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Capítulo I Enquadramento Teórico

2.1 Poder, Significados e Espaço

2.1.3 Relações, Práticas e Ritmos Espaciais

A problematização feita por Simmel, apresentada no seu clássico artigo “A Grande

Metrópole e a Vida do Espírito” (Simmel, 2005), é uma boa forma de começar a discussão sobre

as relações que ocorrem em espaço urbano. Nele, o autor salienta os efeitos que a metrópole teria nos indivíduos, efeito esse que o autor denomina de “intensificação da vida nervosa” e que resultaria “(…) da mudança rápida e ininterrupta de impressões interiores e exteriores.” (Simmel, 2005, p. 578). A característica invocada pelo autor para caracterizar as relações sociais em tal meio é a de uma atitude blasé, tomada como “(…) a consequência daqueles estímulos nervosos — que se alteram rapidamente e que se condensam em seus antagonismos — a partir dos quais nos parece provir também a intensificação da intelectualidade na cidade grande.” (Simmel, 2005, p. 581). Nesta descrição, o autor oferece-nos a figura de um sujeito urbano que, face aos diferentes e intensos estímulos ao qual é sujeito em ambiente urbano, seria obrigado a proteger-se dos mesmos, de uma forma que pode ser considerada como individualizada e/ou atomizada49, a qual não deixa de apresentar como consequência um menor contacto e intensidade relacional com outros indivíduos devido a uma atitude de distanciação e indiferença, ainda que esta mesma atitude também lhe garanta uma certa forma e grau de liberdade e autonomia (Simmel, 2005, pp. 582-583). No entanto, tal não implica necessariamente uma atomização face à sociedade, mas envolve, isso sim, uma dimensão de maior racionalização (ou “intelectualidade”, nas palavras de Simmel) por parte do indivíduo ao nível das suas diversas circulações e interações, das mais indiferentes às mais

outro(s), pessoas e lugares, e as estratégias identitárias adoptadas para a apresentação do “eu-nós”. A experiência urbana define-se deste modo na relação dialéctica interior/exterior, através de elementos e processos de auto inscrição/exclusão territorial e/ou grupal que se definem no confronto com a identidade socioespacial que é atribuída aos lugares.” (Silva, 2006, pp. 173-174).

49 Como refere Simmel, numa passagem que se tornou célebre: “Enquanto o sujeito se ajusta inteiramente

por conta própria a essa forma de existência, a sua autoconservação frente à cidade grande exige-lhe um comportamento não menos negativo de natureza social. A atitude espiritual dos habitantes da cidade grande uns com os outros poderia ser denominada, do ponto de vista formal, como reserva. Se o contato exterior constante com incontáveis seres humanos devesse ser respondido com tantas quantas reações interiores — assim como na cidade pequena, na qual se conhece quase toda pessoa que se encontra e se tem uma reação positiva com todos —, então os habitantes da cidade grande estariam completamente atomizados interiormente e cairiam em um estado anímico completamente inimaginável.” (Simmel, 2005, p. 582).

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intensas, das mais êfemeras às mais contínuas temporalmente (Simmel, 2005, pp. 582-583). Como refere Simmel: “(…) o que aparece aqui imediatamente como dissociação é na verdade apenas uma de suas formas elementares de socialização.” (Simmel, 2005, p. 583).

Num trabalho mais recente, Lars Frers e Lars Meier (Frers & Meier, 2007) apresentam uma dimensão da relacionalidade e encontro em meio urbano que, apesar de não ser necessariamente oposta à de Simmel, permite pensar esta questão integrando, de forma mais explícita, uma dimensão ao mesmo tempo espacial e cultural. Segundo os autores, em cada encontro atribuímos significados, em parte pré-configurados e que funcionam como expectativas, os quais apresentam uma função diferenciadora, quer em relação aos locais onde estes ocorrem, quer em relação aos indivíduos e grupos sociais envolvidos50 - quer ao nível do género, etnicidade, classe, ou outra identidade. Como referem os autores: “The perception of the other is accompanied by specific expectations, which we are assigning in our gaze. Ascribing specific meanings to identities, the concrete encounter is regulated by these ascriptions.” (Frers & Meier, 2007, p. 1). No entanto, estes significados não são estáticos, mas antes um processo, socialmente (re)produzidos e passíveis de contestação a cada novo encontro. Ao mesmo tempo, e tal como já salientado em parte, o facto de tais encontros ocorrem num dado local, faz com que o mesmo seja relevante para os significados presentes no encontro/interação. Como referem os autores, são várias as representações e significados em relação a um dado local, as quais não deixam de estar presentes nos “encontros com esse mesmo local”, bem como ao nível dos diferentes encontros e relações que nele se realizem.

Concluindo, analisar relações num dado espaço, implica considerar não só a duração e o tipo de contactos/relações entre diferentes sujeitos nos mesmos, mas também analisar a forma como determinados significados se encontram presentes e poderão ser (re)produzidos e/ou contestados em tal relação, tanto a um nível cultural como espacial.

50 Alexandra Castro, num trabalho sobre espaço público, salienta precisamente a forma como, por vezes, as

relações entre diferentes grupos sociais se encontram envoltas em conflito: “Para Pinçon (1981) este fenómeno relaciona-se, sobretudo, com o facto da proximidade física não corresponder a uma proximidade social e de, na ausência de um grupo dominante, se assistir ao confronto de práticas e valores diversificados consoante os grupos que procuram impor-se. Muitos conflitos estão na origem de incompreensões alimentadas por concepções e práticas diferenciais do espaço público e do espaço privado, por comportamentos julgados naturais por uns e reprovados por outros.” (Castro, 2002, p. 58).

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Um dos contributos mais relevantes para abordar as práticas espaciais foi feito por Henri Lefebvre, ao nível da sua proposta relacional e interligada entre “práticas espaciais”, “representações de espaço” e “espaços representacionais”51, - uma proposta que, posteriormente,

influenciou Edward Soja para a sua problematização do conceito de espacialidade52, anteriormente apresentado. Como refere Ana Azevedo, por sua vez influenciada pela leitura de Andy Merrifield sobre Henri Lefebvre, “(…) as práticas espaciais estruturam a realidade quotidiana assim como a realidade social mais vasta e incluem circuitos, redes e padrões de interacção que ligam lugares de trabalho, diversão e lazer (Merrifield, 2000).” (Azevedo, 2006, p. 81). Num sentido semelhante ao apresentado anteriormente por Lars Frers e Lars Meier, e tal como fica claro na citação de Lefebvre apresentada, para o autor as práticas espaciais estão englobadas na (re)produção do espaço, sendo importantes para a própria relação com as outras dimensões referidas, isto é, entre as “representações de espaço associadas às relações de produção” e os “espaços representacionais” que envolvem e implicam símbolos e significados sobre o mesmo.

51 “A “tríade conceptual” que emerge da problematização de Lefebvre apresenta o autor do seguinte modo:

“1 Práticas espaciais, que englobam produção e reprodução, e as localizações particulares e conjunto espaciais característicos de cada formação social. A prática espacial fornece continuidade e algum grau de coesão. Em termos de espaço social, e à relação com o espaço de cada membro de uma dada sociedade, esta coesão implica um nível assegurado de competência e um nível específico de performance. 2 Representações de espaço, associadas às relações de produção e à “ordem” imposta por essas relações, e assim ao conhecimento, aos sinais, aos códigos, e às relações “frontais”.

3 Espaços representacionais, incorporando simbolismos complexos, por vezes codificados outras vezes não, ligados ao lado clandestino ou subterrâneo da vida social, assim como à arte (que eventualmente poderá vir a ser definida menos como um código do espaço que como um código de espaços representacionais).” (2002:139)” (Azevedo, 2006, pp. 80-81).

52 Cujas diferenças são assim exploradas e sintetizadas por Ana Azevedo: “Interessado no estudo da

produção social do espaço sob o capitalismo, o geógrafo Edward Soja é outro dos autores que desenvolve extensivamente a teoria de Lefebvre. Em vez de apresentar um dialéctica entre espaço e lugar, Soja propõe uma “trialéctica da espacialidade” (Soja, 1996) passível de transcender as oposições entre espaço “mental” e espaço “material” que tinham ocupado Lefebvre. Tentando levar mais longe as formulações daquele autor, Soja defende que a estrutura do espaço organizado não é uma estrutura separada com as suas leis autónomas de construção e transformação, nem é simplesmente uma expressão da estrutura de classes emergindo das relações sociais de produção (a-espaciais). Ela representa, ao invés, uma componente dialecticamente definida das relações gerais de produção, relações que são simultaneamente sociais e espaciais (Soja,1980:208).” (Azevedo, 2006, p. 83).

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Por sua vez, e dando um contributo mais específico em relação a uma “teoria da prática”, Lars Petersen (Petersen, 2013, pp. 357-358) define prática como um “certo padrão de ações”, salientando que estas não são algo de simplesmente arbitrário, mas antes devem ser pensadas como uma certa configuração “orientadora” de ações e discursos (Petersen, 2013, pp. 357-358) - um pouco na linha da problematização de autores anteriormente referidos, como Foucault e Hall. As práticas apresentam tanto uma dimensão individual como coletiva, relacionando simultaneamente agência e estrutura numa situação concreta, bem como apresentam uma dimensão material, compreendendo “diferentes forças que são formadas e formam diferentes práticas”53 (Petersen,

2013, pp. 357-358).

Neste sentido, e fazendo a ligação com o caso de estudo, interessa-nos no presente trabalho observar as práticas mais regulares/repetidas e seus padrões que ocorram na praça do Martim Moniz, em relação com um contexto social e cultural específico e à possibilidade de (re)produção e/ou contestação de significados e sujeitos (individuais e coletivos) associados à mesma e/ou que nela se encontrem presentes.

Ritmos

Relativamente às temporalidades e ritmos urbanos, são vários os autores que, inspirados na proposta de ritmanálise de Lefebvre, recentemente têm vindo a desenvolver esta questão. Filipa Matos Wunderlich refere que a temporalidade envolve vários elementos (como a natureza, as pessoas ou o espaço), em relação dinâmica entre si, os quais não deixam eles próprios de ser elementos rítmicos, bem como as relações entre os mesmos desencadearem e apresentarem a forma de diferentes ritmos (Wunderlich, 2008 , p. 91). Para Wunderlich, os ritmos urbanos envolvem tanto uma dimensão do quotidiano como dos próprios ritmos espaciais, e podem apresentar tanto

53O autor apresenta uma tipologia referente a esta questão:

 “the biophysical and technological environment in which practices take place and the tools and artefacts that are used

 socially distributed discourses, collective sentiments, norms and worldviews  socially distributed regulations, standards, laws and formalized procedures

 experience-based, sensuous and bodily knowledge and practical know-how” (Petersen, 2013, p. 358)

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uma dimensão dinâmica como estática, cíclica ou linear54, e, como tal, envolvem “(…) movement

or the perception of movement as suggested by bodies/objects or surface patterns in space.”55

(Wunderlich, 2008 , pp. 91; 97-98). Como refere Wunderlich, os ritmos urbanos tornam-se importantes para a criação de imagens e significados de um dado espaço, sendo assim relevantes para as suas representações coletivas, influenciando a forma como nos relacionamos e apropriamos de um dado espaço56 (Wunderlich, 2008 , pp. 106-107). Como salienta Monica Degen, no seguimento da ideia anterior, Lefebvre parte da premissa de que o espaço é experienciado, em

54 “Rhythms in a spatial context involve interactions between people, and interaction between people and

spaces, which react to displaced objects and the morphology of the spaces. These are superimposed on by natural rhythms, such as the cyclical changes of nature as seasons, day and night cycles, varying weather conditions, and so on. Social, spatial and natural rhythms together influence, shape and characterise everyday life in urban environments and are responsible for the perception of time in places and feelings of identity. In this context, urban rhythms nurture senses of time and place. This in particular is significant for the understanding of urban places, with rhythms as traces of temporality influencing the character and perception of identity.” (Wunderlich, 2008 , p. 92)

55 Segundo Tim Edensor, apesar de Lefebvre salientar a repetição, tal não quer dizer que se trata de um

ritmo idêntico, bem como a própria questão entre repetição e não-repetição se encontrar relacionada com o poder e a possibilidade de reprodução de certas normatividades: “Lefebvre is explicit that there is no ‘rhythm without repetition in time and space, without reprises, without returns, in short, without measure’. However, he is also insistent that ‘there is no identical absolute repetition indefinitely … there is always something new and unforeseen that introduces itself into the repetitive’ (2004: 6). With this focus on multiple quotidian rhythms, we may identify how power is instantiated in unreflexive, normative practices but also side- stepped, resisted and supplemented by other dimensions of everyday experience.” (Edensor, 2010).

56 Algo que, como refere a autora, também influencia a própria dimensão mais subjetiva e sensorial: “Urban

rhythms influence one’s feelings in space and about space. The way a place feels – social and intimate, or distant and cold – relates to the presence or absence of certain groups of rhythms, and to the way they do or do not relate to each other. Whether one feels a place to be social and relaxed, or speedy and stressed, depends on the intensity and dominance of certain kinds of urban rhythms in that space, either social rhythms, personal and biological rhythms (when one walks alone in a place), or, similarly, natural rhythms, and the physical rhythms and clock rhythm. (…) dominant regular or intense rhythms in urban space influence how one understands, perceives and feels places – for example, sociable, collective or impersonal – and, in this way, add to the sense of the individual and social level in the sense of place. Furthermore, temporal regularities (urban rhythms) nurture feelings of permanence, security, familiarity and senses of fellowship, intimacy and well-being in urban places. These are based on shared experience (Jackson 1994: 25).” (Wunderlich, 2008 , p. 107). Ainda que, como refere posteriormente a autora, a alteração de ritmos não represente necessariamente uma quebra de um “sentimento de estabilidade”, mas, isso sim, representa um “aumento da densidade de significados” (Wunderlich, 2008 , pp. 107-109).

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primeiro lugar e principalmente, através do corpo, e que tal nos obriga a considerar a forma como a experiência espacial é feita e influenciada a partir de diferentes dimensões sensoriais, espaços sensoriais ou “ambientes/atmosferas” urbanas particulares, presentes num dado local ou entre diferentes locais, e de como tal se encontra envolto em relações de poder (Degen, 2010).

A consideração dos ritmos espaciais implicará, assim, a consideração de várias influências e dimensões, e da sua temporalidade - a qual poderá apresentar várias escalas temporais -, considerando, em particular, as relações e possíveis tensões entre continuidade e rutura para a formação de significados e de um ambiente urbano que possa apresentar uma coerência/forma particular, bem como das relações de poder presentes em tais processos.