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Nesse capítulo buscamos levantar pontos pertinentes ao surgimento da História enquanto disciplina escolar e evidenciar um pouco da História da História ensinada no Brasil. Porém, antes de adentrar nesses itens, entendemos que é necessária uma pequena discussão do que seria uma disciplina escolar para um melhor encaminhamento do estudo proposto.

Fonseca (2003) pontua que disciplina escolar seria uma conceituação bem ampla e sem unanimidade entre os estudiosos do assunto. Sua definição mais usual seria: “[...] conjunto de conhecimentos identificados por um título ou rubrica dotado de organização própria para o estudo escolar, com finalidades específicas ao conteúdo de que trata e formas próprias para sua apresentação” (FONSECA, 2003, p. 15).

Bittencourt (2009) destaca que os estudos mais substanciais em torno da conceituação de disciplina escolar têm sido desenvolvidos por pesquisadores ingleses e franceses. Há muitos embates sobre essa temática, todavia duas posições têm se destacado. A primeira seria aquela que entende disciplina como uma “transposição didática” dos conhecimentos advindos do meio acadêmico. A segunda posição defende ser a disciplina “um campo de conhecimento autônomo”, que sofre influências da academia, mas que possui características próprias.

Na defesa da transposição didática destaca-se o estudioso francês Yves Chevallard, especialista em Didática da Matemática. Bittencourt (2009), analisando este estudioso, ressalta que a escola é:

[...] parte de um sistema no qual o conhecimento por ela produzido se organiza pela mediação da ‘noosfera”, conceito correspondente a um conjunto de agentes sociais externos à sala de aula – inspetores, autores de livros didáticos, técnicos educacionais, famílias. Esses agentes garantem à escola o fluxo e as adaptações dos saberes provenientes das ciências produzidas pela academia. Essa abordagem considera a disciplina escolar como dependente do conhecimento erudito ou científico, o qual, para chegar a escola e vulgarizar-se necessita da didática, encarregada de realizar a transposição. (BITTENCOURT, 2009, p.36)

Acrescenta Bittencourt (2009), que a ideia de transposição didática tem o pressuposto de que há uma hierarquia de conhecimentos, e nela o saber escolar está em posição subalterna ao acadêmico, já que este último é o que dá a legitimidade ao primeiro. Essa perspectiva concebe que os saberes escolares, provenientes das séries inicias do ensino fundamental, ocupam um patamar ainda mais inferior nessa hierarquia, pois os docentes que atuam nesse segmento não possuem uma formação específica em uma determinada área de conhecimento. Em relação a conteúdos e métodos de ensino e aprendizagem, os defensores da transposição didática afirmam existir uma distinção muito clara entre eles. Os conteúdos têm origem

exclusiva da produção científica. Já os métodos representam apenas técnicas pedagógicas que têm por finalidade transformarem-se em didática para o desenvolvimento dos conteúdos. Nessa lógica, da escola como reprodutora de conhecimento produzido externamente, o professor figura como um mediador da reprodução, e a eficácia de seu trabalho se concentra em sua habilidade de adaptar o conhecimento científico ao ambiente escolar.

Monteiro (2003) destaca que, de acordo com Chevellard, o professor não é o centro do processo da transposição didática. Segundo ele, o professor trabalha na transposição didática e não seria o precursor da mesma. O conhecimento a ser desenvolvido na sala de aula, antes de se tornar um “saber a ensinar” já vem de um processo de seleção e estruturação didática anteriormente desenvolvido por representantes de associações, técnicos e outros professores militantes de uma dada área de conhecimento, a denominada noosfera.42 Quando o professor intervém para escrever a variante local do texto do saber que ele chama seu curso, a transposição didática já começou há muito tempo (CHEVELLARD, 1991, p. 20, apud MONTEIRO 2003, p. 15). O professor precisa ter a dimensão que em sua aplicação o processo de transposição didática se dividiria em duas instâncias, a lato sensu e a stricto sensu, acontecendo da seguinte forma:

[...] a transposição didática, lato sensu se inicia com a definição dos saberes a ensinar a partir do saber acadêmico, realizada pela noosfera, e a transposição didática interna, stricto sensu, realizada pelos professores, dá continuidade ao processo elaborando algumas das versões possíveis do saber ensinado. A seleção dos saberes a ensinar pela noosfera resulta, por sua vez, de lutas e negociações políticas envolvendo legitimações ou contestações de poderes na sociedade em geral, no campo acadêmico e/ou sócio profissional, ou no contexto educacional mais específico. (MONTEIRO 2003, p. 16)

Silva (2017) adverte sobre a necessidade de não se conceber a teoria da transposição como uma simples adaptação do saber proveniente da academia para o espaço escolar. Tal concepção poderia gerar a errônea ideia de que o saber ensinado nas instituições escolares não possui cientificidade em sua origem, ou, ainda mais grave, que o saber escolar nem poderia ser reconhecido como científico. Dessa forma, é fundamental ter a percepção de que o professor, mesmo desenvolvendo seu trabalho apoiado em documentos, como propostas curriculares, portarias, manuais didáticos, que já vêm carregados de transposição, não é um sujeito inconsciente de toda essa influência. Por isso, é importante concebê-lo como um dos responsáveis pelo processo, e não uma mera engrenagem. Para os defensores da transposição didática é de suma importância a relação contínua entre o saber escolar e o acadêmico. O

42 No Brasil, o resultado do trabalho da Noosfera aparece também nos Referenciais Curriculares (MEC, 1997;

2006), nos documentos que trazem as diretrizes curriculares e orientam o ensino de uma determinada disciplina científica. (SILVA, 2017, p.5)

contraste entre eles possibilita que o acadêmico avalie, através do escolar, sua inserção na sociedade e questione, inclusive, seus aspectos teórico-metodológicos. Por sua vez, o saber escolar alcançaria legitimidade social por meio do acadêmico.

No que tange ao ensino de História, esta ideia de transposição didática sofreu críticas mais contundentes em fins da década de 1980. Pensando que um dos pilares da transposição didática é a seleção dos conteúdos, um dos questionamentos mais notórios era: quais seriam os conteúdos considerados indispensáveis para o ensino de História? Em torno dessa questão Bourne (1998) não vê a escola como um lugar de mera vulgarização do saber acadêmico ao afirmar que

Ensinar a história é, em primeiro lugar, levar os alunos a se apropriarem de uma linguagem específica. Neste sentido, os conteúdos do ensino são inseparáveis das modalidades de sua transmissão. Apropriar-se de uma linguagem não passa por uma simples memorização, e sim pela aprendizagem das operações intelectuais que permitem a construção de um discurso. Como o historiador, mas no nível que lhe é próprio, o aluno deve descobrir, analisar, classificar. Em suma, operar um ordenamento no tempo (BOURNE, 1998, p. 139)

Passando para a proposta da disciplina escolar como um campo de conhecimento autônomo, os pesquisadores Ivor Goodson e André Chervel são referências. Segundo Bittencourt (2009), esses estudiosos entendem que a disciplina escolar se constitui por “uma teia de outros conhecimentos, havendo diferenças mais complexas entre as duas formas de conhecimento, o científico e o escolar” (BITTENCOURT, 2009, p.37). De imediato, esses pesquisadores rejeitam a hierarquização de saberes estabelecidos pelos partidários da transposição didática, pois, em seu entendimento, tal hierarquização não se limita a questões de ordem epistemológicas, e é permeada de influências sociais, tais como o fato do conhecimento ser utilizado como um instrumento de poder por parte de determinados segmentos sociais colaborando, inclusive, para a manutenção de desigualdades sociais. Bittencourt (2009), analisando Chervel, o crítico mais ferrenho da concepção da transposição didática, ressalta que

[...] a disciplina escolar deve ser estudada historicamente, contextualizando o papel exercido pela escola em cada momento histórico. Ao defender a disciplina escolar como entidade epistemológica, relativamente autônoma, Chervel, considera as relações de poder intrínsecas à escola. É preciso deslocar o acento das decisões, das influências e das legitimações exteriores à escola, inserindo o conhecimento por ela produzido no interior da cultura escolar.43 Em suas argumentações a favor da

autonomia da disciplina escolar, esse autor concebe a escola como uma instituição

43 Conceito amplamente usado nas pesquisas mais recentes em história da educação entende a escola como um

objeto de estudo no qual se verifica uma cultura própria institucional. De acordo com Bittencout (2009), para Chervel as disciplinas escolares formam-se no interior dessa cultura, tendo objetivos próprios e muitas vezes irredutíveis aos das ciências de referência, termo que Chervel emprega em lugar de conhecimento científico.

que, embora obedeça a uma lógica particular e específica da qual participam vários agentes, tanto internos como externos, deve ser considerada como lugar de produção de um saber próprio. (BITTENCOURT, 2009, p. 37)

Nessa concepção, nega-se a ideia de que as disciplinas escolares devem ser pensadas como meras adaptações do conhecimento produzido externamente. Elas devem ser concebidas como parte de um todo: a cultura escolar. Portanto, os conteúdos escolares não podem ser vistos de forma isolada, e sua seleção está condicionada às finalidades determinadas que se almejam alcançar dentro da função social estabelecida pela escola e sua complexa rede de valores.

Pinto (2014) acrescenta que, dentro da concepção de cultura escolar, as disciplinas são uma construção resultante das interações culturais do universo escolar. São dotadas de códigos próprios desenvolvidos tanto para o seu funcionamento quanto pelo escopo didático- pedagógico que norteiam seu ensino. Elas devem ser concebidas como um produto cultural, que recebem a atribuição de serem transmissoras de conteúdos e daquilo que se identifica como saberes escolares. Pensadas dessa forma, as práticas de ensino advindas das disciplinas escolares, dentro da perspectiva da História Cultural, constituem práticas culturais e são um campo de enunciação repleto de códigos a serem analisados. A autora compartilha da visão do historiador Viñao Frago, que entende que as disciplinas escolares devem ser pensadas como um organismo vivo e que precisam ser investigadas como tal, e não como

[...] entidade abstrata, universal e estática. Enquanto ‘apropriações’ de um corpo profissional, reconhecido por sua formação, disciplinas escolares não podem ser estudadas separadas dos principais agentes que lhes dão vida — os professores. Alega também o autor que considerar as disciplinas escolares como um “organismo vivo” se justifica porque (elas) nascem e se desenvolvem, evoluem e se trans- formam, desaparecem, engolem umas às outras, se atraem e se repelem, se desgarram e se unem, competem entre si, se relacionam e intercambiam informações (ou as tomam emprestadas de outras) etc. (PINTO, 2014, p. 132)

Fonseca (2003) adverte para a necessidade de se evitar uma supervalorização dessa concepção da disciplina escolar como produtora autônoma de saber, pois, segundo ela, tal posição pode levar ao “risco de minimização das relações externas, como conjunturas políticas, os embates ideológicos e as ingerências de caráter cultural mais amplo” (FONSECA, 2003, p. 12). A autora ressalta que muitos pesquisadores, mesmo seguindo a proposta de Chervel, têm tido a preocupação de conduzir seus estudos frente a este tema considerando a multiplicidade de relações que podem ocorrer entre o saber acadêmico e o escolar, localizando tais relações em suas respectivas conjunturas históricas.

Trazendo essas discussões de disciplina escolar como transposição didática ou campo autônomo de produção de conhecimento, especificamente para a disciplina de História, Cerri (2009) entende que é preciso dialogar simultaneamente como essas duas visões pois,

Neste quadro, o ensino de História não tem como ser enunciação, mas diálogo. Não cabe a ideia de que a História – ciência produz e a História ensinada reproduz, divulga ou didatiza para o mundo dos não iniciados. Em seu nascedouro, o conhecimento histórico científico encontra-se encharcado das razões da vida prática, visto que os sujeitos desse conhecimento são seres humanos envolvidos com o cotidiano. [...] O ensino escolar de História, portanto, não é dar algo a quem não tem, não é dar saber ao ignorante, mas é gerenciar o fenômeno pelo qual saberes históricos são colocados em relação, ampliados, escolhidos, modificados. (CERRI, 2009, p. 154)

Importante destacar que, por princípio, comungamos com a ideia de Chervel, segundo o qual as construções produzidas por docentes e alunos a partir dos conteúdos e metodologias advindos das disciplinas escolares são um rico objeto de investigação. Dentro do estudo proposto nesta dissertação, as práticas dos docentes de História na aplicação do Currículo Formal e as discussões apresentadas frente à concepção do que seria uma disciplina escolar são de suma importância. Entendemos que a práxis do professor sofre influências diretas do entendimento que ele tem frente à ideia de ser o ensino de História uma transposição didática ou um espaço de conhecimento autônomo. Este posicionamento é um dos itens que investigamos em nossa pesquisa de campo, conforme já pontuado na apresentação.

3.2 O SURGIMENTO DA HISTÓRIA ENQUANTO DISCIPLINA ESCOLAR E AS