• Nenhum resultado encontrado

2 ASPECTOS GERAIS ACERCA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA

2.4 A positivação no direito brasileiro

Ao mesmo tempo em que também reconhece a função criadora do direito reservada à magistratura, até mesmo porque foi Ministro do Supremo Tribunal Federal, Clóvis Ramalhete (1984, pp. 9-14), preocupado com a inexistência de fundamento escrito à aplicação da teoria da desconsideração, passou a defender que a recusa dos efeitos da personalidade jurídica deveria ter apoio em lei.

A necessidade de lei também é defendida pelo professor Alexandre Couto Silva (2000, p. 55), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que, tendo por base as teorias que explicam a pessoa jurídica, assevera o seguinte:

Do ponto de vista da concepção ficcionista, a lei que criou a pessoa jurídica poderá suspender seus efeitos e desconsiderá- la, enquanto na teoria realista a desconsideração é enfocada como instrumento do direito positivo para ajustar as construções jurídicas a seus efeitos metajurídicos.

Assim, muito embora haja abalizadas vozes defendendo a aplicação principiológica da mencionada teoria no direito brasileiro, fundada no dever de promoção da equidade atribuída ao Juiz, deve-se considerar que o nosso sistema jurídico se filia à tradição do direito escrito, o que não pode ser simplesmente ignorado.

É razoável supor, então, que o sistema jurídico nacional, que é de direito escrito, integrado ao grande ramo latino-germânico, exige um fundamento legal para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Um texto normativo que reconheça e trate dessa teoria com o devido rigor técnico, estabelecendo os pressupostos, limites e os precisos efeitos da desconsideração eliminará uma série de contestações, inconvenientes e inseguranças quanto à sua aplicação.

De acordo com essa perspectiva, parece frágil, portanto, a posição daqueles que defendem a aplicação da mencionada teoria com base em fundamentos unicamente principiológicos, de acordo com a equidade, segundo

37

a livre convicção do juiz. E foi contemplando a legalidade que o legislador pátrio inseriu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em diversos diplomas normativos, como, e.g., no parágrafo 2º do artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho, que prescreve o seguinte:

Art. 2º (...)

§ 2º. Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.

Outra previsão legal pode ser encontrada no artigo 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

(...).

§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores A Lei Federal nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, também passou a prescrever que:

Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

38

Assim, aos poucos, setorialmente, o legislador brasileiro passou a positivar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica em determinados subsistemas do direito, certamente inspirado pela jurisprudência inglesa, que havia influenciado, como tudo indica, a doutrina e a jurisprudência pátria.

Ocorre, porém, que, mesmo diante dessas regras legais expressas, os tribunais brasileiros continuavam a aplicar a teoria em questão por meio de construção pretoriana fundada na equidade, mormente quando se deparavam com o uso abusivo da personalidade jurídica em subsistemas jurídicos ainda não regulamentados.

Mais uma vez, o legislador pátrio foi convocado, então, a eliminar as dúvidas e os abusos cometidos por parte da jurisprudência na aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Cumprindo o chamado, o legislador pátrio elaborou a regra constante no artigo 50 do Código Civil em vigor e, ao contemplar a relatividade do princípio da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, incorporou toda a doutrinária e jurisprudência brasileira produzidas até aquele momento, estabelecendo critérios e limites à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

A redação final do dispositivo legal em questão foi fruto de emenda apresentada pelo Senador Josaphat Marinho à redação original do Projeto de Lei, concebida pelo Ministro Moreira Alves, que possuía o seguinte texto:

A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à

39

prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios, ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.

Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros.

Ao analisar a redação do artigo 50 em questão, que é bem diferente da redação originalmente proposta, João Batista Lopes (2003, p. 40) afirmou que o legislador brasileiro consagrou uma desconsideração da personalidade jurídica inédita, que não se confunde com as outras prescrições legais até então existentes, no Brasil ou no exterior, tendo deixado de “confundir” o instituto da desconsideração com a dissolução da pessoa jurídica ou com a anulação de seus atos constitutivos, críticas essas existentes à redação do instituto na Consolidação das Leis do Trabalho e no Código de Defesa do Consumidor, e que nos permitimos deixar de analisar por não serem pertinentes aos fins objetivados neste estudo. Por ser diferente do exterior, deixaremos de analisar para evitar a sabida sincronia irregular.

Após ter estudado a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica fundada em integração jurisprudencial, isto é, sem fundamento legal expresso, Heleno Taveira Tôrres (2005, pp. 55-56) passou a defender que, a partir da entrada em vigor da regra constante no artigo 50 do Código Civil, não tem mais cabimento qualquer defesa de aplicação da mencionada teoria com base em princípio, criticando, assim, expressamente, o entendimento mantido por Requião. Corroboramos, pois, o entendimento claramente demonstrado por Heleno Taveira Tôrres.

Apesar da importância histórica dos procedentes jurisprudenciais estrangeiros e nacionais, expressa e declaradamente fundamentados na

equidade, e que chegaram inclusive a dar status principiológico à teoria da

40

legislador brasileiro, fiel às características e fundamentos do nosso sistema jurídico, que é de direito escrito, integrado ao grande ramo latino-germânico, condensou os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários até então produzidos (naturalmente excluindo algumas divergências) na redação do artigo 50 do Código Civil em vigor, que é considerado, atualmente, o “fio condutor” da aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Contudo, uma dúvida se impõe: qual será a amplitude de aplicação de suas disposições?