica que a previna, quanto ao cabimento de desconsideração em certos casos concretos, ou regra geral seus pressupostos, mediante prova da ausência de causa (dolo) e demais elementos suficientes para isolar a conduta elisiva, nenhuma desconsideração poderá ser admitida como instrumento válido para imutar aos sócios efeitos que se deveriam atribuir diretamente à pessoa jurídica.

E prossegue:

Se é certo que não se tem qualquer dúvida sobre a aplicação de leis especiais que assim possam dispor em determinado caso específico, as chamadas regras gerais antielisivas, que trazem a previsão de um dado pressuposto (abuso de direito, fraude à lei, abuso de formas ou equivalente), para obter o efeito de lifiting the corporate veil ou disregard of the legal entily, sofrem muitas resistências e precisam respeitar limites que o próprio ordenamento contempla, mormente no direito brasileiro, em vista da analiticidade da Constituição em matéria tributária.

Apesar das divergências acima apontadas, evidencia-se ao menos um ponto em comum: doutrinadores de escol admitem a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário.

De acordo com as premissas estabelecidas no presente trabalho, entendemos que a estrutura do Código Civil em vigor foi idealizada por Miguel Reale (2005, pp. 40-41) como instrumento normativo instituidor de cláusulas

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Código Civil não institui somente um conjunto de regras de direito privado. Muitas de suas disposições podem ser aplicadas, portanto, por serem cláusulas gerais de direito, a todos os subsistemas do direito, inclusive ao tributário. O artigo 50 do mencionado codex – já vimos – é considerado uma dessas cláusulas gerais.

Assim, ao adotarmos a premissa em questão como verdadeira, podemos concluir que a desconsideração da personalidade jurídica nele positivada emana seus efeitos sobre as relações obrigacionais de direito tributário, o que nos aproxima das lições de Heleno Taveira Tôrres (2003, p. 470), para quem a desconsideração da personalidade jurídica, no direito tributário, pode ser praticada quando houver leis especiais ou quando houver uma regra geral que a autorize, a qual, para nós, é o artigo 50 do Código Civil.

É o que também entende o Ministro José Augusto Delgado (2005, p. 192), do Superior Tribunal de Justiça, para quem o artigo 50 do Código Civil possui forte influência sobre o direito tributário, uma vez que a construção doutrinária e jurisprudencial existente antes do advento de tal dispositivo oscilava, pois era aplicada sob critérios materiais e formais diversos, dependendo exclusivamente das convicções do julgador.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem admitido a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário, fundamentada, claramente, no artigo 50 do Código Civil em questão, conforme se observa na ementa abaixo transcrita, resultante do julgamento do Agravo Regimental em Agravo no Recurso Especial nº 441.231/RJ, julgado em 6 de fevereiro de 2014, de relatoria do Ministro Og Fernandes:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA. ART. 50 DO NOVO CÓDIGO CIVIL. AFERIÇÃO DA PRESENÇA DOS ELEMENTOS AUTORIZADORES DA

MEDIDA. REEXAME DE MATÉRIA DE FATO.

IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.

1. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica, medida excepcional prevista no art. 50 do Código Civil de 2002, pressupõe a ocorrência de abusos da sociedade, advindos do

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desvio de finalidade ou da demonstração de confusão patrimonial.

2. O Tribunal de origem, com base no contexto fático- probatório dos autos, afastou os elementos fáticos autorizadores da medida. Desse modo, infirmar as conclusões a que chegou o acórdão recorrido – investigação acerca da ocorrência de abusos da personificação jurídica advindos do desvio de finalidade ou da demonstração de confusão patrimonial – demandaria a incursão na seara fático-probatória dos autos, tarefa essa soberana às instâncias ordinárias, o que impede o reexame na via especial (Súmula 7 deste Superior Tribunal).

3. Agravo regimental a que se nega provimento.

Ao julgar, em 5 de junho de 2012, o Agravo Regimental na Medida Cautelar nº 19.142/PR, de relatoria do Ministro Castro Meira, a referida Corte Superior de Justiça deu outra demonstração da possibilidade de aplicação do artigo 50 do Código Civil no direito tributário, mas desde que presentes os seus pressupostos, conforme se observa na ementa abaixo transcrita:

PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NA MEDIDA CAUTELAR. EFEITO SUSPENSIVO ATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO FISCAL. DÍVIDA PARTICULAR DE UM DOS

SÓCIOS. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA

PERSONALIDADE JURÍDICA. PENHORA SOBRE O FATURAMENTO. INTERVENÇÃO JUDICIAL. NULIDADE DE CONTRATOS COMERCIAIS. PERIGO NA DEMORA. EXISTÊNCIA. PLAUSIBILIDADE DO APELO. LIMINAR DEFERIDA. AGRAVO NÃO PROVIDO.

1. Nos autos de execução fiscal ajuizada contra um dos sócios da sociedade requerente, cujo débito encontra-se parcelado, determinou-se a penhora sobre o faturamento da empresa, o afastamento do sócio não executado da gerência da pessoa jurídica, bem como a intervenção judicial na sociedade. Contra essa decisão, foi impetrado mandado de segurança pelos

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terceiros prejudicados, tendo a presente cautelar o objetivo de conferir efeito suspensivo ativo ao recurso ordinário interposto contra a denegação da segurança.

2. As medidas excepcionais deferidas pelo juízo da execução, tais como a desconsideração inversa da personalidade jurídica, a penhora sobre o faturamento, a anulação de contratos e alterações sociais, o afastamento de sócio da sociedade, a intervenção judicial, apenas são legítimas em situações de extrema necessidade, após o exaurimento de outros meios para a satisfação do crédito exequendo.

3. Na espécie, em juízo de cognição sumária, tem-se que as providências contidas no ato judicial impugnado não são dotadas de razoabilidade, mormente porque foram implementadas ex officio pelo magistrado, atingindo direito de terceiros não executados, em relação a crédito suspenso pelo parcelamento.

(...)

6. Agravo regimental não provido.

Parece não haver dúvida, portanto, que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito tributário, com supedâneo no artigo 50 do código Civil.

3.2 A natureza não negocial do crédito tributário como fundamento