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4. A internacionalização da proteção dos direitos humanos

4.2. Os sistemas regionais de proteção

4.2.3. Sistema africano

Dos três principais sistemas regionais, o sistema africano é o mais recente, uma vez que sua implantação ocorreu apenas na década de 1980, com a adoção da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos em 1981, cuja vigência

       Estado pela Assembleia Geral da OEA”; a terceira proposta “compreende a demanda por maior democratização do sistema, permitindo o acesso direto do indivíduo à Corte Interamericana – hoje restrito apenas à Comissão e aos Estados”; finalmente, a quarta proposta, “de natureza logística, seria a instituição de funcionamento permanente da Comissão e da Corte, com recursos financeiros, técnicos e administrativos suficientes” (in Direitos humanos e justiça internacional, p. 116-8).

85 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e o direito interno, p.

127. O desgaste moral a que se refere o autor corresponde ao power of shame ou power of

embarrassment mencionado por Flávia Piovesan, cuja insuficiência – a despeito de sua inequívoca

relevância – foi anteriormente apontada (cf. nota n. 80).

86 George Rodrigo Bandeira Galindo aponta relevante mudança de parâmetro nos julgamentos da

Corte Interamericana a partir de 1997, por ocasião do julgamento do caso Suárez Rosero, mudança esta que constitui indiscutível avanço na jurisprudência internacional dos direitos humanos, a demonstrar a evolução natural do sistema: “Destarte, o caso Suárez Rosero representa um marco na jurisprudência internacional. Pela primeira vez, a Corte considerou, em um caso contencioso, que a mera existência de uma lei violatória de direitos consagrados na Convenção Americana constituiria, per se, uma violação à mesma” (Tratados internacionais de direitos humanos e

 

iniciou-se somente em 1986 (como visto, o sistema europeu foi inaugurado logo após o término da Segunda Guerra Mundial, datando a Convenção Europeia de 1951; já o sistema interamericano teve início com a adoção da Convenção Americana de 1969).

Sendo o mais recente, e incidindo sobre um contexto social marcado pela miséria, pelo atraso, por inúmeros conflitos e por reiteradas violações aos direitos humanos, não surpreende que o sistema africano se mostre o menos efetivo dos três sistemas regionais. Além disso, seu perfil foi moldado de acordo com as singularidades do continente africano, o que lhe confere uma feição ímpar.87

Seu principal instrumento é a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (a Banjun Charter), de 1981, que entrou em vigor em 1986, e que se diferencia da Convenção Europeia e da Convenção Americana, em primeiro lugar, por ostentar, já em sua nomenclatura, uma concepção menos individualista que suas congêneres (assim é que a menção aos direitos dos povos aponta para uma concepção coletivista, que toma por ponto de partida não o indivíduo, mas o povo enquanto ente coletivo).

A Carta Africana distingue-se das demais também por já prever um rol tanto de direitos políticos e civis quanto de direitos sociais, econômicos e culturais (já prevendo a unidade e indivisibilidade destes, adotando expressamente, por conseguinte, a concepção contemporânea de direitos humanos), bem como por expressar, já em seu preâmbulo, que “o gozo dos direitos e liberdades implica o cumprimento dos deveres de cada um”, alçando destarte os deveres ao mesmo patamar de importância que atribui aos direitos.

Inicialmente a Carta Africana não trouxe a previsão de um órgão jurisdicional nos moldes da Corte Europeia e da Corte Interamericana, determinando tão somente a criação da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de

      

87 Evidentemente, todos os sistemas regionais apresentam particularidades inerentes aos contextos

em que se aplicam e com base nos quais foram moldados. Contudo, a despeito das singularidades de cada sistema, é possível encontrar maiores semelhanças entre o sistema europeu e o interamericano (assim como entre os ambientes sociais aos quais se aplicam), e perceber peculiaridades mais agudas no sistema africano.

 

natureza mais política do que jurisdicional, em exercício desde 1987.88 Contudo, pressionada por ONGs, a Comissão reconheceu a necessidade de criação de um órgão efetivamente jurisdicional, o que levou à elaboração do Protocolo da Carta Africana, em 1998, prevendo a criação da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. O Protocolo entrou em vigor em 2004, instituindo a Corte, cuja atribuição é a de complementar e robustecer as funções da Comissão.

A Corte Africana, tal como suas congêneres europeia e americana, detém competências tanto consultivas quanto restritivas.89 Contudo, diante dos imensos desafios que a realidade africana apresenta, bem como do fato de que sua criação é (especialmente em comparação às congêneres) bastante recente, ainda é cedo para avaliar o grau de efetividade que a Corte Africana terá na sua missão de fortalecer a defesa dos direitos humanos no continente africano.

A esse respeito, afirma Rachel Murray que

é difícil saber como a Corte funcionará. [...] Entretanto, a história do sistema africano aponta a questões que merecem ser vistas com cautela. Primeiramente, é essencial garantir que os juízes indicados tenham independência relativamente ao Estado, não sendo vulneráveis a pressões. Em segundo lugar, [...] não está clara a interação entre a Corte e a Comissão. Considerações devem ser feitas a respeito de como tal relação será desenvolvida a fim de assegurar sua eficácia. [...] Em terceiro lugar, destaca-se que o sistema africano de direitos humanos vem lutando constantemente em face da insuficiência de recursos por parte da Organização da União Africana, agora, União Africana. Em quarto lugar, o Protocolo       

88 Flávia Piovesan atenta para a natureza política ou “quase judicial” da Comissão, a quem incumbe

“promover os direitos humanos e dos povos; elaborar estudos e pesquisas; formular princípios e regras; assegurar a proteção dos direitos humanos e dos povos; recorrer a métodos de investigação; criar relatorias temáticas específicas; adotar resoluções no campo dos direitos humanos; e interpretar os dispositivos da Carta. Compete-lhe ainda apreciar comunicações interestatais (nos termos dos arts. 47 a 49 da Carta), bem como petições encaminhadas por indivíduos ou ONGs que denunciem violação aos direitos humanos e dos povos enunciados na Carta (nos termos dos arts. 55 a 59 da Carta). Em ambos os procedimentos, buscará a comissão o alcance de uma solução amistosa”. A autora destaca ainda a importância das ONGs para o fomento do sistema africano (in

Direitos humanos e justiça internacional, p. 125-7).

89 Ressalte-se que a competência consultiva afigura-se, ao menos em teoria, mais ampla que a

competência consultiva da Corte Europeia, tendo em vista as restrições que o sistema europeu impõe ao exercício de tal espécie de competência, como visto anteriormente. Contudo, diante do fato de que o respeito às instituições e a consolidação destas é um dado histórico e inconteste na Europa, e uma construção ainda incipiente no continente africano, é possível que a realidade venha a apresentar um quadro diametralmente inverso do que o constatado na positivação dos ordenamentos regionais.

 

estabelece que a Corte proferirá decisões legalmente vinculantes. [...] Considerações devem ser feitas para que existam procedimentos efetivos para garantir que qualquer Estado que violar a Carta seja compelido a cumprir a decisão da Corte.90

Com efeito, dada a realidade africana, com os problemas decorrentes da miséria, do atraso, dos conflitos tribais e da sobrevivência de ditaduras brutais, a preocupação com a eficácia do sistema americano revela-se legítima. Observa, a esse respeito, Gino J. Naldi:

A adoção da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos [...] tem provado, até agora, ser um falso alvorecer para a promoção e proteção dos direitos humanos na África. Obinna Okere descreve a Carta Africana como “modesta em seus objetivos e flexível em seus meios”. Certamente, há certas características da Carta que têm causado preocupação. Mais do que outros instrumentos similares, as disposições substantivas da Carta Africana são equivocadamente redigidas. Além disso, é feito um uso desmedido de cláusulas restritivas que parecem tornar a efetivação de um direito dependente de leis locais ou da discricionariedade das autoridades nacionais.91

Nesse contexto de alta complexidade, a conjugação harmônica dos sistemas global e regional ganha enorme importância, na medida em que as pressões da comunidade internacional podem levar à evolução e ao fortalecimento do próprio sistema regional africano.