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Capítulo I Enquadramento Teórico

2.2 Intervenções e alterações de espacialidades

2.2.2.1 Dinâmicas e Processos no Espaço Público

ainda que tais alterações não sejam unicamente explicáveis por tais processos, como salienta a autora, mas também através da atuação do poder local, da securitização e “higienização” do espaço, bem como de investimento financeiro (Zukin, 2009, p. 550). Os próprios mapas, muitas vezes presentes em guias turísticos, devem ser vistos não como uma correspondência mimética entre um território e sua representação cartográfica, mas antes como uma construção que ocorre sempre a partir de algum lugar, implicando seleções70 (Acselrad & Coli, 2008, pp. 13-14).

Tais políticas e intervenções suscitam, assim, questões ao nível da representação simbólica dos espaços e populações em causa. Desde a forma como ocorre, das representações feitas, bem como da gestão dos diferentes interesses e relações de poder em presença. No seguimento do exposto anteriormente, tal acaba por repercutir-se na forma como tais espaços são representados e quais os seus significados, bem como ao nível das consequências ao nível do seu acesso e apropriação71.

2.2.2.1 Dinâmicas e Processos no Espaço Público

70 “Mas, a despeito de ser correntemente apresentado como um enunciado constatativo do real, o mapa não

deixa de ser um enunciado performático, que diz algo sobre o real e sobre este produz efeitos. Ele não é, pois, um reflexo passivo do mundo dos objetos, mas um intérprete de uma determinada “verdade, em que o crer se localiza no ver” (Balandier, 1987), um instrumento que “ordena e dá ordens” aos atores envolvidos na produção do território (Rivière, 1980, p. 379, apud Jourde, op. cit., p. 103-4). Assim sendo, se, por um lado, tornam-se claras as implicações políticas dos mapas, podemos falar, por outro lado, da emergência de políticas cartográficas, em que os mapeamentos são eles próprios objeto da ação política. E se ação política diz especificamente respeito à divisão do mundo social, podemos considerar que na política dos mapeamentos estabelece-se uma disputa entre distintas representações do espaço, ou seja, uma disputa cartográfica que articula-se às próprias disputas territoriais.” (Acselrad & Coli, 2008, pp. 13-14).

71 Como salienta Inês Guedes: “Inscritas nas políticas de intervenção urbana, as representações do espaço

têm implicações sociais por meio do processo de resignificação das práticas espaciais e das formas de viver hegemónicas que buscam impor. As transformações do quotidiano da cidade e a demarcação/ restrição das possibilidades de interacção e sociabilidade evitam que os actores sociais elaborem/produzam e se apropriem da cidade de forma igualitária, evitam o confronto com o estranho/Outro, promovendo a sua invisibilidade. Entre representados e não representados, produtores e não produtores do espaço urbano existem linhas de (in) visibilidade. Se os espaços urbanos são espaços de práticas sociais, loci de identificação e diferença, loci de significação, são portanto lugares que são reflectidos por e se reflectem nos grupos sociais neles presentes. Assim sendo, a não referência desta diversidade de práticas e actores nos documentos analisados reflectem uma falta de reconhecimento dos mesmos e a sua invisibilização simbólica.” (Guedes, 2012, p. 12)

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Em primeiro lugar, tanto pela sua centralidade nas dinâmicas e processos atuais no espaço público como pela sua relevância no caso de estudo, começaremos este capítulo pela problematização das relações e práticas de consumo e lazer no espaço público. Como refere Juliana Mansvelt, alguma da literatura sobre lugares de consumo, focando-se nas dimensões ideológicas e semióticas dos mesmos, tendeu a apresentar uma perspetiva de um sujeito consumidor como se de um indivíduo sem agência se tratasse, um sujeito passivo que reproduzia “(…) discourses and structures of consumption framed by producers (owners, designers, marketers, managers and advertisers) (…)” (Mansvelt, 2005, pp. 14-15). No entanto, outras investigações, relacionando tanto atributos materiais como simbólicos, salientaram a dimensão quotidiana de determinados espaços de consumo e a forma como os consumidores também desempenham práticas de consumo sem que tal corresponda a uma intencionalidade pretendida e/ou “programada” por parte dos produtores desses espaços, sendo assim igualmente capazes de alterar significados através das suas escolhas e agência72 (Mansvelt, 2005, p. 21). Contudo, a atenção a esta dimensão agencial não nos impede, tal como a autora não o pretende impedir, de considerar, relativamente à produção do espaço, alguns dos possíveis condicionamentos de práticas e relações que nele ocorram, sem que tal implique necessariamente uma dimensão intencional.

O consumo, em particular quando associado à esfera do lazer, também envolve processos conflituantes de democratização/massificação e de elitização, o que não deixa de ter influências espaciais, salientados da seguinte forma por Norberto Santos:

(…) esta massificação identifica uma forma, muito alargada, de acesso ao lazer, constituindo um processo de democratização do consumo. Todavia assiste‐se, em paralelo, a um processo de elitização, que se caracteriza por um estreitamento do número de pessoas capazes de aceder, quer a certos lazeres, quer a determinados espaços. (Santos, 2008, p. 145).

72 “This work has destabilized the notion of ‘the universal and passive consumer’, instead focusing on the

agency of consumers, examining the ‘work’ and skills employed in choosing, purchasing and using commodities, and the interpretations, sociality, tensions, meanings, emotions and knowledges inscribed in consumption practices (Crewe, 2001;Williams et al., 2001). Another significant area of research has been on the role of consumption in the place based constitution of social identities, problematizing the traditional separation between production and consumption identities (McDowell and Court, 1994).” (Mansvelt, 2005, p. 21).

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Sharon Zukin (Zukin, 2008) dá conta da forma como, mesmo práticas de consumo tida como “alternativas” são importantes para a criação de uma “aura de autenticidade”73, como seja,

por exemplo, a autenticidade “(…) based on the history of the area or the back story of their products, and capitalize on the tastes of their young, alternative clientele” (Zukin, 2008, p. 724). Sendo que, em tais situações, o consumo não deixa de ser uma prática diferenciadora e excludente, mesmo que “apenas” no que diz respeito aos significados culturais em causa, associado ao carácter “alternativo” e distintivo do produto e dos seus consumidores (Zukin, 2008). Um carácter de “alternativo” que é potenciado pela relação a um determinado espaço ou pelo papel desempenhado por determinados grupos sócio-culturais na valorização de um espaço e/ou produto em particular (Zukin, 2008) - algo que remete para a ideia anteriormente exposta de “intermediários culturais”, dada a valorização simbólica das preferências e “gostos” destes, ainda que esta valorização não se restrige a tais grupos. Além disso, tais práticas, tendo em conta a forma como podem reverter para uma possível valorização cultural da área, tendem ainda a influenciar possíveis processos de gentrificação nas áreas onde as mesmas ocorrem (Zukin, 2008).

Como se depreende, uma das principais tensões que ocorrem no espaço público diz respeito às questões que dizem respeito ao conflito, à exclusão, ao controlo, e às diferentes formas de propriedade. Por exemplo, Monica Degen (Degen, 2003, pp. 870-871) observa como determinados técnicas de construção do ambiente urbano, com o objetivo da minimização do conflito, implicam o uso simultâneo de mecanismos de coerção físicos e sensoriais onde o próprio sujeito desempenha um papel central na sua experiência enquanto consumidor. Tal é conseguido através de um desenho do espaço que procura criar um ambiente agradável e de prazer, no qual não existem experiências sensoriais negativas - como o conflito ou a insegurança -, nem potencialmente contrastantes com a temática do espaço que se pretende promover, mas, ao invés, procuram promover determinadas experiências positivas e sem conflito, mais associadas ao lazer e ao entretenimento (Degen, 2003, pp. 870-871). Trata-se de um exemplo que salienta o papel da materialidade do espaço público

73 “Authenticity is an ambiguous concept. It represents origins in two quite different senses: on the one

hand, an almost mythically primordial rootedness in place and time (Benjamin, 1968 [1936]) and, on the other, a capacity for historically new, creative innovation. Though in the second sense, authenticity nearly always applies to the artistry of exceptional individuals, it represents, in the first sense, the life-situation of a group. Authenticity might be used, then, as a proxy for Lefebvre’s espace vécu— as both a real set of social practices anchored to existing buildings and land, and a metaphorical framework to establish a vulnerable population’s right to make an urban place.” (Zukin, 2009, p. 544).

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como condicionante de determinadas formas de acesso e apropriação - algo que, no seu essencial, foi anteriormente explorado e não será repetido neste capítulo através da criação de um ponto específico para tal dimensão.

Também Catharina Thorn salienta que nos espaços públicos se observa a tensão entre a necessidade de uma maior atractividade, a qual muitas vezes leva à exclusão do que e daqueles que não se enquadram nas imagens e estratégias de atractividade privilegiadas - o que igualmente envolve a existência de conflitos ao nível dos significados do espaço público (Thörn, 2006, p. 68). Neste quadro, em que o espaço público se torna alvo de políticas de estitização e visto como um produto de atractividade e competitividade urbana, também a autora salienta a importância que o ideial de segurança e ausência de conflito74 apresenta na produção do espaço público (Thörn, 2006, pp. 69-70).

Ainda sobre os mecanismos de selecção, Ana Estevens e André Carmo referem como existe ainda outra forma, “mais súbtil e aceite tacitamente”, e que diz respeito à forma como a produção de espaços públicos associados a determinados códigos, símbolos, significados e expectativas, tendem a excluir e marginalizar aqueles que não se revelam capazes de interpretar os mesmos (Carmo & Estevens, 2008, pp. 10-11). Sobre tais tensões, os autores identificam a relação entre duas dinâmicas espaciais, “(…) uma, rápida e efémera - pósmoderna, outra, sólida e inflexível - fortaleza. (…) Por um lado, enfatizam-se valores como a pluralidade, a diferença, o festivo e o lúdico. Por outro, restringem-se as liberdades, aprisionam-se os espaços e vigiam-se os comportamentos e as práticas sociais.” (Carmo & Estevens, 2008, pp. 5-6). Por sua vez, Miguel Silva Graça enquadra tais formas de restrição e privatização em lógicas mais vastas. Tanto salientando um possível contrassenso entre a promoção da figura de consumidor enquanto se

74 “A key element on urban regeneration is the issue of security. Ensuring that new urban spaces are seen as

safe are on of the priorities for regeneration programmes (Raco 2003). The awareness on commercially attractive public spaces among politicians and businessmen creates a need to regulate and control the city centre. The presence of obviously homeless people, street crime and graffiti are not only viewed as potential threats to the credibility of the image of the city marketed by those in power but also seen as symbols of decay and insecurity. The consequence is the emergence of various public and private initiatives to “clean up” city centres. (…) Common to several of the proposals is that their point of origin is crime prevention. Crime – or threats against the order of public space −should be prevented before being committed. Roy Coleman argues that control today in cities is “strategically entwined with, and organized around, visualized spectacles that promote ways of seeing urban space as benign, ‘people centred’ and celebratory” (Coleman 2005:132).” (Thörn, 2006, pp. 69-70).

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assiste a um menor peso relativamente à “figura” de cidadão e aos seus direitos, bem como a fenómenos que vão de uma preferência individual para o uso do automóvel, condomínios privados, concessões privadas a espaços como praças, largos ou esplanadas, ou a proliferação de eventos e festivais, parques temáticos, publicidade na paisagem urbana, ou formas de gestão público-privada (Graça, 2007, pp. 217-218).

Estas dinâmicas apresentam o seu ponto mais elevado na forma como o espaço público tende, também ele, a ser cada vez mais um espaço onde os ideias de segurança, conforto e controlo são priviligiados, um espaço mais “higienizado”, exclusivo e dualizado75, prevalecendo o ideal de entretenimento sobre o de encontro/interacção ou de conflito, em que a própria ideia de diferença e diversidada surge controlada e tematizada, reduzida a determinadas imagens, e onde se observa uma maior intensidade de securitização (por autoridades públicas ou privadas) ou a presença de câmaras de vigilância/CCTV76 (Graham & Aurigi, 1997, pp. 21-25; Mitchell, 1995, pp. 119-121). Don Mitchel, abordando o exemplo da transformação de um determinado espaço público, salienta a existência de duas visões e interesses contrastantes (Mitchell, 1995, p. 115), as quais, apesar de poderem ser tomadas como ilustrativas de duas posições dicotómicas - e como tal co- constitutivas e com possibildidades de intersecção entre si -, não deixam por isso de ser relevantes para a presente problematização. Uma em que é valorizado o ideal de uma interação livre e sem restrições institucionais, com possibilidade de ser um espaço de visibilidade e antagonismo político. A outra, que estaria associada às entidades públicas e aos interesses privados para o local, era a de um espaço para o lazer e entretenimento, por parte de um público “apropriado” e autorizado a encontrar-se no mesmo, onde o ideal de conforto e segurança emergem. Sendo que, e de certa forma recuperando dimensões anteriormente referidas, Mitchel refere que o espaço público emerge

75 Stepehn Graham e Alessandro Aurigi salientam a ideia de invisibilidade, em particular ao nível da forma

como a construção de tais ambientes urbanos privilegia a participação e visibilidade de sujeitos já anteriormente numa posição de vantagem, ao mesmo tempo que procurando excluir aquilo e aqueles que não se coadunam com um determinado padrão de riqueza, comportamento e aparência (Graham & Aurigi, 1997, p. 25)

76 Trata-se de uma “disneyficação” como lhe chamou Zukin, na qual existe uma determinado forma de

produção do espaço urbano que “(…) creates a safe, clean, public space in which strangers apparently trust each other and just “have fun”. It has inspired big city governments to “disneyfy” by sponsoring urban “festivals” and themed shopping districts, by cleaning up public space, by installing private agents of surveillance and control and by turning over the management of public spaces to private associations of commercial property owners.” (Zukin, 1998, p. 832).

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e é mantido precisamente do confronto entre diferentes visões, bem como é um espaço onde quem “pertence” ao espaço público e adquire visibilidade pública se joga. Como refere o autor: “[p]ublic space is the product of competing ideas about what constitues that space - order and control or free, and perhaps dangerous, interaction - and who constitues “the public”.” (Mitchell, 1995, p. 115). Como salienta o autor, a forma como o “público” é definido e imaginado/representado torna-se relevante, em particular ao nível das diferentes intervenções no espaço público - sendo que, muitas vezes, este é visto de forma homogénea, sem considerar a sua diversidade interna, universalizando assim um determinado “público”, muitas vezes um “público” idealizado, e que tende a excluir outros “públicos” do “público” (Mitchell, 1995, pp. 120-121). Tratando-se, assim, de uma imagem de público que é não só idealizada e excludente, mas que, e tal como referido anteriormente, vai igualmente contra o próprio ideal do mesmo, em particular ao nível da sua diversidade e possibildiade de conflito.

Por último, importa ainda salientar a tensão entre público e privado, a qual não se restringe à sua dimensão jurídica. Como igualmente refere Miguel Silva Graça, a intensa utilização de determinados espaços privados tende a esbater fronteiras entre o público e privado, emergindo assim o que denomina de “usos coletivos nos espaços privados”77 (Graça, 2007, pp. 217-218). A

tensão existente entre a dimensão jurídica da propriedade do espaço público e a forma como se dá a sua apropriação é igualmente salientada por Alexandra Castro, referindo que não existe uma correspondência direta/linear entre as duas, tratando-se de uma construção social e política, implicando um processo e a tensão entre diferentes dinâmicas - em que, como refere a autora, diz respeito, antes de mais, à questão de um espaço comum78.

77 “De uma forma jurídica não é difícil traçar fronteiras entre o que é propriedade privada e propriedade

pública. Todavia em termos de uso apresenta-se como complexo definir exactamente o que constitui ou distingue os dois domínios. Certos espaços com estatuto jurídico privado são de facto usados como públicos, assim como, reciprocamente, muitos dos de domínio público ao serem privatizados deixam de ser acessíveis a todos.” (Graça, 2007, p. 218).

78 “São vários os autores que reconhecem que a abordagem do espaço público não se esgota numa análise

da sua natureza jurídica (cf. Capron,1998; Toussaint et al., 2001, entre outros). A passagem da noção de espaço público a “espaço do público” coloca a questão do estatuto do espaço comum. O espaço público é uma determinação político-jurídica, mas também um produto do uso social, ou seja, existem espaços públicos inacessíveis ou proibidos e outros, que não são juridicamente públicos, mas têm um uso colectivo intenso. A noção de público não é, pois, uma qualidade intrínseca a um espaço, mas sim uma construção social e política que resulta da combinação de vários factores, nomeadamente dos usos aí confinados; do

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2.2.2.2 Espaço, (in)Visibilidade e Corpo