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4. A internacionalização da proteção dos direitos humanos

4.1. O sistema global de proteção

Criada pela Carta das Nações Unidas de 1945, a Organização das Nações Unidas é a mais relevante instituição de proteção internacional dos direitos humanos no âmbito global.

É composta por diversos órgãos, dos quais os mais relevantes são a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança (responsável pela manutenção da paz e da segurança internacionais), a Corte Internacional de Justiça (o principal órgão judicial da ONU) e o Conselho Econômico e Social, dentre outros.

De inegável relevância para o objeto do presente estudo é a criação, em 2006, do Conselho de Direitos Humanos (em substituição à antiga Comissão de Direitos Humanos), em consonância com os três objetivos principais da ONU (manter a paz e a segurança internacionais, lidar com questões internacionais nas áreas social e econômica e promover a defesa dos direitos humanos), que passa, assim, a contar com três Conselhos, cada um voltado a um de seus propósitos

 

principais (o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social e o Conselho de Direitos Humanos).

O mais relevante instrumento do qual se vale a ONU para alcançar seus objetivos é, sem dúvida, a chamada Carta Internacional dos Direitos Humanos, composta, como anteriormente apontado, pela Declaração Universal de 1948 e pelos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966 (bem como seus respectivos Protocolos), que “judicializaram” a Declaração.

É certo que tais documentos não bastam para garantir todos os direitos humanos que necessitam de proteção na esfera internacional – ainda mais em um mundo tão interligado e diversificado como o atual – razão pela qual existem inúmeras convenções, relativas a direitos específicos, como resultado do processo de “especificação” a que faz menção Bobbio. E, evidentemente, o número de convenções tenderá a aumentar, à medida que a necessidade se fizer presente.

Em regra, os documentos internacionais apresentam a sistemática de relatórios que devem ser elaborados pelos Estados-partes. Alguns documentos estabelecem, ainda, o sistema de comunicações interestatais e o sistema de petições ou comunicações individuais, por meio de protocolos ou cláusulas facultativos. Não sendo o objeto central do presente estudo a análise aprofundada da sistemática internacional de proteção dos direitos humanos, destacam-se apenas as linhas gerais de atuação e os principais instrumentos e entidades que compõem tal sistema.

De relevância ímpar para o sistema global de proteção é o Tribunal Penal Internacional, criado, como já mencionado, pelo Estatuto de Roma, em 1998, e que teve como precedentes históricos os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, criados ao término da Segunda Guerra Mundial, bem como os Tribunais ad hoc da Bósnia e de Ruanda, constituídos pelo Conselho de Segurança da ONU em 1993 e 1994, respectivamente.

Da conhecida classificação de Bobbio, segundo a qual “as atividades até aqui implementadas pelos organismos internacionais, tendo em vista a tutela dos

 

direitos do homem, podem ser consideradas sob três aspectos: promoção, controle

e garantia”70, afirma Flávia Piovesan que “até a aprovação do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, o sistema global de proteção só compreendia as atividades de promoção e de controle dos direitos humanos, não dispondo de um aparato de garantia desses direitos”.71

A criação do Tribunal Penal Internacional atende à necessidade da comunidade global (reiterada nas críticas formuladas aos Tribunais internacionais anteriores) de possuir uma justiça preestabelecida, permanente e imparcial, complementar e subsidiária à atuação interna dos Estados (o que é expressamente determinado no art. 1º de seu Estatuto).

A esse respeito, Valerio de Oliveira Mazzuoli faz as seguintes considerações:

Não obstante o entendimento da consciência coletiva mundial de que aqueles que perpetram atos bárbaros e monstruosos contra a dignidade humana devam ser punidos internacionalmente, os tribunais ad hoc acima mencionados não passaram imunes a críticas, dentre elas a de que tais tribunais (que têm caráter temporário e não permanente) foram criados por Resoluções do Conselho de Segurança da ONU (sob o amparo do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas), e não por tratados internacionais multilaterais, como foi o caso do Tribunal Penal Internacional, o que prejudica (pelo menos em parte) o estabelecimento concreto de uma Justiça Penal Internacional. Estabelecer tribunais ad hoc por meio de resoluções significa torná- los órgãos subsidiários do Conselho de Segurança da ONU, para cuja aprovação não se requer mais do que nove votos de seus quinze membros, incluídos os cinco permanentes (art. 27, § 3º, da Carta das Nações Unidas). Este era, aliás, um argumento importante, no caso da antiga Iugoslávia, a favor do modelo do Conselho de Segurança, na medida em que o modelo de tratado seria muito moroso ou incerto, podendo levar anos para sua conclusão.

Ainda que existam dúvidas acerca do alcance da Carta das Nações Unidas em relação à legitimação do Conselho de Segurança da ONU para a criação de instâncias judiciárias internacionais, as atrocidades e os horrores cometidos são de tal ordem e de tal dimensão que parece justificável chegar-se a esse tipo de exercício, ainda mais quando se têm como certas algumas contribuições desses tribunais para a teoria da responsabilidade penal internacional dos indivíduos, a exemplo do não reconhecimento das imunidades de jurisdição para crimes definidos pelo Direito Internacional e do não reconhecimento de ordens       

70 Ob. cit., p. 38. 71 Ob. cit., p. 233.

 

superiores como excludente de responsabilidade internacional. Entretanto, a grande mácula da Carta da ONU, neste ponto, ainda é a de que jamais o Conselho de Segurança poderá criar tribunais com competência para julgar e punir eventuais crimes cometidos por nacionais dos seus Estados-membros com assento permanente.

Daí o motivo pelo qual avultava de importância a criação e o estabelecimento efetivo de uma corte penal internacional permanente, universal e imparcial [...].72

O mesmo autor salienta que a

instituição de tribunais internacionais é consequência da tendência jurisdicionalizante do Direito Internacional contemporâneo. Neste momento em que se presencia a fase da jurisdicionalização do

direito das gentes, a sociedade internacional fomenta a criação de

tribunais internacionais de variada natureza, para resolver questões das mais diversas, apresentadas no contexto das relações internacionais. A partir daqui é que pode ser compreendido o anseio generalizado pela criação de uma Justiça Penal Internacional, que dignifique e fortaleça a proteção internacional dos direitos humanos no plano global.73

O Estatuto do Tribunal é aplicável indistintamente a qualquer pessoa, independentemente do cargo que ocupe na ordem interna de determinado Estado (conforme o art. 27 do Estatuto), o que o torna relevante instrumento contra o arbítrio de autoridades totalitárias.

Embora o Direito Internacional ainda esteja em desenvolvimento no que tange à responsabilidade criminal internacional, sendo o Tribunal Penal Internacional um relevante passo nesse sentido, especialmente por superar a metodologia dos Tribunais ad hoc, a sistemática empregada não deixa de suscitar críticas. Nesse tocante, observam Steven R. Ratner e Jason S. Abrams que

      

72 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. “O Tribunal Penal Internacional: integração ao direito brasileiro e

sua importância para a justiça penal internacional”. In: NOVELINO, Marcelo (org). Leituras

complementares de Direito Constitucional – Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, p. 78-9. 73 Idem, p. 79. Salienta ainda o autor que a “sociedade internacional, contudo, tem pretendido

consagrar a responsabilidade penal internacional desde o final da Primeira Guerra Mundial, quando o Tratado de Versalhes clamou, sem sucesso, pelo julgamento do ex-Kaiser Guilherme II por ofensa à moralidade internacional e à autoridade dos tratados, bem como quando o Tratado de Sèvres, jamais ratificado, pretendeu responsabilizar o Governo Otomano pelo massacre dos armênios”, observando que, a despeito da crítica a tais critérios, estes foram empregados preliminarmente no Acordo de Londres (ibidem, p. 79).

 

para o futuro previsível, o Direito Penal Internacional parece destinado a continuar a ser o produto de um processo de prescrição

ad hoc, em vez de objeto de uma Código Penal internacional

amplamente aceito. Este destino para tal empreitada é a decorrência da decisão tomada pelos governos de evitar um código único e autoritário em favor da penalização de um número limitado de atos.74

Expostas as principais características dos mecanismos convencionais de proteção dos direitos humanos no sistema global, acresce observar a existência também de mecanismos considerados não convencionais, oriundos de resoluções elaboradas por órgãos da ONU.

Traçando a diferença entre os mecanismos convencionais e os não convencionais, esclarecem Steiner e Alston que os

órgãos baseados em convenções se distinguem por: uma clientela limitada aos Estados-partes da Convenção em questão; temas decorrentes dos termos da Convenção; uma preocupação particular com o desenvolvimento de um entendimento normativo dos direitos relevantes; um número limitado de opções quanto aos procedimentos para lidar com as violações; um processo decisório baseado o quanto possível no consenso; e usualmente um relacionamento não conflitivo com os Estados-partes (especificamente com respeito aos relatórios apresentados pelos Estados), pautado em um conceito de “diálogo construtivo”. Em contraste, os órgãos políticos geralmente: focalizam-se em uma gama diversificada de temas; insistem que todos os Estados sejam clientes (ou requeridos) em potencial, a despeito de suas obrigações convencionais específicas; trabalham com base em um mandato passível de constante ampliação, que deveria ser apto a responder às crises na medida em que fossem surgindo; engajam- se, em último caso, em ações conflitivas no tocante aos Estados; pautam-se mais fortemente em informações trazidas por ONG’s e na opinião pública para assegurar a efetividade de seu trabalho; tomam decisões pelo fortemente contestado voto da maioria; concedem relativamente pouca atenção a questões normativas; e são consideravelmente reticentes em estabelecer estruturas procedimentais específicas, preferindo uma aproximação ad hoc na maioria das situações.75

      

74 RATNER, Steven S. e ABRAMS, Jason S. Accountability for human rights atrocities in international law. Beyond the Nuremberg Legacy, p. 331-2. No original: “For the foreseeable future, international criminal law seems destined to remain the product of an ad hoc process of prescription, rather than the subject of a widely accepted international criminal code. This fate for the enterprise is the result of the decision made by governments to avoid a single, authoritative code in favor of penalizing a limited number of acts in various ways”.

75 STEINER, Henry J. e ALSTON, Philip. International human rights in context, p. 601-2. Apud

 

A escolha entre o emprego de mecanismos convencionais e não convencionais há de depender das circunstâncias e da opção que garanta maior efetividade à defesa do direito, como ilustra Flávia Piovesan:

Nessa linha, a escolha de mecanismos não convencionais, ilustrativamente, poder-se-ia pautar na inexistência de Convenções específicas sobre o direito violado, na ausência de ratificação pelo Estado-violador de uma Convenção determinada ou na existência de forte opinião pública favorável à adoção de medidas de combate à violação. Já a escolha de mecanismos convencionais poder-se-ia basear na efetiva ratificação de uma Convenção específica pelo Estado-violador, na ausência de vontade política dos membros da Comissão em adotar medidas contra as violações cometidas por determinado Estado, na intenção de construir precedentes normativos ou na inexistência de opinião pública suficientemente forte para legitimar um procedimento de elevada natureza política, como são os procedimentos adotados pela então Comissão de Direitos Humanos.76

São estes, em síntese, os delineamentos básicos do sistema global de proteção, que, juntamente com o sistema regional, a seguir exposto, constitui a ordem protetiva a ser subsidiariamente adotada pelos Estados, quando seus ordenamentos internos se mostram falhos na defesa dos direitos humanos.