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8. O Brasil e os tratados internacionais de direitos humanos

8.2. Os direitos humanos na Constituição de 1988

8.2.3. Direito comparado

A fim de que se verifiquem de forma adequada os acertos e desacertos das teorias que ganharam terreno no contexto brasileiro, impende, ainda que de forma

      

257 RAMOS, Elival da Silva. “Os tratados sobre direitos humanos no direito constitucional brasileiro

pós-Emenda Constitucional 45/04”. In: AMARAL JR., Alberto do e JUBILUT, Liliana Lyra (orgs.). O

STF e o direito internacional dos direitos humanos, p.183.

258 NUNES Jr., Vidal Serrano. A cidadania social na Constituição de 1988, p. 30, nota de rodapé n.

 

breve, fazer menção às soluções que o direito positivo estrangeiro encontrou para as antinomias entre tratados internacionais de direitos humanos e as legislações internas dos Estados.

Essa análise comparativa ganha relevância diante do fato de que, como já afirmado, a origem de toda a controvérsia no direito brasileiro (e das várias teorias que tentam fornecer uma solução para o dilema de tais antinomias) reside no modo lacônico e defeituoso encontrado pela Constituição brasileira para regular a matéria. Tal análise evidencia ainda o fato de que, ao contrário do que sustenta parte da doutrina, não podem ser adotadas determinadas soluções de lege ferenda, que extrapolariam as possibilidades interpretativas contidas no potencial semântico dos dispositivos nacionais que regulam a matéria.

Nesse tocante, há que se observar que, embora seja inegável uma maior evolução do direito internacional no contexto da Comunidade Europeia, as Constituições dos países europeus têm previsões de naturezas as mais diversas no que tange à integração entre normas internacionais e normas internas. Contudo, diante do avançado estágio de desenvolvimento da União Europeia em relação as demais comunidades supranacionais, tais previsões, via de regra, fazem expressa menção ao direito internacional.

Convém citar, à guisa de exemplo, algumas soluções encontradas no direito europeu.

A Constituição portuguesa de 1976 traz, em seu artigo 16 (1), previsão similar àquela estampada na Carta brasileira:

Artigo 16.º

Âmbito e sentido dos direitos fundamentais

1. Os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional.

2. Os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

 

Acerca do item 1 do aludido artigo, constata-se imensa semelhança com a primeira parte do art. 5º, § 2º, da Constituição brasileira. De acordo com Jorge Miranda, “o art. 16, n. 1, da Constituição aponta para um sentido material de direitos fundamentais: estes não são apenas os que as normas formalmente constitucionais enunciem; são ou podem ser também direitos provenientes de outras fontes, na perspectiva mais ampla da Constituição material”259. O item 2, por seu turno, traz norma de maior precisão, definindo o modo de interpretação inclusive das normas constitucionais, evidenciando assim a interação entre estas e a Declaração Universal dos Direitos do Homem (vale lembrar que inexiste previsão similar na Constituição brasileira).

A Constituição espanhola, de 1978, guarda grande similaridade com a portuguesa. Com efeito, seu artigo 10 preconiza:

Artículo 10.

1. La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la Ley y a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social.

2. Las normas relativas a los derechos fundamentales y a las libertades que la Constitución reconoce se interpretarán de conformidad con la Declaración Universal de Derechos Humanos y los Tratados y acuerdos internacionales sobre las mismas materias ratificados por España.

A Constituição francesa, de 1958, adota expressamente, em seu artigo 55, a teoria da supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos:

Art. 55. Os tratados ou acordos devidamente ratificados e aprovados têm, desde a data de sua publicação, autoridade superior à das leis, sob reserva, para cada acordo ou tratado, de sua aplicação pela outra parte. 

A Constituição italiana de 1948, em seu artigo 10, trata de uma série de questões. A primeira parte do dispositivo, no entanto determina: “O ordenamento

      

 

jurídico italiano adéqua-se às normas do direito internacional geralmente reconhecidas. A condição jurídica do estrangeiro é regulamentada pela lei, em conformidade com as normas e os tratados internacionais”.

O dispositivo não trata, assim, especificamente da hierarquia dos tratados de direitos humanos, embora faça menção à adequação do ordenamento jurídico como um todo ao direito internacional.

A Lei Fundamental alemã, de 1949, prevê, em seu artigo 23 (1) o seguinte:

(1) Para a realização de uma Europa unida, a República Federal da Alemanha contribuirá para o desenvolvimento da União Europeia, que está obrigada à salvaguarda dos princípios democrático, do Estado de Direito, social e federativo e do princípio da subsidiaridade, e garantirá uma proteção dos direitos fundamentais comparável, no essencial, à assegurada pela presente Lei Fundamental. Para este fim, a Federação poderá transferir direitos de soberania, por meio de lei que requer a aprovação do Conselho Federal. Os incisos 2 e 3 do artigo 79 se aplicam à criação da União Europeia, às reformas dos tratados constitutivos e a todo o ordenamento análogo, mediante os quais a presente Lei Fundamental seja reformada ou completada em seu conteúdo ou possibilitem tais reformas.260

Embora tal dispositivo não trate da hierarquia dos tratados internacionais, constata-se, em sua redação, que tratados internacionais podem vir a alterar o conteúdo da Lei Fundamental, embora, para tanto, seja necessária a edição de lei específica.

Assim, como afirmado, é possível verificar no ambiente europeu, a despeito da pluralidade de formas, uma interação explícita entre as normas internas e o

      

260 Tradução livre da versão em espanhol da Lei Fundamental. Disponível em:

http://www.brasil.diplo.de/Vertretung/brasilien/pt/01__Willkommen/Constituicao__Hino__Bandeira/Co nstituicaoEspanhol__PDF,property=Daten.pdf (na versão em espanhol: “Para la realización de una

Europa unida, la República Federal de Alemania contribuirá al desarrollo de la Unión Europea que está obligada a la salvaguardia de los principios democrático, del Estado de Derecho, social y federativo y del principio de subsidiaridad y garantiza una protección de los derechos fundamentales comparable en lo esencial a la asegurada por la presente Ley Fundamental. A tal efecto, la Federación podrá transferir derechos de soberanía por una ley que requiere la aprobación del Bundesrat. Los apartados 2 y 3 del artículo 79 se aplican a la creación de la Unión Europea, al igual que a las reformas de los tratados constitutivos y a toda normativa análoga mediante la cual la presente Ley Fundamental sea reformada o completada en su contenido o hagan posible tales reformas o complementaciones.”). Acesso em 21.09.2010. 

 

direito internacional, fruto do estágio evolutivo em que a supranacionalidade se encontra naquela seara.

Na América Latina, a despeito do passado relativamente recente marcado por várias ditaduras que promoveram o desrespeito aos textos constitucionais e aos direitos humanos (o que resultou numa cultura de menosprezo às instituições políticas e à lei, e numa ainda incipiente comunidade supralegal, se comparada com o estágio de evolução atingido pela comunidade europeia), é possível verificar que muitas Constituições cuidam dos tratados de direitos humanos, e em especial da relação hierárquica destes com as ordens internas, de forma mais explícita, precisa e completa que a Constituição brasileira de 1988. Alguns exemplos, a seguir elencados, o demonstram de forma clara.

A Constituição da Argentina, reformada em 1994, no inciso 22 de seu artigo 75, determina, em sua parte final, que os tratados internacionais têm hierarquia superior à das leis. Contudo, os tratados internacionais de direitos humanos que o dispositivo expressamente enuncia têm, conforme previsão expressa, hierarquia de norma constitucional261.

A Constituição da Venezuela, de 1999, traz norma de similar conteúdo em seu artigo 23, embora não elenque expressamente, como a Constituição argentina,

      

261 Preconiza o aludido dispositivo, em sua redação original: “Artículo 75. Corresponde al Congreso: (...) 22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leyes. La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Facultativo; la Convención Sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención Sobre la Eliminación de Todas las Formas de Discriminación Contra la Mujer; la Convención Contra la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la Convención Sobre los Derechos del Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo Nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara. Los demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el Congreso, requerirán el voto de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara para gozar de la jerarquía constitucional”.

 

os tratados que teriam status constitucional, atribuindo patamar hierárquico a todos os tratados internacionais sobre direitos humanos. Preconiza o aludido artigo:

“Artículo 23. Los tratados, pactos y convenciones relativos a

derechos humanos, suscritos y ratificados por Venezuela, tienen jerarquía constitucional y prevalecen en el orden interno, en la media en que contengan normas sobre su goce y ejercicio más favorable a las establecidas por esta Constitución y la ley de la República, y son de aplicación inmediata y directa por los tribunales y demás órganos del Poder Público”.

Assim, tanto a Constituição argentina quanto a venezuelana reconhecem expressamente a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Disposições no mesmo sentido constam das Constituições da Costa Rica (art. 43), do Equador (arts. 43 e 17), de El Salvador (art. 28) e de Honduras (art. 119, 2).262

A Constituição do Chile, de 1980, dá tratamento menos específico à matéria, trazendo previsão similar à da Constituição brasileira, ao determinar, na segunda parte de seu art. 5º, que

El ejercicio de la soberanía reconoce como limitación el respeto a los derechos esenciales que emanan de la naturaleza humana. Es deber de los órganos del Estado respetar y promover tales derechos, garantizados por esta Constitución, así como por los tratados internacionales ratificados por Chile y que se encuentren vigentes.

Em relação à Constituição do Peru, constata-se um retrocesso por ocasião da promulgação da nova Constituição, em 1993, em relação à Carta anterior, de 1979, como informa Flávia Piovesan:

A então Constituição do Peru de 1979, no mesmo sentido, determinava, no art. 105, que os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos têm hierarquia constitucional e não podem ser modificados senão pelo procedimento que rege a reforma da própria       

262 Conforme levantamento efetuado por Patrícia Cobianchi Figueiredo (“Hierarquia normativa dos

tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro antes e após a Emenda Constitucional 45 de dezembro de 2004”. In: PIOVESAN, Flávia, e IKAWA, Daniela (coords.). Direitos humanos: fundamento, proteção e implementação. Perspectivas e desafios

 

Constituição. Já a atual Constituição do Peru de 1993 consagra que os direitos constitucionalmente reconhecidos devem ser interpretados em conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Peru. Decisão proferida em 2005 pelo Tribunal Constitucional do Peru endossou a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, adicionando que os direitos humanos enunciados nos tratados conformam a ordem jurídica e vinculam os poderes públicos.263

Observa a autora que

a Constituição da Nicarágua de 1986 integra à enumeração constitucional de direitos, para fins de proteção, os direitos consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, nos dois Pactos de Direitos Humanos das Nações Unidas e nas Convenções Americana sobre Direitos Humanos. Essa Constituição confere, assim, hierarquia constitucional aos direitos constantes dos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos.

Acrescenta, ainda, que

“outro exemplo é a Constituição da Guatemala de 1986, ao prever que os direitos e garantias nela previstos não excluem outros que não figurem expressamente do catálogo constitucional. Esse texto adiciona que os tratados de direitos humanos ratificados pela Guatemala têm preeminência sobre o direito interno, nos termos do art. 46. Na mesma direção segue a Constituição da Colômbia de 1991, reformada em 1997, cujo art. 93 confere hierarquia especial aos tratados de direitos humanos, determinando que estes prevalecem na ordem interna e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados em conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pelo País.264

Verifica-se, assim, em relação à América Latina, que os textos constitucionais não se pautam pela uniformidade. Ora abordam a temática da hierarquia dos tratados internacionais com precisão, atribuindo-lhes status de norma constitucional (como as Constituições da Argentina e da Venezuela), ora retrocedem em relação às conquistas no campo dos direitos humanos (como a

      

263 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, p. 83-4. 264 Idem, p. 84.

 

nova Constituição peruana), ora tratam da questão de forma lacônica e insuficiente (como a Constituição chilena).

Resta evidente, à luz do cotejo entre as Constituições mencionadas, que a escolha do legislador constituinte brasileiro não foi a mais acertada.