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SILENCIAMENTOS QUE O DISCURSO PROMOVE

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 111-114)

6 DE AGRESSOR A VÍTIMA: RESSIGNIFICANDO A POSIÇÃO-SUJEITO

6.2 SILENCIAMENTOS QUE O DISCURSO PROMOVE

A reprodução de uma conversa pouco interessante ou mesmo sem sentido, manifestada por ele com as expressões como “porque não sei o quê, não sei o quê... porque isso, porque aquilo” indica que coisas foram ditas entre eles, cujo conteúdo já se perdeu, em função de um apagamento. Esse “não sei o quê” mostra um silenciamento de algo que não pode ser dito. É sabido que os sentidos do dizer são determinados pelas posições ideológicas

postas em evidência no momento da enunciação e que refletem também o processo sócio- histórico em que as palavras são produzidas. No caso dessa entrevista, tem-se um cenário de violência doméstica conjugal sendo enunciado a partir de uma posição-sujeito, que nega a sua condição – aqui, de agressor –, o que pode justificar esse esquecimento.

Vê-se, então, pelo emprego da expressão “não sei o quê”, o processamento do Esquecimento 1, de que trata Pêcheux (2014). Esse esquecimento tem origem ideológica e resulta da forma como os sujeitos são afetados pela ideologia e os coloca como fonte de seus discursos, produzindo o efeito de sentido de suposta univocidade de interpretação do seu dizer. Ocorre, porém, que todo discurso realiza um resgate de sentidos e contextos sócio- históricos preeexistentes, de forma que os discursos já estão em curso e não são originados no sujeito. Assim, é possível se pensar que “não sei o quê” apaga ou silencia o que tenha sido dito pelo entrevistado à companheira, mas que é da ordem do dizível nos contextos de violência doméstica. Isso que é silenciado remete à memória discursiva dos contextos de violência conjugal em que xingamentos, humilhações, ameaças, etc., são comuns e provoca efeitos discursivos, posto que, no momento da entrevista, essas questões que são silenciadas – a ocorrência de xingamentos durante a briga –, não precisavam ou não deveriam ser mencionadas. Uma vez que o processo discursivo é inscrito em uma relação de luta ideológica de classes, o discurso manifestado pelo entrevistado é entendido como inscrito no contexto das relações de gênero em que masculino e feminino estão em constante confronto e que, ao longo da história das sociedades, o masculino se sobrepôs ao feminino.

O encontro com o Entrevistado 1 se deu muito tempo depois dos fatos relatados à polícia, bem como depois da audiência que o inocentou da denúncia de lesão corporal, com argumentos judiciais de improcedência da questão. Assim, a postura defensiva que o entrevistado fazia de si, no seu discurso, sobre a situação da violência ocorrida entre eles, parecia ser parte das condições de produção das manifestações dele.

O entrevistado, a todo tempo, posicionava-se na função do detentor da razão, promovendo um efeito de sentido de defesa para si e para a condição em que violência ocorreu. Esse efeito de defesa gera outro efeito: o de tentativa de resistir a um discurso que possivelmente o estivesse oprimindo – o de que seu papel na relação que mantinha com a ex- companheira era a da parte frágil do casal. Isso nos remete ao lugar da resistência, evidenciado por Pêcheux (2014) na teoria do discurso, em que não há dominação sem resistência. Segundo o autor, o sujeito resiste a outros discursos ao ser interpelado em sujeito do discurso pela ideologia, pois para ser sujeito é necessário ocupar uma posição no discurso, o que implica resistir a outros. Dá-se, assim, o assujeitamento, que não significa submissão,

mas, de fato, resistência. Vejamos uma sequência discursiva em que essa resistência fica demonstrada:

Nós vivemos 12 anos juntos, não foi bem 12 anos junto, porque às vezes ela dizia: eu vou embora. Ela ia embora e me abandonava (...) Ela cansou de me abandonar [Entrevistado 1].

O emprego da expressão “ia embora” configura a atitude dela diante da provável insatisfação com a vida que o casal levava. Se traçarmos um paralelo entre “ir embora” e “abandonar” veremos que sentidos diversos, se não opostos ou pelo menos contrastantes, se estabelecem e que é pelo viés das condições de produção que os acessaremos.

Segundo Orlandi (2010), as condições de produção estão relacionadas com o sujeito e com a situação, que podem ter sentido estrito (referindo-se a enunciação) e sentido amplo, quando incluem o contexto sócio-histórico e o ideológico. Assim, na sequência discursiva apresentada acima os dois sentidos (restrito e amplo) se apresentam. Considerando que ela foi enunciada em resposta a uma das questões que guiaram a entrevista – Vocês viviam juntos há quanto tempo? – e que, por ocasião da entrevista o entrevistado deixava subentendido que a ex-companheira não tinha condições de decidir sobre sua vida com clareza, em função do envolvimento com drogas, percebe-se aí o sentido imediato. A mulher “ia embora” de casa e “abandonava” o marido.

Gramaticalmente, “ir embora” refere uma ação deliberada pelo sujeito agente, e por ser um verbo reflexo, o agente que a pratica também é beneficiado por ela; o que não implica “abandono”, ainda que a ação de ir embora possa afetar outras pessoas. Já o verbo ‘abandonar’ implica pensar num sujeito que é abandonado pelo agente da ação, visto que o verbo é transitivo indireto e depende de um complemento. Juridicamente, o termo “abandono”, configura-se como crime em três circunstâncias: abandono de incapaz, abandono material e abandono intelectual, definidos no Código Penal brasileiro pelos artigos 133, 244 e 246, respectivamente. No contexto da entrevista realizada, nenhuma dessas circunstâncias jurídicas se configurou, mas é pelas condições de produção desse discurso – do abandono na relação conjugal – que se podem tecer considerações sobre o sentido amplo desse uso.

Buscando uma explicação etimológica da origem desse vocábulo, vê-se que ‘abandonar’ carrega o radical “bann” que, na língua dos Francos, significava “poder” e influenciou o “to ban” do inglês, com significado de “proibir”, o “bandon” em francês, com conotação de autoridade, de poder e o “banir” em português. Aliado ao prefixo “a”, que tem

efeito negativo, é possível relacionar ao fato de que “abandonar” implica pensar a negação àquele que tem poder. Isso remete às formações ideológicas do discurso patriarcal que se estabeleceram sobre as relações de gênero, em que os homens da família eram ou funcionavam como “donos” das mulheres.

Segundo Pêcheux (2014, p. 146), as “palavras, expressões, proposições etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas”, em que se inscrevem. Assim, normas, regras, condutas e crenças tanto explicam e referem a realidade como também regulam o comportamento humano pela formação ideológica. Nesse sentido, pensar a fala do entrevistado que alega ter sido abandonado pela companheira significa pensar num discurso do feminino se rebelando contra os “mandos” do masculino, o que tem sido a política do feminismo há décadas. Também implica pensar na perda do poder patriarcal exercido por esse entrevistado que é o provedor da família, homem honrado e que parece estar afetado por essa realidade que contraria a formação ideológica da qual ele participa, pois destoa do cenário original das relações de gênero, em especial, no meio doméstico.

Ainda pensando o discurso que se produz a partir das expressões abandonar e ir embora, mencionadas pelo Entrevistado 1, pode-se analisar como esses termos se movimentam no discurso, ou seja, ‘ir embora’ produz um efeito de sentido de abandono. Essa produção de um abandono também pode funcionar como forma de legitimar a posição-sujeito de marido abandonado que esse entrevistado queria marcar no seu discurso. Ao dizer que ela o abandonava e ia embora, ele fala de si e da sua condição diante da atitude dela. Segundo Orlandi (2005), o sujeito se submete à língua pela sua experiência de mundo, estando determinado a dar sentido e a significar-se. Assim, na ilusão do discurso que refere a mulher, ele se identifica e manifesta sua resistência, por onde se podem perceber os equívocos e as falhas.

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 111-114)