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4 INVESTIGANDO O TEXTO POLICIAL

4.2 MARCAS DE GÊNERO

A construção linguística dos textos dos relatórios permite-nos identificar os lugares sociais ocupados também por vítimas e agressores, na concepção do enunciador, reforçados no texto pela escolha lexical que atribuem a eles (os agressores) o papel de dominação e a elas (as vítimas), o papel de subordinadas nessa relação de poder que se

estabelece entre eles. Dentre as imagens que vão sendo construídas, no discurso ali apresentado, é possível perceber um cenário de dominação masculina sobre o indivíduo do sexo feminino, conforme os excertos a seguir dispostos, que foram grifados por mim:

Relatou que a partir da separação passou a ser ameaçada de morte por ele, inclusive via telefone [R1].

Relatou sofrer com ameaças de morte e agressões verbais do tipo “puta, vagabunda e alcoólatra”, proferidas pelo investigado [R2].

Relatou que vem sofrendo injúrias e ameaças de [nome] [R3].

Em razão da ingestão frequente de bebidas alcoólicas ele lhe agride verbalmente, chamando-a de “puta e vagabunda” e ainda faz ameaças de morte [R4].

Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai, mas o investigado continuou a proferir ameaças de morte e injúrias tipo vagabunda e sem-vergonha [R8].

Disse que [nome] sempre a agredia e ameaçava de morte. Afirma que após a última agressão física saiu de casa, mas [nome] continuou a fazer ameaças. Em relação às lesões sofridas não fez registro anterior por medo [R10].

Alega ter sido agredida fisicamente e injuriada com as palavras “puta e vagabunda”[R11].

Após pedir a separação passou a ser ameaçada de morte e injuriada por ele[R12].

Relatou que após uma discussão foi agredida fisicamente por ele, com tapas e apertões, além de [nome] ter proferido ameaças de morte, dizendo que [nome] “iria para o inferno, assim como ele”, colocando uma faca em seu pescoço [R15].

Relatou que foi agredida por ele, o que acabou deixando lesões em seu rosto [R17].

Relatou que constantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que “somente a morte iria separá-los”. Informou que [nome]

tentou manter relações sexuais à força, sem seu consentimento, e que gritou, acordando seus filhos, quando o acusado não persistiu no ato [R18].

Os excertos acima denotam situações em que as vítimas são submetidas a ações por parte de seus agressores que as colocam em situação inferior, de submissão, de vulnerabilidade diante deles. Observa-se, ainda, que as ações descritas como sendo dos agressores têm conotação de atos da fala em que as ações são praticadas especialmente pela fala dos sujeitos, como nos verbos: ameaçar, agredir verbalmente, injuriar e proferir ameaças. Nos excertos acima, esses termos foram usados dezesseis vezes, enquanto que ações que requeriam uma atividade física diversa da fala foram empregadas apenas quatro vezes, como indicam os termos: agredida fisicamente com tapas e apertões, colocar a faca no pescoço, manter relações sexuais à força.

Quanto às vítimas, os excertos apontam atitudes como saiu de casa, mudou-se para a casa do pai e gritou, ações essas realizadas para conter as agressões dos parceiros. Também a própria atitude de denunciar foi uma ação nesse sentido, de conter as atitudes dos agressores.

A literatura específica sobre a violência contra a mulher aponta que, em geral, essas vítimas possuem autoestima baixa e sentem-se incapazes de reagir (SAFFIOTI, 1997). Entretanto, o cenário da pesquisa, por si só, mostra uma ação das mulheres vítimas – a de denunciar. As denúncias motivaram a ação do Estado sobre a violência sofrida por elas. Nos casos analisados, todos foram iniciados pela denúncia das próprias vítimas. Além de denunciar, também é possível perceber que outras atitudes dessas vítimas destoam desse quadro descrito por Saffioti (1997), de que elas se sentem incapazes de reagir, conforme demonstram os excertos abaixo:

A vítima, em depoimento, disse que conviveu com [nome] por dois anos e que resolveu separar-se em virtude do comportamento dele [R1].

Em depoimento neste inquérito a vítima relatou que conviveu com o investigado por 41 anos e devido às agressões dele se separou [R7].

Em depoimento prestado em agosto de 2012, a vítima disse ter se separado do investigado em razão dele usar cocaína. Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai (...) [R8].

Relatou ter convivido com o investigado por dez anos e que tiveram dois filhos desse relacionamento, porém, decidiu se separar [R11].

Importante pensar que essas ações praticadas pelos homens que ficam mais restritas aos atos de fala podem indicar a preocupação em não deixar marcas visíveis, que poderiam ser mais eficazes para a penalização desses autores pela Lei Maria da Penha, posto que marcas visíveis se configuram como vestígios do crime praticado e independem de testemunhas como no caso de ameaças e injúrias. No cenário da violência doméstica, a penalização muitas vezes deixa de acontecer pela ausência de provas, que podem ser tanto técnicas quanto testemunhais.

Além dessa questão da produção de provas, também se pode pensar sobre o efeito simbólico da agressão verbal sobre as mulheres, que parece manter estreita relação com a sua sexualidade. Observa-se que os xingamentos proferidos pelos agressores contra as vítimas deslizam para significados relacionados à traição, com forte apelo sexual, sugerindo que as mulheres envolvem-se com outros homens, como no caso de puta, vagabunda e sem- vergonha, como mencionados nos relatórios de número 2, 4 e 8, exemplificados acima. Essa também foi uma constatação da pesquisa de Zanello, Bukowitz e Coelho (2011), que investigou valores de gênero nas representações de xingamentos, manifestados por adolescentes da cidade de Brasília. Segundo as autoras, quando atribuídos às mulheres, os xingamentos têm caráter sexual ativo tais como puta, prostituta, piranha, safada, já os dirigidos aos homens têm caráter passivo.

Xingar é insultar com palavras, com o propósito de machucar e degradar moralmente outra pessoa, o que se considera uma violência moral e psicológica. Na ofensa praticada via xingamento, ainda que não possam ser completamente separados, os significantes empregados pouco importam, mas sim seus significados. De acordo com Zanello, Bukowitz e Coelho (2011), o xingamento carrega em si valores morais e regras apregoados por uma sociedade, independentemente da consciência do falante ao proferi-los, podendo, então, veicular, também, valores atribuídos aos diferentes gêneros.

A educação das mulheres, no sistema patriarcal, que ainda exerce forte influência nas relações de gênero, associa as mulheres ao casamento, que deverá ser para sempre; à maternidade; ao isolamento no lar, onde ela ficará afastada, isolada do mundo exterior, guardada em domínio privado, do marido, provavelmente. Essa representação construída da

mulher colabora para a compreensão dos xingamentos a elas proferidos, que as desmoraliza quanto a essa postura idealizada de comportamento feminino.

Segundo Judith Butler (2008), o gênero está, a todo tempo, sendo mobilizado nas práticas discursivas cotidianas que se manifestam nas atitudes de homens e mulheres, a partir de padrões determinados socialmente, sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Esse posicionamento da autora remonta à questão da memória discursiva que retoma os já-ditos, em outros tempos, outros lugares.

No caso específico dos xingamentos na relação conjugal, eles costumam agir como coadjuvantes da violência física, conforme citado por Freitas e Pinheiro (2013). As injúrias proferidas pelo parceiro podem machucar muito também e, na maioria das vezes, não deixam vestígios para serem usados como provas criminais – exceto se forem proferidas por escrito ou na presença de testemunhas. Os agressores, por (supostamente) conhecerem bem suas vítimas, sabem o que pode doer mais sem deixar vestígios, uma vez que as mulheres geralmente se sentem muito afetadas pelas injúrias que recebem, talvez por atacarem a sua honra.

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 71-75)