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DIREITO, LEI E PSICANÁLISE

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 39-43)

2 TEORIZANDO A PRÁTICA – ENTRE O JURÍDICO E O LINGUÍSTICO

2.3 DIREITO, LEI E PSICANÁLISE

Nesta seção, abordo a temática do Direito, por conseguinte, a lei, como norma jurídica, e a Psicanálise, uma vez que, apesar de se tratar de saberes diferentes, podem ter

pontos de articulação, como por exemplo, o sujeito, que é para a Psicanálise sujeito do inconsciente e chamado a participar nas realidades sociais das normas e leis jurídicas, por meio do Direito.

Cabe ao Poder Judiciário a função de garantir os direitos individuais, coletivos e sociais e resolver conflitos entre cidadãos, entidades e Estado, através de julgamentos realizados por ministros, desembargadores e/ou juízes, de acordo com as leis criadas pelo Poder Legislativo e pelas regras constitucionais do país.

Geraldo Monteiro (2003) considera o Direito um discurso fundado em valores e noções atinentes a direitos e obrigações que estruturam as relações e os papéis sociais, atribui o caráter de consenso a alguns valores, legitima, ideologicamente, a referência legal-racional, definindo privilégios e encargos, e, “garante, na forma da lei, os direitos de uns e outros conforme as hierarquias sociais e os ditames das estratégias de dominação” (MONTEIRO, 2003, p. 29). O Direito, então, é um sistema aberto que permite interpretações diversas e se altera, acompanhando as mudanças sociais; apesar da resistência em alterar-se.

A aplicação da lei remete-nos à missão básica do Estado, que é de promover o bem-estar geral, estabelecendo normas que garantam a liberdade individual e que possibilitem o equilíbrio da existência coletiva. Nesta missão, o Estado se impõe, altera a realidade e supostamente age segundo a vontade geral expressa através da Lei. Por lei, entende-se “norma de direito estabelecida pela(s) autoridades para disciplinar a vida de uma comunidade [...]; norma de conduta imposta pela consciência ou pelo convívio social” (XIMENES, 2000, p. 575, grifos meus).

Para Bucher-Maluschke (2007), a palavra “lei” é polissêmica e percorre inúmeras áreas da ciência. Pode-se abordar a lei como instituidora da ordem jurídica, da regra escrita, as leis da natureza, as leis físicas, biológicas, a lei da gravidade, leis canônicas, a leis econômicas, encontrando também a lei na psicanálise.

Ainda segundo a autora, para algumas pessoas as leis pertencem aos livros, enquanto para outras à classe social, estando, assim, ligadas ao poder. Segundo Perrone (1989 apud BUCHER-MALUSCHKE, 2007, p. 84), “o processo de interiorização da lei passa pela etapa de sua aceitação em benefício próprio, incluindo aos poucos o respeito do outro como ser diferente de si mesmo, até atingir o reconhecimento do outro na etapa final de aceitação da lei”. Para o autor, primeiro a lei seria percebida de forma reverencial, à figura do juiz, do magistrado, do advogado, do delegado, por exemplo, que, no contexto cultural em que vivemos, recebem destacada importância pelo papel social que ocupam. Para o autor, porém, a reverência está mais ligada ao temor do que à compreensão real do que seja a lei e do que

ela representa, indicando que a lei não foi internalizada. Em uma segunda etapa, para a interiorização da lei, ela se apresentaria como uma forma de proteção de si mesmo. Nessa situação, o autor cita como exemplo a preocupação de famílias em procurar logo um advogado, quando algum de seus membros comete uma infração, posto que esse profissional poderá “proteger” esse infrator, através da lei, o que denota a passagem para a etapa da compreensão da lei operando para a proteção dos indivíduos. E, na terceira etapa, dá-se a interiorização da lei, na sua essência, ou seja, compreende-se a lei como forma de proteção a si mesmo e de respeito ao outro, enquanto diferente de si mesmo, reconhecendo que esse outro tem direitos e deveres iguais (PERRONE, 1989 apud BUCHER-MALUSCHKE, 2007).

Bucher-Maluschke (2007), citando Patrick Guyomard, diz, ainda, que existem as “leis escritas e as leis não escritas”. As leis escritas fazem parte das legislações e proíbem o sujeito de cometer alguns atos. Já as não escritas são aquelas respeitadas e obedecidas pelo sujeito sem que haja a intercessão das leis escritas.

Já adentrando então na Psicanálise, é primordial dizer que, nessa área do conhecimento, a linguagem é a Lei. É a partir dela que passamos a existir, uma vez que somos falados, antes mesmo de passarmos a falar. É a ela que estamos submetidos, quando falam de nós, quando falamos de nós e quando falamos do mundo. A psicanálise considera o sujeito como inconsciente (no sentido de se definir por aquilo que não pode saber de si), já o direito considera o sujeito como ser consciente.

O sujeito para a Psicanálise difere do indivíduo (pessoa) compreendido pelo Direito, pois o sujeito descoberto por Freud é o sujeito do desejo, efeito da linguagem. De acordo com Joel Dor (DOR, 1989, p. 107):

Não somente o sujeito não é causa da linguagem, mas é causado por ela. O que quer dizer que o sujeito que advém pela linguagem só se insere nela como um efeito; um efeito de linguagem que o faz existir para logo a seguir eclipsá-lo na autenticidade do seu ser.

O Direito, definindo o humano a partir da categoria de indivíduo (pessoa), compreende que ele pode ser genericamente previsto por meio de normativas. Já a Psicanálise, orientada pela compreensão do sujeito, atém-se à subjetividade envolvida na relação entre o humano e o mundo. Assim, se os sujeitos definem-se, por sua singularidade, e não podem ser previstos genericamente, como se pensaria por meio de uma normativa, seria pertinente discorrer sobre a função que a lei pode ter sobre o psiquismo.

Pode-se compreender, então, que a lei, como um recurso jurídico, inscreve uma função específica na sociedade: a função paterna ou Pai Simbólico. Para a Psicanálise, o

conceito de “pai” é debatido a partir da distinção entre pai simbólico, real e imaginário. O Pai Simbólico tem o propósito de adentrar o sujeito no mundo da linguagem, reportando-o a um ordenamento maior, que rege o funcionamento do pai real. A principal característica da lei é a ordenação e o controle social, cuja aplicação é regida pelo Estado. Assim, como um Pai Simbólico não pode ser de todo inscrito, dispõe-se do Pai Imaginário (que, pensando na lei, configura-se no Estado) para efetivar o ato e quando a interdição não é possível recorre-se à proibição (aplicação da lei).

A Psicanálise entende que, por intermédio do mito freudiano do pai da horda primitiva, pode-se pensar a questão originária do incesto e da instituição de sua interdição. Lacan entende a função paterna como uma função simbólica; justamente por isso, é possível utilizá-la por meio de uma metáfora. Em termos linguísticos, por metáfora entende-se o emprego de um significante no lugar de outro significante. Já pela Psicanálise, percebe-se um corte no discurso, um sem-sentido que surge no discurso por essa irrupção, que fala de algo diferente do enunciado e que é sua enunciação. A mensagem estaria precisamente na enunciação; naquilo que remete um significante a outro significante. Naquilo que é o não-um. Uma das características do psiquismo de criminosos é a insuficiência de recursos simbólicos que permitam balizar suas condutas. Devido à pobreza do símbolo, surge o ato criminoso no lugar da sublimação, ou seja, o sujeito não sublima uma pulsão agressiva, mas a atua de forma violenta. Na ausência de uma interdição simbólica, surge o ato que grita por uma intervenção (aplicação da lei, punição) do Estado também na ordem real, uma vez que a lei simbólica não faz efeito. Assim, entende-se que aquele que transgride a lei parece sofrer forte influência da ausência da figura paterna e guarda com a lei certa relação erotizada, posto que não interage com esta lei, que não inscreve a Lei-do-Pai e, por isso, não adentra no universo simbólico dessa lei, permanecendo no imaginário eu x outro.

Nesse sentido, segundo Gomes (2007), um dos efeitos da precariedade da inscrição no universo simbólico de sujeitos que cometem atos criminosos é que “a única representação de interdição é relativa à lei concreta” (p. 49), ou seja, nesses casos a lei precisa atuar de forma concreta, uma vez que a simbólica não produz efeitos. Por isso, Rodrigues (1996, p. 73), ao discutir o ato delinquente, diz que também pelo ato criminoso a insuficiência do simbólico pode ser reparada, posto que pela violação o sujeito se aproxima da instância da lei e “é pela busca desta proximidade, deste encontro que ele o faz”.

Segundo Cordeiro e Cohen (2012), uma metáfora que se pode pensar a partir da Lei Maria da Penha seria “a presença de um muro que passa a ‘existir’ como limite para o parceiro amoroso violento” (p. 2). Segundo as autoras, pela implantação da lei, sujeitos

processados por violência doméstica contra a mulher passam a ter que considerar crime uma prática “regulatória de comportamentos femininos opositivos [...], um direito outrora adquirido, legitimado e aceito pelo senso comum e, atualmente, refutado” (p. 2). Em face disso, esses sujeitos referem-se à lei como “dura” (CORDEIRO; COHEN, 2012, p. 2).

Percebe-se, então, que a lei (seja simbólica ou jurídica) tem peso significativo em um Estado de Direito, uma vez que protege o indivíduo da opressão do Estado e do próprio indivíduo, e todos (Estado e indivíduos) estão sujeitos aos ditames da lei. Daí a importância de uma lei que regulamente, legal e socialmente, a questão da violência contra a mulher, em especial, aquela ocorrida no ambiente doméstico.

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 39-43)