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NO FIO DISCURSIVO DOS RELATÓRIOS DE INQUÉRITO

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 67-71)

4 INVESTIGANDO O TEXTO POLICIAL

4.1 NO FIO DISCURSIVO DOS RELATÓRIOS DE INQUÉRITO

Para início da discussão sobre o material recortado na fase policial, abordarei a peça que compõe o inquérito policial denominada relatório e que é produzida pelo delegado de polícia29, a Autoridade de Polícia Judiciária, posição que atribui a esse sujeito a condição de apresentar descritivamente os fatos apurados numa investigação criminal, a fim de que possam ser julgados numa instância posterior, a judicial.

A posição sujeito-delegado operando como o enunciador no texto dos relatórios é bem marcada, especialmente pela interação com o sujeito-juiz, a quem o relatório é endereçado, já desde o início do texto, pelo emprego dos vocativos30 “meritíssimo juiz ou excelentíssimo juiz” que iniciam a enunciação da peça relatório. O emprego desses vocativos possibilita o reconhecimento do discurso no qual eles estão inseridos – o jurídico – e oportuniza, ainda, a reflexão sobre as condições de produção desse discurso e as possibilidades de efeitos de sentido por ele produzidos. Os interlocutores ocupam lugares determinados na estrutura de uma formação social, lugares esses que estão representados por uma série de formações imaginárias, conforme o que Pêcheux (2014) chamou de o jogo de imagens: a) a imagem que o falante tem de si, do lugar que ocupa e do que é enunciado; b) a imagem que o sujeito, ao enunciar, tem do seu ouvinte, do lugar ocupado por ele, e do discurso que é enunciado.

No cenário da justiça-criminal (polícia civil e poder judiciário) as condições de produção de discursos são comuns às duas instituições (polícia e judiciário). Assim, o discurso que se estabelece num relatório acontece em um cenário que lhe é próprio e lhe dá especificidade, visto que faz parte de um gênero específico (relatório), que dialoga com alguém (juiz/promotor) sobre algo já estabelecido historicamente (conflito familiar/social), temática também já tratada anteriormente por outros sujeitos (advogados, juízes, promotores), e que já é predeterminada por uma ordem social, face ao caráter histórico-social da violência. Conforme Scardueli (2006), embora nem todas as práticas discursivas de policiais possam ser tomadas como exemplos de discurso jurídico, elas são fortemente influenciadas pelo discurso jurídico que esses sujeitos utilizam em suas práticas discursivas diárias nas delegacias de

29 Dos vinte relatórios de inquérito analisados nesta pesquisa, dezenove foram produzidos por um sujeito- delegado e um por outro, possivelmente que estivesse atuando na DPCAMI durante o período de férias do primeiro, que é o titular da unidade policial.

30 O vocativo meritíssimo juiz foi empregado onze vezes, excelentíssimo cinco vezes e quatro relatório foram produzidos sem emprego de vocativos.

polícia, por eventualmente circularem em um mesmo contexto em que são produzidos outros tipos de documentos oficiais como registros de ocorrências, portarias, ofícios, etc.

A produção textual do relatório de um inquérito policial se organiza dentro de uma ritualidade habitual do discurso jurídico e, segundo Thomé (1997, p. 123), para uma melhor compreensão, o relatório deve ser dividido em três partes: preâmbulo, histórico da investigação e conclusão (ainda que nem sempre essas seções estejam claramente divididas). Nas peças analisadas, a menção à Lei Maria da Penha se faz apenas na parte inicial (no preâmbulo), em que a Autoridade Policial contextualiza os fatos ocorridos que geraram a instauração daquele procedimento policial.

Nos relatórios analisados, o instrumento motivador da ação jurídica de instauração dos procedimentos policiais – a Lei Maria da Penha – foi assim mencionada:

Instaurou-se o presente Inquérito Policial para apurar o crime de ameaça, este abrangido pela Lei 11.340/06, fato ocorrido em 04 de março de 2013 na Rua Doutor Virgulino de Queiróz, Centro, nesta cidade, figurando como vítima [nome] e como investigado [nome] [R18].

Trata-se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça, abrangido pela Lei 11.340/06 [...][R9)

Trata o presente inquérito do crime de ameaça, abrangido pela lei 11.340/06 [...][R19]

A formatação dos textos produzidos no meio jurídico segue uma modelagem pré- definida, que se repete como um padrão. Essa “modelagem” empregada nos textos jurídicos pode sugerir a generalização das situações tratadas naqueles textos, em que as particularidades de cada caso investigado e os sujeitos nele envolvidos parecem ser pouco observados.

Nos casos de violência contra a mulher, em destaque neste estudo, a padronização dos textos pode silenciar enredos e histórias de vida, que se transformam em indicativos numéricos; deixando à deriva a questão das singularidades envolvidas em cada situação, promovendo assim, a desubjetivação dos textos.

A Lei 11.340/06 é o dispositivo jurídico para o início da atividade policial investigativa que tratou dos crimes narrados pelas vítimas. Essa lei foi promulgada para o enfrentamento da violência doméstica contra as mulheres, histórica e culturalmente submetidas à violência por parte de sujeitos do sexo masculino. A menção ao número da lei

para justificar a instauração do procedimento policial silencia o cenário doméstico da violência ocorrida e que fez surgir a Lei 11.340/06. Os crimes descritos nos relatórios analisados são referidos como “abrangidos” pela lei, sem que a questão da violência doméstica, que é a temática específica tratada pela lei seja mencionada. Esse silenciamento, então, pode ser entendido como constitutivo, definido por Orlandi (2007) como aquele que se diz, não dizendo, ou seja, a violência doméstica contra a mulher se revela apenas pela menção da Lei, pois se é essa lei que está sendo aplicada, então fica implícito que a violência sofrida era no meio doméstico. Essa compreensão é possível porque a Lei Maria da Penha se inseriu historicamente nos discursos dos sujeitos que enunciam a violência; o que implica pensar na presença de um interdiscurso.

Azevedo (2007), referindo-se ao interdiscurso, diz que as escolhas linguísticas e discursivas que compõem um texto de determinado discurso não são aleatórias, mas marcadas por interlocutores (sujeitos) que enunciam a partir de posições inscritas numa formação social. Por isso, as condições de produção passam a ser compreendidas através da representação do imaginário histórico-social, porque os sujeitos que produzem linguagem o fazem de lugares ideologicamente marcados.

Outra observação que se faz logo no início dos relatórios é a descrição do cenário em que os crimes aconteceram, em que o emprego do termo ‘figurando’ desperta a atenção também para essa questão do silenciamento. Em treze dos vinte relatórios analisados o verbo figurar é empregado para apresentar a posição ocupada pelos sujeitos vítima e agressor, conforme o excerto a seguir:

Instaurou-se o presente inquérito policial objetivando apurar o crime de ameaça, abrangido pela Lei 11.340/06, ocorrido em 13 de fevereiro de 2012, nesta cidade, figurando como vítima [nome] e investigado [nome] [R6].

O emprego do verbo figurar em relatórios de inquérito parece ser prática comum, em função do número de ocorrências. Observa-se que quando o termo não é empregado, outra expressão aparece: em tese, como no exemplo a seguir:

Trata-se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça, abrangido pela lei 11.340/06, ocorrido em data não especificada, provavelmente no

mês de maio de 2012, nesta cidade, em tese praticado por [nome] contra [nome] [R13].

Em ambos os casos, fica implícita uma suspeita sobre a ocorrência dos crimes e/ou a autoria deles; ou seja, o emprego desses termos produz sentido de dúvida. No dicionário, o verbo figurar significa “representar, simbolizar, fingir, imaginar, supor” (XIMENES, 2000, p. 436). A expressão em tese, por sua vez, significa “teoricamente, supostamente”. O emprego dessas expressões nos relatórios policiais indica a falta de condição para se chegar à verdade real, buscada pela polícia durante a apuração de crime, posto que essa verdade de fato não existe, e o que fica, a materialidade do crime com a qual a polícia trabalha, é, pois, apenas simbólica.

Ainda que essas expressões - figurar e em tese - pertençam à prática discursiva diária da polícia, em especial para a produção de relatórios, e que o seu emprego assim se justifique, é possível pensar nessas expressões como significando algo mais. Nos textos analisados, ainda que as expressões tenham sido usadas, todos os agressores foram considerados culpados pela autoridade policial que sugeriu ao juiz, no final dos relatórios, o indiciamento31 deles por práticas de violência doméstica contra mulheres. Parece então que o emprego das expressões no início do texto não coaduna com o fim dele, em que há a menção da prática delitiva, conforme os excertos a seguir:

Isso posto, indicie-se [nome] pela prática do crime previsto no artigo 147 do Código Penal [R6].

Isso posto, considerando a data das mensagens telefônicas, indicie-se [nome] [R13].

Fica a dúvida, por que o uso de “figurar e em tese” no texto final do trabalho policial, se é nesse momento que a autoridade vai declarar se está convicta de que o crime aconteceu e que fora determinada pessoa que o cometeu? Ou não estaria convicta?

31 O termo indiciamento é empregado no meio policial, para designar o ato de atribuir formalmente a autoria de um crime a um suspeito. O indiciamento não significa culpa ou condenação, mas que os indícios colhidos durante a investigação permitem atribuir a autoria do crime à alguém.

A contradição apontada acima indica a não homogeneidade da linguagem e do sujeito, o que pode também ser especulado em face do emprego do verbo “apurar”, na sequência discursiva apresentada anteriormente:

Trata-se de inquérito instaurado para apurar o crime de ameaça [R13]. O enunciador, ao referir-se a apurar o crime de ameaça, afirma a ocorrência do crime, ou seja, o inquérito trataria, então, de “apurar” a ocorrência, no sentido genérico do meio policial, buscando responder as perguntas investigativas: quem cometeu, onde foi cometido, como e por que foi cometido. Assim, parte-se da premissa de que o crime ocorreu, o que novamente não explica o emprego de “figurar e em tese”. Essas expressões poderiam significar a dúvida sobre a ocorrência ou não do crime se ao invés de “apurar o crime de ameaça”, tivesse sido empregado “apurar a denúncia de crime de ameaça”, pois a investigação partiria então da suspeita da ocorrência criminosa. Pode-se, aqui, fazer referência a Pêcheux e a sua teorização sobre a incompletude da língua, da falha, do furo a que todo dizer está sujeito (2008).

A produção do texto técnico prima (teoricamente) pela observância da objetividade e da imparcialidade, fazendo uso da função referencial da linguagem, uniformizando as estruturas linguísticas empregadas, que buscam informar, visando à neutralidade do enunciador – ainda que se saiba dessa impossibilidade, conforme apontado acima. O emprego da voz passiva é um exemplo disso. Nos excertos de relatórios previamente apresentados, a voz passiva com o uso do pronome se apassivador denota a tentativa de neutralidade e distanciamento dos fatos tal qual aconteceram para o que foi apurado pela polícia. Esse suposto lugar da neutralidade do discurso jurídico que tenta aparentar imparcialidade no tratamento das questões, porém, é questionável, em função de que ela se dá a partir de sentidos construídos ideologicamente, que definiram como essa neutralidade deveria ser marcada. Assim, observa-se que essa tentativa de neutralidade acaba sempre por ocultar algum outro sentido, o da indiferença, por exemplo.

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 67-71)