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7. O Supremo Tribunal Federal e a Constituição Federal de 1988

7.3. O Supremo Tribunal Federal hoje

Conforme afirmado ao longo do trabalho, as mais recentes composições do Supremo Tribunal Federal,177 ancoradas nos preceitos do novo constitucionalismo e as mais modernas técnicas de hermenêutica constitucional, vêm dando soluções inovadoras a questões que até então recebiam respostas juridicamente mais ortodoxas.

A intenção da Corte é clara nesse sentido: o Supremo vem buscando se afirmar como verdadeiro ator social, buscando se afastar da vetusta ideia de “boca da lei” que norteia a conduta do Judiciário desde os tempos de Montesquieu.

A adoção de um maior protagonismo frente a tais questões vem suscitado críticas por conta de um eventualmente acerbado “ativismo judicial” – expressão bastante em voga, mas amiúde empregada com sentidos diversos – que, por vezes, resvala no princípio da separação de Poderes.178

Certo é, no entanto, que a atual postura do Supremo tem dado concreção a uma série de dispositivos constitucionais cuja eficácia vinha sendo nulificada justamente por conta da conduta de seus destinatários, que não se sentiam efetivamente obrigados a cumpri-los.

É evidente que essa conduta mais ativa por parte do Supremo, se resolve uma série de problemas, suscita diversas outras questões. Nada há de novo em tal situação. Sendo forçosamente dialéticas as forças sociais que se entrechocam no cotidiano de sociedades complexas, sendo multifacetados os interesses e os

      

177 O Supremo Tribunal Federal é atualmente composto pelos Ministros Gilmar Ferreira Mendes,

Cezar Peluso (atual Presidente da Corte), Celso de Mello, Marco Aurélio, Ellen Gracie, Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, José Antônio Dias Toffoli e Luiz Fux.

178 Tal fenômeno decorre da chamada “politização do Judiciário” ou “judicialização da política”,

consistente na circunstância de o Poder Judiciário, chamado a suprir lacunas dos Poderes Legislativo e Executivo na área das políticas públicas, o que leva, por vezes, à substituição da discricionariedade do legislador e do administrador público pela discricionariedade do julgador na escolha dos rumos que as aludidas políticas públicas devem seguir, o que implicaria, para os aludidos críticos, uma violação ao princípio da separação de Poderes. 

 

conflitos daí decorrentes, não surpreende que a criação do direito, ainda que sobre uma base relativamente estável – a Constituição – se apresente como fenômeno em constante mutação.

A análise de algumas situações concretas evidencia o quanto a hermenêutica constitucional evoluiu nos últimos anos, bem como a complexidade das questões que decorrem de tal situação.

a) Habeas Corpus n. 82.959

No julgamento desse habeas corpus, em fevereiro de 2006, a Corte alterou entendimento sustentado durante dezesseis anos, relativo à constitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei dos Crimes Hediondos, que, à época, previa a integralidade do regime fechado para o cumprimento das penas aplicadas em decorrência de crimes hediondos e assemelhados. O Supremo passou a entender que o regime integral fechado consubstancia uma violação do princípio constitucional da individualização da pena, sendo, portanto, inconstitucional.

A partir de março de 2006, as duas turmas do Supremo passaram a julgar monocraticamente os habeas corpus referentes à mesma matéria, julgando procedentes inclusive diversas reclamações interpostas em razão de entendimentos dissonantes por parte de instâncias inferiores – malgrado não tenha sido atribuída à decisão efeito erga omnes.

Como consequência da pacificação desse entendimento, que gerou uma distorção – todos os crimes, hediondos ou não, passaram a ter a progressão de regime em patamares idênticos, a saber, um sexto do cumprimento da pena – o Congresso Nacional alterou a Lei dos Crimes Hediondos, acatando o entendimento do STF, mas determinando, por outro lado, que a progressão do regime no caso dos crimes hediondos tivesse um patamar mais severo do que a prevista para os crimes comuns.

 

As decisões proferidas por meio dos aludidos mandados de injunção implicou substancial alteração no que tange ao entendimento até então vigente no Supremo Tribunal Federal quanto aos efeitos da decisão proferida em ações de tal natureza.

Até então, o Supremo acolhia a tese de que, em relação às omissões do poder público, a decisão tinha o único efeito de declarar a mora inconstitucional do ente omisso.

A postura do STF sempre foi severamente criticada pela doutrina, a ponto de José Afonso da Silva afirmar que interpretação dada pelo Supremo ao mandado de injunção “praticamente o torna sem sentido ou, pelo menos, muitíssimo esvaziado”.179

A partir das considerações do Ministro Eros Roberto Grau, de que a ideia de “separação de Poderes” na verdade corresponde à de “separação de funções”, sendo que o Judiciário, assim como o Legislativo e o Executivo, é dotado de uma

função normativa constitucionalmente atribuída,180 o Supremo supriu a omissão do ente federal, que não criara legislação infraconstitucional específica reguladora da greve dos funcionários públicos, passando a valer a decisão proferida nos supracitados mandados de injunção como se legislação efetivamente fosse, até que sobrevenha a legislação supridora da mora inconstitucional do ente federativo em questão.

c) Recurso Extraordinário n. 197.917

No julgamento do aludido recurso extraordinário, o Supremo, ao tratar da questão da redução do número de vereadores no Município de Mira Estrela, acolheu o argumento invocado pelo Ministro Gilmar Mendes, no sentido de que “se

      

179 DA SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo, p. 451.

180 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. Afirma o autor: “A separação dos

Poderes constitui um dos mitos mais eficazes do Estado liberal [...] o Legislativo não é titular de monopólio senão da função legislativa, parcela da função normativa, e não de toda esta, como a recepção irrefletida da teoria da ‘separação dos Poderes’, à primeira vista, indica. [...] Logo, quando o Executivo e o Judiciário emanam atos normativos de caráter não legislativo [...] não o fazem no exercício de função legislativa, mas sim no desenvolvimento de função normativa”. (p. 225, 244 e 248).

 

o STF declarar a inconstitucionalidade restrita, sem qualquer ressalva, essa decisão afeta os demais processos com pedidos idênticos pendentes de decisão nas diversas instâncias”,181 dando efeito transcendente aos motivos determinantes subjacentes à decisão declaratória de inconstitucionalidade.

Assim, embora tal julgamento tenha se dado em sede de controle difuso de constitucionalidade, o STF, visando a suprir lacuna no texto constitucional acerca do número mínimo e máximo de vereadores por cidade, elaborou uma verdadeira norma geral, válida para todos os municípios do país, traçando um parâmetro aritmético que estabelece uma relação entre o número de habitantes de cada município e os respectivos números mínimo e máximo de vereadores.

Tal decisão consubstancia inequívoca norma geral, expressão da função

normativa a que se refere Eros Grau, proferida em sede de controle difuso,

representando, por conseguinte, expressiva inovação hermenêutica.

d) “Mutação constitucional” em relação ao art. 52, X, da Constituição Federal

Em diversas decisões proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade, o Supremo vem adotando a tese da chamada abstrativização

do controle difuso, salientando a ocorrência de uma “mutação constitucional” em

relação ao inciso X do art. 52 da Constituição Federal.

O Ministro Gilmar Mendes tem sustentado, não apenas em suas decisões, mas também em sede doutrinária, que é

possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional, poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica “reforma da Constituição sem expressa modificação do texto”.182

      

181 Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=235847. Acesso

em 05.02.2011. 

182 MENDES, Gilmar Ferreira. “O papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade: um

 

A despeito dos argumentos expostos pelo Ministro Gilmar Mendes – acolhido, de resto, pelo Pleno do Supremo sem maiores contestações – impõe-se reconhecer que a situação narrada não consubstancia “mutação constitucional”, porque, ao contrário do afirmado pelo Ministro, implica radical alteração do texto constitucional. Com efeito, se cabe privativamente ao Senado suspender a execução de uma lei (art. 52, X), não há como torcer o dispositivo – sem alterar sua redação – para afirmar que cabe ao Senado apenas dar publicidade à decisão. e) Audiências públicas

Conforme informado no site do Supremo Tribunal Federal:183

A Audiência Pública, convocada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Gilmar Mendes, ouviu 50 especialistas, entre advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do sistema único de saúde, nos dias 27, 28 e 29 de abril, e 4, 6 e 7 de maio de 2009.

Os esclarecimentos prestados pela sociedade a esta Audiência Pública serão de grande importância no julgamento dos processos de competência da Presidência que versam sobre o direito à saúde. Hoje, tramitam no Tribunal os Agravos Regimentais nas Suspensões de Liminares ns. 47 e 64, nas Suspensões de Tutela Antecipada ns. 36, 185, 211 e 278, e nas Suspensões de Segurança ns. 2.361, 2.944, 3.345 e 3.355, processos de relatoria da Presidência.

Ainda que os argumentos levados ao Supremo por meio das audiências públicas em questão não sejam capazes de alterar o entendimento dos ministros acerca das questões suscitadas, a mera consideração desses argumentos, por parte do Supremo, e a iniciativa deste em ouvir diversos setores da sociedade, evidenciam uma aproximação entre a Corte e a população.

Inúmeros outros exemplos poderiam ser invocados, mas os já apontados são mais que suficientes para demonstrar uma radical transformação no papel que o Supremo vem desempenhando na sociedade ao longo dos últimos anos.

      

183 Disponível em

http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfConhecaStfJulgamentoHistorico/anexo/HC26155.pdf. Acesso em 11.12.2010.

 

O cotejo do atual desempenho do STF com sua postura desde sua criação torna clara uma evolução vertiginosa – evolução esta que, como já afirmado, parece não ter a pretensão de alcançar um ponto de definitividade (nem a Constituição de 1988 o permitiria, por sua própria natureza), mas de permanecer numa construção contínua, em constante evolução, mantendo o sentido da Constituição sempre atualizado.

Delineados o atual perfil do Supremo Tribunal Federal e os parâmetros basilares da interpretação constitucional, mormente no que concerne aos direitos fundamentais, impende passar à análise da temática dos direitos humanos para, na sequência, conjugar os dois campos de estudo, à luz do que determina o § 2º do art. 5º da Constituição Federal e da interpretação que o Pretório Excelso tem dado a tal dispositivo.