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Difusão diatópico-social da vogal [a] seguida de consoante

A comparação entre a fala de habitantes rurais e urbanos, entre mais velhos e mais jovens, entre mais escolarizados e menos escolarizados, entre luso-brasileiros e ítalo-

brasileiros, e entre grupos do sexo masculino, grupos do sexo feminino e entre grupos mistos, revela baixa diferença percentual de realizações das variantes [+ptg] e das variantes [+ita]. Um pouco mais elevada é a diferença percentual entre os estilos, mesmo assim sem que seja possível chegar a indicações mais precisas sobre eventuais tendências. Por isso, nenhuma das hipóteses propostas relativamente aos grupos de fatores extralingüísticos encontra sustentação nos dados sobre o uso da vogal [a] em contextos seguidos de consoante nasal.

Também na análise dessa variável na dimensão diarreferencial não foram registrados comentários de real significado social da variante [a] [+ita], mesmo suspeitando-se de que seu emprego, quando ocorre, se dá de forma consciente, buscando obter certo efeito pragmático que realce, por exemplo, o sentimento de italianidade, ou seja, a identidade italiana (ver seção 4.3.9).

Passemos, então, à análise dos grupos de fatores lingüísticos considerados relevantes, em ordem de importância, a saber: acento lexical, contexto seguinte e classe morfológica.

Examinemos primeiramente o grupo de fatores acento lexical.

TABELA 17 – Fechamento da vogal [a] seguida de consoante nasal, considerando sílabas tônicas e sílabas átonas

Acento lexical Aplicação/Total % Peso Relativo

Sílaba tônica 803/809 99 .81

Sílaba átona 272/413 66 .06

TOTAL 1075/1.222 88

Input: .97 Significância: .000

Conforme está explicitado na Tabela 17, observa-se que as variantes [A, A), å, å)], consideradas variantes [+ptg], estão fortemente associadas às sílabas tônicas; conseqüentemente, as variantes [a, a)], consideradas [+ita] estão associadas às sílabas átonas. Ou seja, nas situações em que os segmentos são articulados com mais ênfase e, por isso, mais audíveis, os falantes das áreas de contato do português com o italiano têm poucas dificuldades de realizar as variantes próprias do português dito padrão; no caso de segmentos átonos, mormente os pretônicos, há maior interferência da língua étnica.

TABELA 18 – Fechamento da vogal [a] seguida de consoante nasal e o contexto seguinte

Contexto seguinte Aplicação/Total % Peso Relativo

Consoante alveolar [n] na mesma sílaba 493/495 100 .91

Consoante alveolar [n] na sílaba seguinte 186/211 88 .23

Consoante bilabial [m] na sílaba seguinte 216/336 64 .07

Consoante bilabial [m] na mesma sílaba 101/101 100 knockout

Consoante velar [N] 35/35 100 knockout

Consoante palatal [≠] 44/44 100 knockout

TOTAL 1075/1.222 14

Input: .91 Significância: .000

O que significam esses números? Nos casos em que a vogal [a] é seguida de [m], [N] e [≠] na mesma sílaba, ocorre uso categórico das variantes associadas ao português, inexistindo, portanto, interferência do italiano. Do mesmo modo, considera-se categórico o emprego das variantes [+ptg] quando a vogal [a] vier seguida de [n] na mesma sílaba, uma vez que as duas ocorrências de exceção a essa regra referem-se à pronúncia de 'Santo Antônio' [sA)ˆtwa"tonjw], nas quais os falantes omitiram a consoante nasal, deixando, assim, de existir a exigência de um possível fechamento da vogal. Por outro lado, o uso das variantes [A, A), å, å)] relacionam-se negativamente com os fatores consoantes [m] e [n] na sílaba seguinte. Nesses casos, como se sabe, a nasalização da vogal precedente, seja [a] ou qualquer outra, é facultativa em português: ["kA)må] ~ ["kAmå], ["A)nò] ~ ["Anò], por exemplo.21 Ora, se em português ocorre de não haver abaixamento do véu palatino para a emissão da consoante seguinte, também não há por que haver o fechamento da vogal, no caso, da vogal [a], pelo menos para os ítalo-brasileiros. É nessa brecha que persiste a realização da vogal [a] aberta seguida de consoante nasal, ou seja, em não percebendo o suave fechamento, os falantes bilíngües do contato português-italiano sentem-se à vontade para realizar a vogal [a] que adquiriram juntamente com a língua materna. No mais das vezes, esses falantes realizam o [a] aberto em contextos seguidos de consoante nasal quando desejam marcar etnicamente sua fala, fato que dificilmente ocorre em situações formais ou diante de estranhos.

O último grupo de fatores que se mostrou relevante para o uso da vogal [a] seguida de consoante nasal foi a classe morfológica.

21 Cf. Camara Jr. (1970, p. 36-37).

TABELA 19 – Fechamento da vogal [a] seguida de consoante nasal e as classes morfológicas

Classe morfológica Aplicação/Total % Peso Relativo

Verbos 209/228 92 .60 Nomes 717/819 88 .49 Outros 149/175 85 .44 TOTAL 1075/1.222 88 Input: .89 Significância: .099

De acordo com a Tabela 19, os verbos correlacionam-se positivamente com a variante [+ptg], outras classes, porém, evidenciam uma correlação negativa. Os nomes, que aparecem em grande maioria em nosso corpus, comportam-se de forma quase neutra em relação a essa regra variável.

4.2.4 Alçamento da vogal átona final [e]

Como foi explicatado na sessão 1.2.2, em posição átona final, o quadro de vogais em português, segundo Camara Jr. (1970, p. 44), resume-se a três: [a], [i], [u]. Todavia, no Sul do Brasil, as vogais médias em final de palavra tendem a se manifestar ora como vogais médias, ora como vogais altas (VIEIRA, 2002, p. 128). Isso também é apontado pelo ALERS (2002, v. 2), através do Mapa 08 (p. 55) sobre o item lexical sete. Esse mapa revela também que o não-alçamento da vogal átona final [e] não é uma característica dos falantes que habitam os pampas gaúchos, negando, portanto, tal estereótipo atribuído à fala do gaúcho. Todavia, em São Borja, com dados da fala urbana do VARSUL, Vieira (2002, p. 153) registrou 60% de não-alçamento. No plano diatópico, no Rio Grande do Sul, a preservação do [e] em posição final é uma característica do português falado em áreas de colonização européia em. contato com línguas de imigrantes europeus, principalmente o italiano. Em Santa Catarina, prevalece o não-alçamento em toda a faixa oeste, desde a serra até a fronteira. No Paraná, segundo o ALERS, o não-alçamento está mais associado ao dito Paraná antigo (Sul, Sudeste), e o alçamento ao Paraná novo (Norte, Noroeste).

Para melhor compreender o fenômeno do não-alçamento da vogal átona final [e] na fala de português dos ítalo-brasileiros, é preciso fazer algumas considerações sobre a

estrutura dos dialetos italianos falados nas áreas da pesquisa, mormente o vêneto e o trentino. Para isso, valemo-nos das explicações de Frosi e Mioranza (1983, p. 346-347).

Nos dialetos vêneto e trentino, o tema da maior parte dos nomes no singular, sejam masculinos, sejam femininos, é marcado pelas vogais [a], [o], [e]. A vogal [i] aparece em alguns advérbios, alguns numerais, nos dias da semana e em algumas formas verbais. De modo genérico, pode-se dizer que, no singular, a vogal temática que mais ocorre é [e], tanto em nomes masculinos, quanto em femininos; no plural, [i] é morfema de número dos nomes masculinos, enquanto [e] é morfema de número dos nomes femininos. Conclui-se, então, que no italiano falado nas áreas de colonização italiana no Sul do Brasil, haja vista a formação da coiné vêneta, predomina, em posição átona final, a vogal [e] sobre a vogal [i], pois aquela aparece tanto no singular quanto no plural.

Assim sendo, ocorre que, na fala de português, os ítalo-brasileiros acabam, por vezes, obedecendo à estrutura da língua étnica, isto é, evitando o alçamento da vogal átona final [e], uma vez que o [i] final, em italiano, marca o plural dos nomes masculinos. Apesar disso, as realizações de [i] em substituição a [e] átono final, nas áreas delimitadas para esta pesquisa, revelam que a estrutura do português se difunde de forma cada vez mais intensa entre os descendentes de imigrantes italianos. É o que veremos a seguir.

Consideraremos, para tanto, que as ocorrências de [i] ou de [I] associam-se à fala do português-padrão, enquanto as ocorrências de [e], nessa posição, associam-se ao italiano. Desse modo, quanto maior o número de ocorrências das variantes consideradas [+ptg], maior a difusão do português no espaço pluridimensional da pesquisa.

Feito o levantamento dos dados e a respectiva tabulação, obtivemos 887 ocorrências da regra variável, assim distribuídas:

TABELA 20 – Distribuição da vogal átona final [e]

Variantes [i] e [I] Variante [e] Total

Freq. % Freq. % Freq. %

305 34 582 66 887 100

De acordo com esses dados, portanto, prevalece o uso da vogal [e] em posição átona final, demonstrando, assim, o uso variável de [e] e de [i] nessa posição. Os resultados, aliás, são percentualmente muito próximos daqueles obtidos por Roveda (1998) com dados do

VARSUL, relativamente a falantes bilíngües de português e italiano em Chapecó e em Flores da Cunha.

Inicialmente, esses dados foram processados pelo SPDGL, através do qual foram confeccionados 28 mapas analíticos, sendo 11 no estilo Leitura, 12 no estilo Resposta ao Questionário e 5 no estilo Leitura (são exemplos os Mapas 147.c, 240.a e 331.a, em anexo). Os relatórios gerados pelo mesmo programa computacional foram codificados para fins de processamento estatístico através do programa VARBRUL, tendo em vista a correlação da variável independente com os grupos de fatores espaciais, sociais, estilísticos e lingüísticos, conforme previsto.

Dentre os grupos de fatores, foram considerados relevantes os seguintes, pela ordem: estilo de fala, zona de residência, pontos de pesquisa, idade, dimensão dos vocábulos, sexo, classe morfológica e contexto precedente.

Comecemos a análise pela dimensão espacial, ou mais especificamente, pontos de pesquisa. Como se vê pela Tabela 21, há dois pontos (localidades) em que a variante associada ao português, isto é, o alçamento da vogal átona final [e], apresenta alto grau de difusão: Orleans (.91) e Caxias do Sul (.71). Em sentido inverso, ocorre baixa difusão da variante [+ptg] em Rodeio (.23), Sananduva (.35), Chapecó (.37), Sarandi (.39) e Videira (.41). Posição quase neutra encontra-se em Nova Palma.

TABELA 21 – Alçamento da vogal átona final [e] por pontos de pesquisa

Cidades Aplicação/Total % Peso Relativo

Orleans 92/111 83 .91 Videira 28/112 25 .41 Chapecó 25/112 22 .37 Santa Catarina Rodeio 14/111 13 .23 Caxias do Sul 60/111 54 .71 Nova Palma 37/110 34 .51 Sarandi 26/110 24 .39

Rio Grande do Sul

Sananduva 23/110 21 .35

TOTAL 305/887 34

Input: .33 Significância: .000

Os resultados indicam, a exemplo de outras variáveis, que Orleans e Caxias do Sul, apesar de representarem áreas de colonização italiana original, estão se libertando rapidamente das influências lingüísticas do italiano: Orleans por ter sido colonizada por

imigrantes de origens diversas, mesmo considerando a prevalência dos italianos, e Caxias do Sul por ser uma grande metrópole, em acelerado grau de desenvolvimento.

Rodeio, pelos resultados obtidos na realização dessa variável – também pelos resultados obtidos em outras variáveis –, demonstra ser, dentre os pontos pesquisados, o mais italiano de todos, ou melhor dizendo: o ponto em que a estrutura do italiano – trentino, principalmente – mais interfere na fala de português. Ou dito de outra forma, Rodeio é o ponto que mais resiste à adoção de traços do português.

De outra parte, os desempenhos díspares entre colônias novas e velhas fizeram com que a dimensão areal, na qual agrupamos colônias velhas e colônias novas em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, não fosse considerada relevante pelo programa estatístico. Isto quer dizer que, relativamente ao uso da vogal átona final [e], a intensidade da difusão do português não está associada à idade do ponto, considerando a época em que ocorreu a colonização italiana. Por outro lado, também não se pode correlacionar a maior ou menor intensidade de uso da regra à migração interna, dado que o Nordeste e o Norte do Rio Grande do Sul, o Meio-Oeste e o Oeste de Santa Catarina foram colonizados por descendentes de imigrantes que se deslocaram das antigas colônias do Rio Grande do Sul.

A sobreposição dos 28 mapas pluridimencionais gerados pelo SPDGL, relativamente às 887 ocorrências de [e] átono final, permitiram a confecção do Mapa 8, que dá conta da intensidade e do modo como essa regra variável é usada pelos 32 grupos entrevistados.

No mapa lingüístico pluridimensional, os símbolos associados ao percentual de ocorrências da variante explicitada na legenda indicam, progressivamente, o grau de difusão da regra associada ao português, ou seja, quanto mais preenchido de preto estiver o círculo, maior a sua difusão, e vice-versa. Observando o desempenho dos quatro grupos em cada um dos pontos, percebe-se que, em geral, ocorre maior difusão da variante [+ptg] nos grupos de falantes urbanos, indicados na parte superior da cruz, compostos por lusos mais velhos e com pouca escolaridade, à esquerda, e por ítalo-brasileiros mais jovens e mais escolarizados, à direita. Mesmo assim, aparecem com percentuais baixos, exceto em Orleans e Caxias do Sul. Em Orleans, o grau de difusão da variante [+ptg] também é alto entre os habitantes rurais.

Ainda de acordo com o Mapa 8, percebe-se que a ausência de alçamento da vogal átona final [e] se mantém sobretudo nos pontos de colonização mais recente, além de Rodeio. Em sentido oposto, Orleans e Caxias do Sul, que são colônias antigas, mostram um estágio

mais avançado na direção da difusão do traço [+ptg]. É provável, no entanto, que esse desempenho não seja determinado pela idade do ponto, mas por outras características sócio- econômicas de cada um dos pontos: as dimensões metropolitanas e de desenvolvimento de Caxias do Sul, com intenso afluxo de falantes lusos, entre outros aspectos, e a composição da população em Orleans, com a presença de poucos falantes bilíngües de português e italiano.