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ANALÍTICAS

1.3 Dimensão teórica da cidade e do processo de urbanização capitalista

A consideração de Santos (1996) e Souza(2008) sobre a importância de se considerar na análise da relação espaço-sociedade, as categorias horizontalidade e verticalidade, suscita trazer à tona dois pequenos fatos relacionados com a urbanização capitalista, que se encaminha a partir do quadro desenhado por Harvey (2014). O primeiro se relaciona com o início da discussão sobre o processo de verticalização tardia de Joinville, o edifício Manchester, concluído em 1970. O segundo trata-se quase de uma ficção - na verdade uma previsão -, que revela a expectativa do mundo científico e de uma boa parcela da sociedade, com relação à condição do mundo urbano da passagem do século XX para o século XXI.

Fato número um: houve um tempo em que o progresso de uma cidade era medido pelo número de prédios (Arranha-céus16) e de chaminés que se avistava em sua paisagem. Essa era a noção que vigorava em Joinville no início da década de 1970, quando da construção de seu primeiro arranha-céu. Tratava-se de um prédio de uso residencial e comercial, com 10 pavimentos e que no seu topo abrigava, ocupando dois pavimentos, a Associação Comercial e Industrial de Joinville- ACIJ (Figura 3). À época a cidade “procurava um símbolo para imortalizar o crescimento industrial que aos poucos mudava a fisionomia da cidade”. Assim, por iniciativa da ACIJ, a cidade recebeu,

16Forma arquitetônica dotada de significado sócioespacial, com ligações estreitas com a evolução das inovações tecnológicas, estruturais, organizacionais e mercadológicas (aço, concreto, elevador, capital), que pelas suas dimensões em altura buscam alcançar o céu (Casaril, Töws e Mendes, 2011).

em 24 de julho de 1970, a “obra que significa um notável marco no progresso da cidade” (A NOTÍCIA, 1997).

Figura 2- Edifício Manchester superou as palmeiras da Alameda Brüstlein como ícone de verticalidade local, enquanto o edifício Boneville emergia ao

fundo, 1973

Fonte: Jornal Notícias do Dia, 20.07.2015. <Obtido em http://ndonline.com.br/joinville/colunas/luiz-verissimo/270864-nossas-

ciclovias.html> Acesso em 13.07.2016

Fato número dois: Em uma publicação da Seleções do Reader’s Digest, O Livro da Juventude(1968), a internet daquela época, uma matéria chama a atenção em especial: um artigo de Robert O’Brien intitulado “Daqui a 40 anos”. Trata-se de um exercício de futurologia que procurava apresentar àquela juventude as possibilidades de desenvolvimento da sociedade humana mirando o horizonte do ano 2000. O texto foi elaborado, segundo o autor, com base no estado da arte do desenvolvimento científico e tecnológico da época e suas possibilidades de evolução (O’BRIEN, 1968, pp. 15-16).

Com relação ao futuro do país (Brasil) a publicação apostava no crescimento demográfico e na expressiva urbanização. As previsões para o contingente demográfico nacional e da cidade de São Paulo não ficaram distantes da realidade: 200 milhões de habitantes para o Brasil e, 19 milhões para a capital paulista. O maior desvio ficou por conta da cidade do Rio de Janeiro que se previa alcançar a marca de 15 milhões de habitantes. Com relação aos recursos e energia, o exercício de

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futurologia previa uma enorme pressão sobre os recursos naturais em especial sobre o alumínio, minério de ferro e a água doce. A energia viria da fissão nuclear a partir da ‘queima do mar’, em usinas de energia nuclear que “queimariam” o hidrogênio extraído da água. Os transportes seriam revolucionados pelas altas velocidades, pelo deslocamento pelo ar ou ainda pelos monotrilhos cruzando as cidades. O transporte de carga teria os caminhões substituídos por grandes dutos pneumáticos que se encarregariam de despachar as mercadorias. O transporte individual não desapareceria, mas seria substituído pelos veículos de tração elétrica ou ainda por um “cinturão-foguete” para pequenos deslocamentos. As cidades cumpririam seu ideal modernista, se tornariam um “lugar cheio de ar, espaço, torres iluminadas pelo sol, alamedas arborizadas, fontes de águas límpidas e parques verdejantes”. O zoneamento funcional corbusiano (LE CORBUSIER, 1969) faria com que indústria e atividades comerciais “se espalhassem em torno dos agrupamentos urbanos”. Veículos seriam proibidos de circular nas áreas centrais, enquanto “os trabalhadores alcançarão o anel externo em carros particulares, em grandes trens de rodas de borracha, em ‘viagens humanas’ levadas pelos ares por helicópteros...”. Monotrilhos fariam a vez do transporte público para o centro da cidade e calçadas em forma de esteiras rolantes permitiriam aos pedestres se deslocar pela área central. (O’BRIEN, 1968, pp.15-16).

Pode-se notar que as previsões para o início do século XXI, assinaladas por Robert O’Brien, não avançaram exatamente como a comunidade científica e, ou, os fãs da ficção da época vaticinaram. Contudo, a partir dos dois pequenos fatos deve-se observar que as visões e previsões se baseavam em aspectos que estabeleciam ligações muito estreitas entre o desenvolvimento do capitalismo e o processo de urbanização da sociedade.

De volta ao tempo presente, ou próximo dele, no ano de 2012, o mundo foi brindado com a publicação do livro Cidades Rebeldes: Do direito à cidade à revolução urbana, de autoria de David Harvey. No Brasil essa publicação somente foi lançada, em português, no ano de 2014. Na primeira parte do livro, Harvey (2014) desenvolveu consistente análise sobre a íntima e indissociável relação entre o processo de produção e acumulação dos excedentes de capital com o processo de urbanização.

A discussão acerca do vínculo entre produção de excedentes de capital e a urbanização se dá à luz dos fatos da crise imobiliária e do capitalismo dos anos 2007 a 2009, nos Estados Unidos, e que alcançou proporções mundiais. Os efeitos das crises do capitalismo manifestados

nas cidades, levaram Harvey a revisitar no manifesto de Henri Lefebvre O Direito À Cidade, escrito em 1967, um pouco antes dos movimentos sociais de 1968 que abalaram os pilares da sociedade ocidental. Assim Harvey apresenta ao leitor a revisão de alguns aspectos da produção e circulação do capital e estudos de caso que demonstram uma íntima ligação entre a urbanização da sociedade e as crises do capitalismo, de onde extrai a análise do potencial para o desencadeamento de uma revolução urbana. Harvey (2014, p. 77) exemplifica esta relação citando os “desastres financeiros de 1929, 1973, 1987 e 2000”, e avaliados no decorrer do livro, todos eles antecedidos por booms imobiliários decorrentes de investimentos do excedente capitalista na urbanização.

A relação dialética que se estabelece entre o capitalismo e a urbanização é caracterizada por Harvey (2014, p. 30), sob dois aspectos segundo os quais também se pode definir o quadro em que realiza o processo de verticalização de Joinville, inclusive o seu caráter tardio. Se de um lado “o capitalismo está efetivamente produzindo os excedentes de produção exigidos pela urbanização”, por outro lado, “o capitalismo precisa da urbanização para absorver os excedentes de produção que nunca deixou de produzir”, como princípio fundamental. Isso significa dizer que as cidades, enquanto produto da urbanização, constituem o lugar de “...concentração geográfica e social de um excedente de produção”. Daí porque, a urbanização pode ser definida a partir da contribuição de Harvey(2014), de Santos (1996), Rangel (2005) e Souza (2008) como um tipo de fenômeno de classe complexo que opera, segundo relações de horizontalidade e de verticalidade, a partir da extração do excedente de um lugar ou de alguém, e do controle do uso do lucro por uns poucos.

Nessa linha de pensamento, Harvey (2014, pp. 31-33) avança na discussão sobre as características da operação do modo de produção capitalista no sentido de caracterizar o ambiente em que as crises econômicas são geradas ao apontar que “a política do capitalismo é afetada pela eterna necessidade de encontrar esferas rentáveis para a produção e absorção dos excedentes de capital”. Segundo o autor, a satisfação dessa necessidade não se dá sem sobressaltos, pois para cumprir o seu desiderato, o capitalista necessita superar alguns obstáculos. A não superação de barreiras, como a escassez de mão-de- obra ou de salários excessivamente altos, a pressão coercitiva da concorrência, a queda da solvência do mercado e, ou, das taxas de lucro, têm como corolário a instalação de crises, que resultam na desvalorização do capital.

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As crises podem se originar a partir de relações horizontais e alcançar a escala global tornando-se uma verticalidade para outros lugares, posto que o processo de urbanização também se tornou global. Harvey (2014, pp. 41-43) exemplifica essa dimensão escalar destacando os booms imobiliários dos últimos 20 anos, que seguiram o modelo americano dependente de novas instituições e mecanismos financeiros, e se espalharam pela Grã-Bretanha, Irlanda, Espanha, Cidade do México, Santiago do Chile, Mumbai, Johanesburgo, Seul Taipei, Moscou, Dubai, Abu Dhabi, ou ainda, segundo o “radicalmente distinto” modelo Chinês. Muito embora tratarem-se de múltiplos lugares afetados, o que todos os casos citados têm em comum, inclusive no caso do Brasil, como Harvey referencia superficialmente, é o fato de haverem sido financiados pela dívida.

Então quais são as consequências dessa urbanização? Harvey (2014, pp. 46-47) destaca as “...transformações incríveis no estilo de vida”. A vida urbana, bem como as cidades, foi mercantilizada na corrente da “economia espetáculo”, resultando na formação de nichos de mercado regidos por estilos de vida, hábitos de consumo e formas culturais. Em suma, a urbanização capitalista produziu cidades “divididas, fragmentadas e propensas a conflitos” e submetidas à uma “... ética neoliberal do individualismo isolacionista”. Segundo esse movimento, que em muitas cidades também se caracteriza pelo aumento da sensação de insegurança pública, também se verifica a troca da moradia unifamiliar isolada no lote pelo apartamento. De outra parte, esse mesmo processo transforma os edifícios de apartamento para além de simples objetos técnicos, enfatizando o caráter objeto social, carregado de significado e de informações. O fenômeno de migração da tipologia residencial, via de regra, é iniciado pelos grupos sociais mais abastados, que é seguido por aquela parcela da população cuja renda lhes permite seguir o novo modo de vida, ou até, morar no mesmo prédio, ou ainda caso não seja possível, morar nas suas proximidades.

Sobre a urbanização capitalista Harvey (2014, p. 59) conclui que ela

...desempenhou um papel crucial na absorção de excedentes de capital, e que o tem feito em escala geográfica cada vez maior, mas ao preço de processos florescentes de destruição criativa que implicam a desapropriação das massas urbanas de todo e qualquer direito à cidade.

Pelo que resta questionar: como recuperar esses direitos perdidos? Ainda que reconheça que lutar pelos direitos à cidade possa constituir uma “quimera”, Harvey (2014, pp. 21, 61-62) apresenta como resposta a necessidade de lutar pela exigência de um “...maior controle democrático sobre a produção e o uso dos excedentes...” na urbanização. Significa agir em resposta às ações neoliberais que apelam pelas “reformas estruturais”17, mas que também clamam por um novo sistema de governança em que o Estado se associe às corporações, no sentido de privatizar alguns direitos ou agir para a “venda” da cidade, no interesse desse mesmo capital corporativo. Uma solução seriam os planos diretores urbanísticos com um forte viés de participação da sociedade, em uma espécie de subversão da ordem estabelecida da democracia representativa? Essa via de solução, apesar de estar se espalhando enquanto política governamental e prática, ainda encontra resistência tanto entre os tecnocratas especialistas e, mais ainda entre os políticos e os agentes que atuam no mercado. Muito embora não seja esse o foco da tese, este aspecto levantado por Harvey, é levado em consideração, ainda que de maneira suscinta, no item 3.6, do capítulo 3 desta tese.

A obra Cidades Rebeldes também é um canal para David Harvey, reclamar o importante papel da economia política urbana - papel do mercado imobiliário na criação de condições para as crises - para a compreensão dos mecanismos da crise urbana que atenta contra os direitos à cidade. Assim, Harvey (2014, pp. 80-83) não poupa críticas nem aos teóricos burgueses, nem aos teóricos marxistas, inclusive ao próprio Marx, que relegaram importantes aspectos ao segundo plano. Para Harvey, Hervey (2014, pp. 80-88) chama a atenção para a necessidade de “...integrar a compreensão dos processos de urbanização e da formação do espaço construído à teoria geral das leis que regem a circulação do capital”, a partir da consideração do sistema creditício e as relações entre as taxas de juros e de lucro, no arcabouço teórico que regula a produção, circulação e realização do capital. Esta conexão deve levar em conta três aspectos: a) a estrutura e o funcionamento do sistema de créditos, b) a ênfase ao consumismo, e c) o estado de concorrência dos monopólios no ambiente do mercado financeiro.

Tal abordagem se faz necessária, pois que, dado o longo prazo das ações envolvidas nas operações de urbanização produção e consumo

17Em recente reunião do G20 (27.02.2016), os ministros da fazenda e presidentes dos bancos centrais dos países integrantes do bloco, decidiram criar e usar todos os instrumentos para impulsionar o crescimento da economia global, com o objetivo de garantir um crescimento médio composto de 3% ao ano. Por reformas estruturais, entenda-se a redução do déficit público e a redução de benefícios sociais, entre outras medidas.

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de uma edificação, p.ex. há que se articular “alguma combinação de capital financeiro e engajamento estatal”. Essa relação se intensificou desde o início da década de 1990, com a desregulamentação do mercado financeiro porque a circulação do capital fictício18– que escoa por canais fictícios do sistema financeiro globalizado - tornou-se condição social necessária para a manutenção do sistema capitalista (HARVEY, 2014, pp. 91-93). Essa nova condição, aliás, tornou-se uma das mais importantes flechas do movimento globalizado da urbanização capitalista. Uma verticalidade que atua com força sobre os lugares, mas que ali se verga ante as peculiaridades da formação social, sem contudo, deixar de transparecer sua presença.

1.4 A dimensão do espaço intraurbano e do planejamento como