• Nenhum resultado encontrado

O que tem sido dito sobre a Lei Maria da Penha

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 49-52)

2 TEORIZANDO A PRÁTICA – ENTRE O JURÍDICO E O LINGUÍSTICO

2.4 LEI MARIA DA PENHA

2.4.2 O que tem sido dito sobre a Lei Maria da Penha

A promulgação da Lei Maria da Penha está situada entre as ações estatais consideradas “políticas de ações afirmativas”, ou “ação compensatória”, cujo propósito é de atuar em lacunas sociais não resolvidas, referentes a características não mutáveis inerentes a um indivíduo, como cor e sexo, a influir na definição das oportunidades e na garantia de direitos iguais para todos13. No material desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra no Brasil (apud MOEHLECKE, 2002, p. 201), encontra-se a definição de ações afirmativas como sendo aquelas medidas que têm como objetivo “eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero”.

Nesse sentido, a Lei Maria da Penha assume, de certa forma, essa conotação de “prestação de contas” para com as mulheres, em função de todo o tempo em que a violência doméstica e familiar contra a mulher não teve um tratamento estatal adequado, que colaborasse para reduzir os índices desse tipo de violência e para a alteração da situação cultural e historicamente construída que submete as mulheres a um cenário de vulnerabilidade física e psicológica.

Flávia Piovesan e Silvia Pimentel (2011) destacam que a lei trouxe as seguintes inovações:

1) Mudança de paradigma no enfrentamento da violência contra a mulher – de crime de menor potencial ofensivo, passa a ser considerada uma violação dos direitos humanos;

2) Incorporação da perspectiva de gênero para tratar desse tipo de violência – a criação de um juizado especial para o atendimento a essa demanda e a indicação de atendimento policial especializado, que denotam a preocupação com a condição peculiar dessa vítima – a mulher;

3) Incorporação da ótica preventiva, integrada e multidisciplinar – o enfrentamento da violência contra a mulher depende de uma ação multissetorial que se preocupe com a prevenção e a educação para as questões de gênero;

13 Outros exemplos dessas ações afirmativas são as políticas de cotas, a reserva de vagas em concursos e locais de trabalho etc.

4) Fortalecimento da ótica repressiva – fica proibida a atribuição de penas condenatórias com cestas básicas, prestação de serviços comunitários e multas, que afastavam a noção da penalização por conta do delito praticado;

5) Harmonização com a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher – Convenção de Belém do Pará –, que declarou que a violência contra a mulher constitui violação aos direitos humanos e ofensa à dignidade humana, limitando total ou parcialmente a mulher ao reconhecimento e ao exercício de direitos e liberdades; o Brasil, que já havia ratificado o texto dessa Convenção, ainda não tratava oficialmente a violência contra a mulher, por esse viés;

6) Consolidação de um conceito ampliado de família e a visibilidade ao direito à livre orientação sexual – a nova lei consolida o conceito ampliado de família, na medida em que afirma que as relações pessoais a que se destina independem de orientação sexual, de classe social, raça, idade, etc; toda mulher tem o direito de viver sem violência; e,

7) Estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas – todo o avanço social trazido pela lei requer a avaliação e o monitoramento constante, não só das políticas públicas a serem implantadas a partir da promulgação da lei, mas também dos próprios índices de violência.

A própria Constituição do Brasil, de acordo com Lênio Streck (2011, p. 98), permite discriminações positivas para, “através de um tratamento desigual, buscar igualar aquilo que sempre foi desigual”. Assim, o debate que se efetivou sobre a constitucionalidade ou não da Lei Maria da Penha e foi levado à Corte Superior do Brasil e que ainda encontra eco na atuação de juristas espalhados pelos tribunais de justiça do país, possivelmente se estenderá no tempo, em função dos diferentes olhares que se lançam sobre a condição feminina, em especial na sociedade brasileira.

Maria Berenice Dias, no artigo intitulado Um basta à violência doméstica 14, diz que a Lei Maria da Penha “foi recebida da mesma forma que são tratadas as vítimas que protege: com desdém e desconfiança”. A prática policial que eu desempenho, há mais de 20 anos, permite-me observar que, de fato, no meio policial, a Lei Maria da Penha não foi acolhida com toda essa euforia das entidades que se empenharam para sua efetivação, pelo contrário. As exigências dessa “nova” lei trouxeram mais rapidez aos procedimentos policiais,

14

Disponívelem:

http://www.mariaberenice.com.br/uploads/13_um_basta_%E0_viol%EAncia_dom%E9stica.pdf Acesso em: 10/04/2013.

no sentido de prazos a serem cumpridos, em especial quando a mulher tem interesse por medidas de proteção15 contra seu agressor. Essa providência requer rapidez e prioridade no atendimento policial a essa vítima. Entretanto, deixa-se de observar que o efetivo policial, das delegacias especializadas ou das delegacias comuns não foi aumentado, pelo contrário, pode até ter sido reduzido nesses últimos seis anos, o que dificulta muito esse atendimento prioritário. Quanto às vítimas, também elas, muitas vezes, são tratadas com “desdém e desconfiança”, conforme mencionou Dias (2012). A literatura sobre a violência contra a mulher, quando menciona o atendimento policial às vítimas, frequentemente menciona falta de capacitação e qualificação dos operadores da segurança pública para esse trabalho específico (SANTOS; IZUMINO, 2005, SCARDUELI, 2006, SANTOS, 2010). Permito-me aqui, informar que, se houve oportunidades formais de capacitação policial, foram pontuais e por iniciativas particulares dos policiais, mas não por decisão institucional da corporação, ao menos na Polícia Civil catarinense.

Para Pasinato (2010, p. 218), a Lei Maria da Penha promoveu mudanças e avanços significativos em termos de garantias formais de direitos para as mulheres, mas na prática o exercício desses direitos ainda se confronta com obstáculos que impedem maior sucesso em ações que evitem a repetição da violência, entre eles a aplicabilidade da lei e o discurso que circula sobre ela.

Ainda para a autora, quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor sua aplicação tornou-se objeto de estudos e reflexões sobre as respostas governamentais sobre a violência contra as mulheres. Embora a lei trate de uma rede de serviço para o enfrentamento dessa violência, parece prevalecer uma expectativa quanto à solução judicial dos casos que são levados ao conhecimento da polícia. Pouco ainda se conhece sobre o quê essas decisões representam para a vida das mulheres. Assim, descrever e analisar as formas como as instituições envolvidas na aplicação da Lei Maria da Penha vêm atuando parece ser a melhor forma de acumular conhecimento sobre os resultados que têm sido alcançados. Contudo, é preciso investigar também como essas instâncias atuam na integração com outros serviços que podem contribuir para diminuir as desigualdades sociais que afetam as mulheres, fortalecendo-as para que possam sair da situação de violência e reconstruir seus

15 O inciso III do artigo 12 a Lei Maria da Penha estabelece a remessa, pela Autoridade Policial ao juiz, no prazo de 48 horas, de expediente contendo o pedido da vítima de medidas protetivas de urgência, quando for o caso. Na prática policial, é costume anexar a esse pedido as declarações da vítima, depoimentos de testemunhas, o interrogatório do agressor (quando for possível), além de outros documentos que possam justificar a necessidade do deferimento das medidas de proteção à vítima.

relacionamentos com base no respeito e na igualdade. Para isso, é também importante ouvir as mulheres que recebem atendimento, para conhecer a forma como percebem a efetividade das respostas que lhes foram oferecidas. Essa é, talvez, uma das maiores lacunas nos estudos sobre as respostas institucionais nas áreas de segurança e justiça (PASINATO, 2014).

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 49-52)