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HETEROGENEIDADE(S)

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 75-82)

4 INVESTIGANDO O TEXTO POLICIAL

4.3 HETEROGENEIDADE(S)

Os elementos que designam os papéis desempenhados pelos sujeitos como enunciador (Autoridade Policial) e interlocutor (Juiz de Direito) resultam de lugares determinados na estrutura de uma formação social que lhes é comum. A finalização dos textos analisados traduz essa ideia. De acordo com Orlandi (1987, p. 180), o discurso é visto como “o lugar, o centro comum que se faz no processo de interação entre falantes e ouvintes, autor e leitor” e esse processo de interação é o que pressupõe o jogo de imagens refletidas no texto. Desse modo, questiona-se: como se estabelece o jogo de imagens no discurso dos relatórios aqui analisados? Como se posicionam produtor e destinatário desse discurso no que concerne à questão da violência contra a mulher?

Assim, considerando-se o conceito de formações imaginárias, cunhado por Pêcheux ([1969] 2014, 2008), pode-se dizer que as imagens que os interlocutores de um discurso atribuem a si e ao outro são determinadas por lugares construídos no interior de uma formação social, que inserem o juiz de direito em instância diversa da do delegado de polícia e que poderá ou não acatar a sugestão do policial, quanto à penalização do indivíduo investigado. Abaixo os excertos selecionados e grifados por mim:

Ainda, com fundamento no artigo 311, in fine e 313, III do Código de Processo Penal, represento a Vossa Excelência pela decretação de prisão preventiva em desfavor de [nome], já qualificado nos autos [R3].

Outrossim, informo que, tão-logo o indiciado for localizado será interrogado e o depoimento encaminhado a esse juízo [R1].

Observa-se que, ainda que o relatório policial seja produzido com a preocupação da neutralidade e a impessoalidade, os excertos apontam o uso da primeira pessoa verbal como enunciadora: represento e informo. Possivelmente esse emprego seja uma retomada da autoridade policial garantida ao sujeito-delegado para decidir pelas ações quanto ao que foi apurado no inquérito policial.

Quanto à questão da alteridade, é possível identificar, nos relatórios analisados, que a autoridade policial atribui a elementos externos ao texto a certeza sobre a prática delituosa de alguém, a fim de subsidiar sua decisão, conforme excertos a seguir, com grifos meus:

Isso posto, baseado nas declarações da vítima e testemunha, indicie-se [nome] pela prática dos crimes previstos nos artigos 149 e 147 do Código Penal [R12].

O laudo de exame de corpo de delito constatou ofensa à integridade física de [nome] [R15].

O relatório psicológico com entrevista da criança [nome] foi conclusivo para a ocorrência de agressão de [nome] [R19].

Considerando-se que o relatório é atribuição da autoridade policial e que é nele que a autoria do crime será apresentada para o juiz (interlocutor desse texto), a menção a elementos exteriores opera como garantidores de que não só a opinião do policial está contando naquele momento, mas outros documentos juntados aos autos do inquérito policial, a fim de justificar e embasar a decisão da autoridade. Também o uso de aspas para marcar a fala do outro pode ser percebido nos relatórios, marcando essa presença. Os excertos a seguir, grifados por mim, apontam isso.

Relatou que em todas as vezes em que [nome] vai até sua casa para pegar os filhos, este agride com palavras, chamando-a de “vagabunda” e “cachorra”, inclusive na frente das crianças [R16].

Relatou que após uma discussão foi agredida fisicamente por ele, com tapas e apertões, além de [nome] ter proferido ameaças de morte, dizendo que [nome] “iria para o inferno, assim como ele”, colocando uma faca em seu pescoço. Acrescentou que no dia seguinte foi injuriada por ele, que a chamou de “vagabunda” e “filha-da-puta” e novamente agredida fisicamente com socos, tapas e empurrões [R15].

Alega ter sido agredida fisicamente e injuriada com as palavras “puta e vagabunda” [R11].

[Nome], mãe da vítima, esclareceu que ambos naquela data estavam estranhos, tendo inclusive perguntado para a filha se ela havia bebida, sendo que [nome] respondeu que “um pouquinho” [...]. Tempos depois, o próprio [nome] teria dito que batera em [nome] porque ela havia falado “muitas coisas” [R17].

Relatou que constantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que “somente a morte iria separá-los” [R18].

Os excertos apontam, ainda, para um uso recorrente dos xingamentos que configuram o crime de injúria e que são marcados no texto do relatório pelo delegado pelo uso das aspas, provavelmente para definir o crime, bem como para chamar atenção sobre esse tipo de violência. O uso das aspas nos excertos acima apontados é o que se chama de discurso citado ou representação do discurso outro na perspectiva da heterogeneidade enunciativa proposta por Authier-Revuz (2008).

Segundo Authier-Revuz (1990), a heterogeneidade enunciativa dos sujeitos pode ser apontada por dois princípios: a Heterogeneidade Constitutiva e a Heterogeneidade Mostrada. Esta última pode ser ainda marcada e não-marcada. Quando marcas explícitas de outro sujeito são mostradas e marcadas no texto do “eu”, pelo discurso direto, uso de citações ou de aspas, por exemplo, tem-se a heterogeneidade mostrada marcada. Já a heterogeneidade mostrada não-marcada se estabelece pela presença do outro interferindo através do uso de ironia, imitação, etc. A heterogeneidade constitutiva, por sua vez, é um princípio que

fundamenta a linguagem e implica perceber a presença de outros discursos que não são marcados na superfície do texto, mas que poderão ser localizados na memória discursiva, pelo reconhecimento da formação social e ideológica investidas no texto enunciado.

Interessante observar que no corpus também foram encontrados momentos em que as aspas não foram empregadas para marcar os xingamentos. Exemplos postos em destaque:

Disse que no dia 16 de maio de 2010, em uma comemoração ao dia das mães, [nome] começou a ingerir bebidas alcoólicas e em seguida passou a ofendê-la verbalmente chamando de vagabunda [R7].

Após o fim do relacionamento mudou-se para a casa do pai, mas o investigado continuou a proferir ameaças de morte e injúrias tipo vagabunda e sem-vergonha [R8].

[Nome], mãe de [nome], relatou que após a separação [nome] passou a ir em sua casa e chamar [nome] de puta, vagabunda, bem como disse que iria agredi-la fisicamente se a visse com outro homem [R20].

Afirma que tentou impedi-lo de entrar na residência quando foi agredida fisicamente, bem como injuriada com palavra tipo vagabunda e puta [R5].

Pode-se inferir que o uso de aspas para marcar os xingamentos sirvam para distinguir o quanto inapropriados aqueles termos ficariam na formalidade do texto do relatório. Ainda que necessários para a qualificação criminal, o emprego dos xingamentos parece destoar do cenário da escrita formal, cujas palavras seriam, ilusoriamente, do enunciador e as marcadas com aspas não. É relevante observar que, na produção do texto jurídico, há uma constante preocupação com a forma e com a semântica, de maneira a construir um texto que atenda ao cenário discursivo do meio jurídico, a saber, um cenário de formalidades, de polidez, de gentilezas. Nesse cenário, o emprego de palavras ofensivas e xingamentos, de maneira geral, não tem lugar. Isso justificaria, então, o emprego das aspas, a fim de tentar limpar o texto da sujeira provocada pelo outro; esse outro que, via de regra, pertence a outra classe social, diversa do enunciador do texto jurídico.

No excerto do relatório R17, mencionado acima, o uso das aspas deixa de fazer referência a xingamentos e dá ênfase a expressões utilizadas tanto pela vítima – um pouquinho – quanto pelo agressor – muitas coisas – que teriam sido citadas por uma testemunha. A marcação das aspas naquela situação sugere o distanciamento do enunciador para com aquelas expressões e parece querer sugerir outros sentidos além dos que já se podem apreender de antemão. Um pouquinho é uma quantidade difícil de ser definida, posto que está no plano relacional das ideias. Para alguém um pouquinho pode ser muito pouco, mas para outro alguém esse pouco pode ser muito; assim como muitas coisas, tanto pode significar muito quanto nada, dependendo do ponto de vista interacional no contexto da enunciação. Trata-se em ambos de conotações autonímicas, conforme foi definido por Authier-Revuz (1990), em que o enunciador – sujeito-delegado – coloca em suspensão a sua responsabilidade sobre os sentidos que se produzem a partir dessas expressões e parece questionar a apropriações dessas palavras no depoimento da testemunha que foi citado no relatório.

Além disso, ainda nesse excerto, observa-se o seguinte: “[Nome], mãe da vítima, esclareceu que ambos naquela data estavam estranhos, tendo inclusive perguntado para a filha se ela havia bebida, sendo que [nome] respondeu que “um pouquinho” [...]. A aparição desse “bebida” teria sido um lapso de escrita? Um ato falho? Possivelmente, mas provavelmente, não por acaso. De acordo com Teixeira (2005), a psicanálise atribui a esses atos uma revelação do inconsciente que se estrutura como uma linguagem. No caso analisado, uma vez que o tema “bebida” surgiu no depoimento da testemunha, que relata ter questionado a filha sobre ter bebido, em função do comportamento que ela e o companheiro estavam aparentando, o que teria sido admitido por essa vítima, parece haver a indicação ou a sugestão do enunciador sobre a bebida como problema de fundo naquela situação de violência doméstica. Muito frequente é a alegação das famílias de que os problemas de violência doméstica se agravam quando há o uso de bebidas alcoólicas. Ainda que se saiba que a violência doméstica não pode ser atribuída apenas a esse fator, quando ele está presente, geralmente é aspecto impulsionador para a violência. Nessa situação, então, pode-se fazer uma leitura de que, nesse caso, o sujeito enunciador, inconscientemente, aponta para os motivos do delito em apuração: a bebida, que se configurou ali como um lapso de escrita, mas pode revelar outros sentidos, mas também a possibilidade de não haver mais o que se dizer. A falha ali, então, conforme Orlandi (2012, p. 79), “não é o menos, é o mais”. O mais que sugere outras reflexões sobre a violência e o contexto maior em que ela se dá.

Outro aspecto que desperta atenção nos excertos dos relatórios apresentados anteriormente diz respeito à postura dos agressores para com as vítimas. Em: “após a

separação [nome] passou a ir em sua casa e chamar [nome] de puta, vagabunda, bem como disse que iria agredi-la fisicamente se a visse com outro homem” [R20] (grifos meus), o agressor indica o sentimento de possessão que nutre pela vítima, ao ponto de ameaçar agredi- la, caso a encontrasse com outro parceiro. Considerando que ele também proferiu xingamentos como puta e vagabunda, que sugerem uma conduta sexual com muitos parceiros, é possível que esse agressor já esteja prevendo que, de fato, vai encontrá-la com outra pessoa. Se eles estão separados, muito provavelmente ela encontrará outro parceiro e ele também. Ocorre que, enredado numa cultura machista em que incorporou um ideário de controle do homem sobre a mulher, esse agressor acredita que tem o domínio sobre ela, numa expressão de virilidade, conduzida por um padrão hegemônico atribuído ao gênero masculino, conforme definiram Freitas e Pinheiro (2013).

Outra amostra desse sentimento de posse está em “Relatou que constantemente sofre ameaças de morte, e por vezes [nome] chegou a dizer que “somente a morte iria separá-los” [R18]. Há uma postura extrema desse agressor que não aceita a separação do casal e que só admitiria isso em caso de morte. A morte é uma separação radical. Antes mesmo de o sujeito aceitar a morte, se faz necessário que aceite a separação, o que parece que ele não está disposto a fazer. É uma posição discursiva narcísica forte, que novamente demonstra sentimento de posse pela mulher, que ou será dele, ou não será de mais ninguém. Além disso, também ressoa aí uma voz genérica de cunho religioso, ouvida no ato do casamento: até que a morte os separe.

Assim, para finalizar, por ora, as discussões sobre os relatórios de inquéritos policiais selecionados para esta pesquisa sobre os efeitos de sentido gerados nos discursos produzidos nesses documentos, percebe-se que, discursivamente, o enfrentamento às situações de violência a que as mulheres são submetidas, no meio doméstico não se efetiva. De fato, os sentidos que se produzem reafirmam e/ou reforçam as condições de hierarquia estabelecida entre os gêneros masculino e feminino, no que concerne às marcas de gêneros deixadas no discurso que refere a violência.

Ainda que o trabalho da polícia judiciária, no contexto da violência conjugal, tenha por objetivo o encaminhamento dos agressores à esfera judicial para julgamento pelos crimes praticados contra suas parceiras, os discursos empregados na fase policial geram sentidos ainda muito impregnados por relações ideológicas e de poder, referente às questões de gênero. Nesse sentido, esses discursos mais reproduzem o status quo do cenário da violência conjugal do que inovam, como se esperava que acontecesse com a promulgação da Lei Maria da Penha que, conforme Pasinato (2010), representou um marco no extenso

processo histórico de reconhecimento da violência contra as mulheres como um problema social no Brasil e cujo objetivo é e atuar no contexto da proteção, da prevenção e da repressão a esse tipo de violência.

No documento Lei Maria da Penha e violência conjugal (páginas 75-82)