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4. A internacionalização da proteção dos direitos humanos

4.2. Os sistemas regionais de proteção

4.2.2. Sistema interamericano

Uma vez que o sistema interamericano foi edificado na seara de uma realidade substancialmente diferente da europeia, não surpreende que apresente uma dinâmica, um grau de desenvolvimento e uma efetividade distintos daqueles que caracterizam o sistema europeu.

Com efeito, esclarece Flávia Piovesan:

A análise do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos demanda seja considerado o seu contexto histórico, bem como as peculiaridades regionais. Trata-se de uma região marcada por elevado grau de exclusão e desigualdade social, ao qual se somam democracias em fase de consolidação. A região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência e de impunidade, com a baixa densidade dos Estados de Direito e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico.

      

80 Direitos humanos e justiça internacional, p. 84. É de se notar, no entanto, que a realidade vem

demonstrando que a eficácia do power of shame é, no mínimo, questionável, uma vez que o eventual risco de constrangimento internacional não tem evitado a violação dos direitos humanos, servindo, quando muito, de reforço a outros aparatos.

 

Dois períodos demarcam, assim, o contexto latino-americano: o período dos regimes ditatoriais e o período da transição política aos regimes democráticos, marcado pelo fim das ditaduras militares, na década de 80, na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil.81

Os processos de redemocratização, que, como aponta a autora, tiveram início na América Latina a partir da década de 1980, não lograram levar os países marcados por regimes ditatoriais, ao menos até o presente momento, à efetiva concretização do que os ordenamentos positivos surgidos com a redemocratização preconizam. Com efeito, é patente o hiato entre o que as Constituições preveem acerca da proteção dos direitos humanos e o que se constata na realidade. Nesse contexto, a existência de um sistema supranacional forte e efetivo, capaz de tornar realidade as previsões legais de proteção aos direitos humanos, revela-se da maior importância.

O instrumento mais relevante do sistema interamericano é a Convenção Americana de Direitos Humanos, ou Pacto de São José da Costa Rica, assinada em 1969 (apenas os países integrantes da Organização dos Estados Americanos puderam assiná-la, confirmando e robustecendo, dessa forma, sua natureza regional) e que, assim como a Convenção Europeia, privilegiou os direitos civis e políticos, omitindo os direitos sociais, econômicos e culturais (lacuna que só seria preenchida em 1988, com a edição do Protocolo de San Salvador, que só entrou em vigor em 1999).

O sistema de monitoramento dos direitos enunciados na Convenção é formado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana.

Cabe à Comissão promover a proteção dos direitos humanos na América, bem como examinar comunicações individuais, de grupos de indivíduos ou de ONGs, acerca de violações dos direitos assegurados pela Convenção. Tais sujeitos

      

 

de direito não podem, contudo, peticionar junto à própria Corte – no sistema interamericano, apenas a Comissão e os Estados podem fazê-lo.82

A Corte Interamericana é o órgão jurisdicional do sistema interamericano, apresentando, assim como a Corte Europeia, competências consultiva e contenciosa,83 as quais vem exercendo de modo cada vez mais visível, sobretudo a partir da adoção de seu novo regulamento em 2001, consolidando assim seu papel na garantia dos direitos humanos – ainda que (impõe-se reconhecer) haja um longo caminho a ser trilhado nesse sentido.84

      

82 Informa Flávia Piovesan que o novo Regulamento da Comissão, datado de 1º de maio de 2001, ao

prever a obrigatoriedade (e não mais, como até então, a discricionariedade) de a Comissão submeter casos à Corte Interamericana em caso de descumprimento de suas recomendações, introduziu, por conta da adoção de critérios objetivos e igualitários, a judicialização do sistema: “O sistema ganha maior tônica de juridicidade, reduzindo a seletividade política que, até então, era realizada pela Comissão Interamericana” (in Direitos humanos e justiça internacional, p. 97).

83 Como afirmado anteriormente, a competência consultiva da Corte Interamericana não apresenta

as mesmas restrições previstas para a Corte Europeia, razão pela qual a atuação daquela, no âmbito consultivo, é mais efetiva, a despeito da já apontada maior efetividade do sistema europeu como um todo, em relação aos demais.

Em relação à competência consultiva da Corte Interamericana, a doutrina costuma destacar a Opinião Consultiva n. 3, de 8 de setembro de 1983 na qual a Corte firmou posição no sentido da impossibilidade de adoção da pena de morte no Estado da Guatemala. No que tange à sua competência contenciosa, destacam-se o caso “Velásquez Rodriguez”, relativo ao desaparecimento forçado de Manfredo Velásquez no Estado de Honduras, que resultou em condenação do Estado ao pagamento de indenização aos familiares do desaparecido, e o famoso caso “Barrios Altos” no qual a Corte determinou a ineficácia de leis de anistia promulgadas no Peru, bem como a obrigatoriedade de reabertura das investigações judiciais sobre o “massacre de Barrios Altos”, por entender que o direito à verdade e o acesso à justiça são direitos amparados pela Convenção, razão pela qual as leis de anistia, ao conflitarem com a Convenção, não poderiam prevalecer.

O Brasil também já foi condenado junto à Corte Interamericana, no caso do Presídio Urso Branco, em razão da ocorrência de reiterados homicídios de presos dentro do próprio estabelecimento prisional no ano de 2002.

Em 14 de dezembro de 2010, a Corte considerou o Brasil responsável pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas na Guerrilha do Araguaia, entre 1972 e 1974, durante o regime militar, e determinou que o governo investigue penalmente os fatos “por meio da Justiça ordinária” e puna os

responsáveis (fonte: Agência Brasil. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/home;jsessionid=27BCB77978018BA1CFEF54F8D91A7BC0?p_p_id

=56&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-

2&p_p_col_pos=2&p_p_col_count=3&_56_groupId=19523&_56_articleId=1121773). Acesso em 05.02.2011

84 Flávia Piovesan reconhece que, a despeito da crescente judicialização do sistema interamericano,

é necessário seu aprimoramento, apontando-se, para tanto, quatro propostas: “A primeira proposta atém-se à exigibilidade de cumprimento das decisões da Comissão e da Corte, com a adoção pelos Estados de legislação interna relativa à implementação das decisões internacionais em matéria de direitos humanos. A justicialização do sistema interamericano requer, necessariamente, a observância e o cumprimento das decisões internacionais no âmbito interno”; a segunda proposta “refere-se à previsão de sanção ao Estado que, de forma reiterada e sistemática, descumprir as decisões internacionais. A título de exemplo, poder-se-ia estabelecer a suspensão ou expulsão do

 

Não se pode deixar de reconhecer, no entanto, a influência que o sistema interamericano tem exercido sobre a atuação dos Estados, como aponta Valerio de Oliveira Mazzuoli:

O diálogo entre o sistema interamericano e os sistemas nacionais de proteção tem progredido à medida que os Estados condenados pela Corte Interamericana passam a tomar consciência de que o prejuízo de uma condenação internacional é maior do que o de uma condenação doméstica. Além do desgaste dos agentes do Estado, relativamente ao acompanhamento (no exterior) da tramitação do processo internacional de responsabilidade, existe ainda o desgaste moral do próprio Estado no seio da sociedade internacional, o qual passa a não mais contar com o seal of approval do direito internacional relativamente à sua condição de garantidor de direitos das pessoas.85

Forçoso concluir, portanto, que, a despeito da necessidade de aprimoramento do sistema, sua atual configuração já apresenta resultados significativos, inclusive no âmbito interno dos Estados que o compõem.86