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2 ASPECTOS GERAIS ACERCA DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA

2.3 A recepção brasileira da teoria

O ordenamento jurídico brasileiro possuía, desde 1916 (quase que contemporaneamente, portanto, ao surgimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica nas instâncias inferiores da justiça inglesa), por força do artigo 20 do Código Civil de 1916, regra expressa de que “As pessoas

jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.” Dessa regra, surgiu o

que a doutrina passou a designar como princípio da autonomia patrimonial da

pessoa jurídica, de grande importância no âmbito nacional, conforme já visto no

Capítulo anterior.

Apesar da inequívoca clareza desse mandamento legal, inclusive, alçado ao status de princípio, o Ministro Edgard de Moura Bittencourt decidiu, em 11 de abril de 1955, ao julgar o Recurso de Apelação nº 9.247 junto ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que é possível, em determinados casos e por razões de equidade, superar o referido princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, conforme consta no seguinte excerto da decisão:

Há, no caso, completa confusão do patrimônio da pessoa física do executado com o do embargante, o que resultou evidente prejuízo para quem contratou com aquele.

(...)

A assertiva de que a pessoa da sociedade não se confunde com a pessoa dos sócios – é um princípio jurídico, mas não pode ser um tabu, a entravar a própria ação do Estado, na realização de perfeita e boa justiça, que outra não é a atitude do juiz procurando esclarecer os fatos para ajustá-los ao direito.

Essa é considerada a primeira decisão judicial brasileira a aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica conforme o modelo aplicado pelos mencionados tribunais ingleses. A partir dessa, sobrevieram outras decisões judiciais no mesmo sentido, como a proferido pelo então Desembargador Oswaldo Aranha Bandeira de Mello no julgamento da Apelação Cível nº 105.835, em 29 de março de 1962, junto à 4ª Câmara Cível

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do Tribunal de Justiça de São Paulo, citada por Maria Helena Diniz (2012, pp. 256-257).

Fundado na teria do negócio fiduciário, o referido Desembargador admitiu, em cobrança intentada contra sócios de uma pessoa jurídica, a penhora de bens da sociedade (verifica-se tratar, em verdade, de desconsideração inversa da personalidade jurídica, que será abordada adiante), por entender que essa não passava de uma:

(...) projeção do próprio executado, então seu presidente, a quem dava poderes de gestão tão ilimitados, como se só por ele ou por seus haveres fosse constituída, de modo a lhe atribuir dupla personalidade, e lhe permitir o jogo dúbio com os seus credores.

Destaca-se, em tais julgados, que, no confronto entre a regra expressamente positivada no artigo 20 do já ab rogado Código Civil (que estipulava a separação patrimonial entre os bens do sócio e os bens da sociedade) e a teoria da desconsideração da personalidade jurídica fundada na defendida equidade, prevaleceu, nitidamente, a mencionada teoria.

Verifica-se, assim, que a jurisprudência pátria começava a adotar soluções semelhantes àquelas dadas pelos tribunais ingleses, demonstrada no caso Salomon vs. Salomon & Co. Ao fundamentar suas decisões na equidade, a jurisprudência pátria estava adotando a ideia, portanto, de que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa regras jurídicas positivadas.

Ocorre que, ao mesmo tempo em que despontavam as primeiras decisões judiciais brasileiras fundadas na equidade, o jurista Rubens Requião (1969, pp. 12-24) escreveu, em ensaio doutrinário pioneiro sobre o tema no Brasil, que a desconsideração da personalidade jurídica possui inquestionável

viés principiológico. Tudo indica, aliás, que o referido autor também foi

influenciado pelas decisões inglesas sobre a teoria da desconsideração.

O mencionado doutrinador passou a defender, a partir de então, que o fundamento da desconsideração da personalidade jurídica é principiológico

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(REQUIÃO, 1988, p. 70), entendimento esse mantido em toda a sua obra, inclusive pelo atualizador Rubens Edmundo Requião (2013, pp. 460-462).

Após muito refletir sobre essa teoria, o mencionado autor concluiu que ela é uma consequência direta da expressão estrutural da sociedade que a adota, pois, em qualquer país em que se apresente a separação incisiva entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, ocorre o mesmo problema: como enfrentar aqueles casos em que essa radical separação conduz a resultados completamente injustos e contrários ao direito?

Eis a síntese de suas reflexões:

(...) tanto nos Estados Unidos, na Alemanha, ou no Brasil, é justo perguntar se o juiz, deparando-se com tais problemas, deve fechar os olhos ante o fato de que a pessoa jurídica é utilizada para fins contrários ao direito, ou se em semelhante hipótese deve prescindir da posição formal da personalidade jurídica e equiparar o sócio e a sociedade para evitar manobras fraudulentas. São tais indagações que levam os tribunais norte- americanos a consagrar e aplicar a doutrina, tal como aconteceu no julgamento do caso Montgomery Web Company vs. Dienelt, no qual o tribunal indagou de si próprio “se o direito há de fechar seus olhos diante da realidade de que a diferença (entre a pessoa jurídica e o sócio) é um mero jogo de palavras”. Respondeu, sem vacilações que a solução há de ser sempre a de que “nada existe que nos obrigue a semelhante cegueira jurídica” (REQUIÃO, 1998, p. 70).

Conclui, assim, logo em seguida, que, diante de um abuso evidente, o juiz brasileiro deve indagar-se, na formação de seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude, o abuso, o desvio, a ilicitude ou se deve desprezar episodicamente a personalidade jurídica para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos, realizando, assim, a almejada justiça.

Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 60) também parece defender, nas dobras de sua afirmação, a natureza principiológica do instituto, cuja aplicabilidade independeria de fundamento legal expresso:

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(...) é pacífico na doutrina e na jurisprudência que a desconsideração da personalidade jurídica não depende de qualquer alteração legislativa para ser aplicada, na medida em que se trata de instrumento de repressão a atos fraudulentos. Quer dizer, deixar de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo legal expresso, significaria o mesmo que amparar a fraude.

É possível verificar, assim, que os referidos teóricos entendem, nitidamente influenciados pela jurisprudência estrangeira (e influenciando, por sua vez, a jurisprudência nacional firmada no Século passado), que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica possui natureza principiológica. Com base nisso, sustentam que ela pode ser aplicada mesmo sem regra positivada expressa, e inclusive, contra a regra alçada aos status de princípio que impõe a separação patrimonial entre os bens do sócio e os bens da pessoa jurídica.

Não se nega o importante papel da doutrina e da magistratura na formação do direito pátrio, tampouco a função criadora das decisões judiciais, até mesmo porque a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro prescreve, em seu artigo 4º, que o juiz decidirá o caso, quando a lei for omissa, de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

Contudo, impõe-se uma reflexão: que segurança jurídica pode haver na aplicação de uma teoria importada do direito estrangeiro de matriz anglo-saxã (diferente, portanto, da matriz adotada pelo direito pátrio) que permite superar um princípio basilar de direito já incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro com base no argumento de que ao juiz cabe aplicar a promover a equidade?

Parece-nos que tal entendimento fragiliza a segurança jurídica que se espera de um ordenamento das decisões judiciais com base nele proferidas, razão pela qual nos permitimos entender que qualquer aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica deve ser fundamentada e ter os seus limites delineados em lei.

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