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Capítulo I Enquadramento Teórico

2.1 Poder, Significados e Espaço

2.1.4 Espaço Público

Antes de avançar diretamente para a relação entre intervenção e espaço público, importa explorar as principais dimensões com que nesta dissertação iremos abordar o mesmo, na Praça do Martim Moniz. Em primeiro lugar, interessa-nos apresentar a crítica feita por Manuel Delgado em relação ao mesmo, embora a forma como o autor defina o conceito não corresponda à que será apresentada no final deste capítulo. Delgado (Delgado, 2011) afirma que o espaço público não existe - algo em relação ao qual aqui se discorda -, mas afirma que o espaço público não existe a partir da crítica de uma conceção que tomaria o espaço público num sentido de uma esfera pública

habermasiana, isto é, ligada a uma visão universalista e de cidadania, a qual não daria atenção

suficiente às diferentes relações de poder e conflitos existentes, e, em particular, não conferia atenção suficiente em relação a quem realmente se refere quando se invoca a “figura” de “cidadão”. O questionamento feito por Manuel Delgado obriga-nos a reconsiderar se os encontros realizados no espaço público são entre “cidadãos” considerados “livres e iguais” num mesmo plano, ou se, pelo contrário, através da utilização de tal categoria não são invisibilizadas outras experiências e identidades, esquecendo outras dimensões como sejam a classe social, idade, género ou etnicidade, as quais podem introduzir aspetos de diferença e desigualdade ao nível do acesso e apropriação do espaço público. No entanto, é também em parte por esta questão sinalizada por Delgado que aqui nos distanciamos da sua afirmação da “não existência de espaço público”, dado que ao mesmo tempo que deverá ser criticada a idealização de um estado de espaço público totalmente harmonioso e sem conflito, não deixa de ser igualmente pelo facto de este se tratar de um espaço de conflito - ainda que atendendo às diferentes relações de poder em presença -, que o mesmo se torna em espaço

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público. Isto é, e tal como será explorado posteriormente, o espaço público é um espaço de conflito57, e tal corresponde a uma das suas principais características.

Esta discussão torna-se relevante se atendermos ao facto de que a classificação de espaço público tender, geralmente, a encontrar-se circunscrita ou a uma dimensão jurídica, a propriedade pública, ou às suas características físicas, isto é, aqueles espaços que são tomados como os “espaços vazios”, e que apresentariam diferentes tipologias, como sejam a rua, a praça ou o largo (Castro, 2002; Carmo & Estevens, 2008; Pereira, 2012).Tendo presente as críticas de Manuel Delgado, bem como a necessidade de procurar ir para além das duas dimensões apresentadas, pretende-se salientar, em particular, as questões associadas à acessibilidade e apropriação do espaço público, bem como que este deve ser tomado como um processo, envolvendo continuidades e descontinuidades, e que se trata de um espaço de interações e circulações, de diferentes interesses e conflitos, e em relação ao qual não devem deixar de ser consideradas as diferentes relações de poder e significados associados ao mesmo (Castro, 2002; Carmo & Estevens, 2008; Pereira, 2012; Menezes & Reginensi, 2009, pp. 847-848). Num certo sentido, e antecipando desde já uma possível definição de espaço público, este, para o “ser efetivamente”, caracterizar-se-ia pela forma como seria possível um acesso livre58 que permitisse “(…) a livre circulação do corpo no espaço que o torna público e que estes espaços acessíveis pressupõem (…)” (Castro, 2002, p. 55), bem como

57 Como é aqui salientando, na linha de Simmel: “Em síntese, embora o conflito possa desembocar em

violência efectiva e explícita e comporte riscos ao nível da geração de anomia e da ruptura da coesão social, deve ser encarado como um fenómeno social inerente ao próprio funcionamento das sociedades, uma vez que é a expressão da existência de interesses divergentes e de objectivos distintos por parte dos actores sociais. Adicionalmente, o conflito pode ter efeitos positivos ao nível da identificação dos elementos comuns dos grupos e, em sequência, do reforço da sua própria coesão interna. Por último, o conflito pode dar contributos fundamentais para o próprio processo de regulação social, uma vez que, na maioria dos casos, força o estabelecimento de compromissos assentes em regras e em normas sociais que permitam o funcionamento e a coexistência dos antagonistas.” (Malheiros & Mendes, 2007).

58 Como igualmente salienta Alexandra Castro: “O termo público definir-se-ia, então, pelo inverso dos

critérios associados à noção de privado, ou seja, reenvia à noção de acessibilidade totalmente livre: possibilidade de a ele aceder em qualquer momento, por qualquer pessoa, para desenvolver actividades não explicitamente determinadas. Trata-se de um espaço em que o homem, como cidadão ou hospedeiro, tem uma liberdade total de circulação e onde é possível a interacção livre e não controlada entre indivíduos supostamente autónomos (Rémy e Voyé, 1981: 91-94).” (Castro, 2002, p. 54).

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uma apropriação ao nível de diferentes relações e práticas por parte de diversos59 sujeitos

(individuais e coletivos). Isto é, “(…) um território capaz de suportar diferentes usos e funções e não se ignorar que ele é também espaço de expressão colectiva, da vida comunitária, do encontro (…)” (Castro, 2002, p. 55), bem como de diferentes significados, por vezes conflituantes, em constante formação e contestação.

No que a uma tipologia empírica de espaços públicos diz respeito, e focando-nos apenas no que aos do centro da cidade diz respeito dada a sua correspondência com o presente caso de estudo, importa ainda salientar que estes são geralmente um espaço de “anonimato e de relações impessoais”, em que as “regras de sociabilidade” não são necessariamente aplicadas e existe uma maior “tolerância face aos comportamentos dos outros” (Castro, 2002, p. 63). Além disso, os seus usos, dos espaços públicos do centro da cidade, encontram-se geralmente “(…) ligados às actividades profissionais, aos lazeres e ao divertimento.” (Castro, 2002, p. 63), e são muitas vezes ocasionais/circunstanciais, e em que o utilizador do mesmo “raramente é habitante” do espaço circundante (Castro, 2002, p. 63).

Sendo que a questão das relações de poder é central no que diz respeito ao espaço público, nas suas várias dimensões. Entre outras questões, torna-se relevante, seguindo uma perspetiva intersecional, analisar a forma como diferentes dimensões de diferença se articulam e (re)produzem no espaço público, bem como a própria forma como este se (re)produz, através de que relações e práticas, de que continuidades e descontinuidades, de que inclusões e exclusões, de que (re)produções de normatividades e desigualdades - mas também de que possibilidade de subversões das mesmas -, e, como tal, de que diferentes relações de poder que se encontram em presença. Importa ainda ter em consideração que a eliminação desta dimensão mais conflituosa no espaço público não seria necessariamente a ausência de conflito, mas antes o seu deslocamento para outra

59 “O temor parece ser o de que transitoriedade e restrições à acessibilidade diminuam o espaço público

porque reduzem a diversidade, ainda que potencial, a que se está sujeito nos locais onde ele se configura. A diversidade é comumente apontada como essencial para que um espaço possa se tornar público – a ágora grega, esse arquétipo do espaço público multifuncional como o define Mônica Brito Vieira, era um “espaço efectivamente vivido e susceptível de apropriação colectiva diferenciada” (2008, p. 83). (…) A diversidade também é apontada como essencial à cidade, que atrai e recompensa as diferenças individuais justamente em razão da diferença e permite ao indivíduo uma mobilidade entre redes e uma convivência com o outro que conferem-lhe as características de "cosmopolitismo e sofisticação" (Wirth, 1997, p. 57) próprias do urbanita. A diversidade parece tão natural ao meio urbano que surpreendemo-nos é quando nele encontramos conhecidos – e não estranhos (Innerrarity, 2006).” (Pereira, 2012, pp. 5-6)

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esfera, em particular ao nível do controlo do acesso e apropriação do mesmo relativamente a alguns sujeitos. A questão estaria assim não tanto na eliminação do conflito, mas na forma como este ocorre. Isto é, a análise do espaço público implica um questionamento de que sujeitos a ele têm acesso e detêm a possibilidade de o apropriam, bem como quais as relações e práticas que nele decorrem. O espaço público é sempre dependente das relações de poder em presença, dado que, como refere Alexandra Castro, neste existem duas dimensões fulcrais ao nível da sua apropriação e acesso: “[p]or um lado tratam-se de “espaços do visível”, regulados por um “direito de olhar” e, por outro, de espaços acessíveis, ordenados por um “direito de visita”.” (Castro, 2002, p. 55). Sendo que estas formas de regulação encontra-se muitas vezes implícitas, dado que, como salientam Eduarda Ferreira e Regina Salvador numa investigação recente onde demonstram o carácter heteronormativo do espaço público, “[p]ublic spaces are constructed around hidden, subtle, non-verbalized and implicit codes of behaviour.” (Ferreira & Salvador, 2014, p. 1).

Por último, e de certa forma sintetizando algumas das questões anteriores e apontando já para uma dimensão analítica, importa finalizar este capítulo com a problematização apresentada por Alexandra Castro, influenciada por Marcus Zepf, relativa tanto a uma análise “dos processos de utilização, produção e formação” dos espaços públicos, como dos seus fatores de urbanidade e a sua relação com diversos processos atuais com incidência no mesmo - como seja a sua “teatralização, festivalização e comercialização” (Castro, 2002, p. 65). Sendo que, relativa à primeira questão, torna-se relevante:

“(…) compreender como i) se constituem as representações e as concepções dos “produtores” (profissionais do espaço e políticos); ii) se organizam as práticas sociais dos utilizadores (residentes, cidadãos e visitantes); iii) se formalizam os parâmetros espaciais (aspectos geográficos, características arquitectónicas, composição do mobiliário urbano).” (Castro, 2002, p. 65).

E, no que às dimensões de urbanidade diz respeito, a problematização apresentada permite- nos ir além de determinadas dicotomias. Ao nível social, trata-se de analisar as relações entre “(…) esfera pública/esfera privada; densidade/diversidade; segurança/animação; conflito/tolerância (…) (Castro, 2002, p. 65), salientado a importância de considerar a “heterogeneidade e densidade de grupos sociais”, a necessidade de “um sentimento de segurança fundado num controlo social informal”, o surgimento de “códigos de comportamentos que favorecem o reencontro e a comunicação”, e, por último, “conflitos de uso e de estatuto que marcam a emancipação do indivíduo face ao controlo social” (Castro, 2002, pp. 65-66). Uma dimensão espacial que incida

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sobre o “tecido urbano” e a “dialética entre espaços cheios e vazios” (Castro, 2002, p. 66). E, por último, uma dimensão político-administrativa, a qual deverá considerar as funcionalidades reais e potenciais do espaço, as continuidades e descontinuidades, as lógicas de permanência ou de passagem, e de ordem e de desordem ao nível do espaço público (Castro, 2002, p. 66). Estas dimensões, tal como referido, procurarão ser considerar na análise ao caso de estudo.