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Optamos por abordar a História Cultural em um item específico, pois, como mencionamos na apresentação, é dela que advém a base teórica que estamos utilizando em nossa análise das práticas docentes. Além disso, os documentos curriculares, que analisamos com mais detalhes no item 5, destacam ter grande influência dos pressupostos desta concepção de construção do conhecimento histórico.

O conceito de História Cultural por si só causa grande discussão entre os estudiosos. Burke (2008) ressalta que, para o alemão Karl Lumprecht (1897), pensar História Cultural é pensar um território onde as fronteiras têm uma definição cada vez mais complexa de se delimitar. Uma solução para este problema conceitual seria pensá-la como um método, o que também não é algo simples. Ainda que se estabeleçam delimitações, como por exemplo, vê-la como um método que busca significados, práticas, representações, símbolos, ou se pense a mesma como uma linguagem descritiva, narrativa ou pouco quantitativa, isso não traz um consenso entre a comunidade acadêmica.

Burke (2008) pontua que, para Jean Paul Sartre, a solução é dizer que a História Cultural não tem essência, mas tem história própria. Ela foi muito defendida por americanos e alemães, sofreu resistência por parte dos ingleses e os franceses, por sua vez, preferiram a utilização da história das civilizações, mentalidade, imaginário e, após essas situações, há menos resistência em seu uso na atualidade.

Burke (2008) acrescenta que, com a denominada diáspora dos intelectuais alemães no contexto das Grandes Guerras Mundiais, nos EUA e na Inglaterra, ganham fôlego os estudos das relações entre cultura e sociedade. Arnold Hauser (marxista) debruça-se sobre a história social da arte (1951). Em 1960 a História Popular faz a descoberta do povo e Eric Hobsbawm (com o pseudônimo "Francis Newton") escreve a História Social do Jazz. Em 1963 é “A formação da classe operária inglesa”, de Edward Thompson, que destaca o lugar da cultura popular para explicar as mudanças econômicas, influencia efetivamente os historiadores e estudiosos da História Cultural. Acrescenta-se a isso as publicações dos Annales, de Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt.

Chartier (2002) cita S. Schorske para afirmar que uma definição válida de História Cultural seria não pensá-la como metodologia particular, nem como conceito determinado, mas como uma dimensão do trabalho do historiador, no qual o mesmo, “procura localizar e interpretar temporariamente o artefato num campo em que se intersectam duas linhas” (CHARTIER, 2002, p.63). Uma dessas linhas seria a vertical ou diacrônica, caminho por onde o pesquisador estabeleceria a relação de um texto ou de um sistema de pensamento, com as

atividades culturais que o antecedem, (manifestações de ordem política, arte, etc.). A outra linha seria a horizontal, também denominada de sincrônica, que possibilitaria relacionar o objeto intelectual com o que vai sendo evidenciado em outras ramificações ou aspectos de uma cultura.

A partir da década de 1970, o surgimento da denominada Nova História Cultural, termo muito utilizado por Lynn Hunt, deu mais clareza e novo fôlego às pesquisas no campo da História da Cultura. Esta associa abordagens da Antropologia e da História, para analisar as tradições da cultura popular, com interpretações culturais da experiência histórica e humana, para buscar representar os conflitos e as divisões existentes nas classes sociais, através de uma história plural que apresenta caminhos alternativos para a investigação de problemas.

O fortalecimento da História Cultural, segundo Pesavento (2012), tem uma relação direta com os debates teóricos e metodológicos que ocorriam no campo da História entre as décadas de 1960 e 1970. Os críticos do Marxismo, especialmente os de influência leninista e estalinista, denunciavam o fato desta corrente promover uma supervalorização do econômico e conceber a sociedade como algo mecânico e evolucionista. Criticava-se um reducionismo das explicações da realidade social, vinculando a denominada superestrutura à exigência da infraestrutura, bem como a máxima de que a compreensão do processo histórico só era possível no campo da luta de classes. Categorias conceituais como modo de produção direcionavam a interpretação da realidade colocando as especificidades históricas de cada contexto em um plano secundário. Conceitos como o de ideologia não davam conta da análise do denominado mundo das ideias, que estava atrelado às determinações da classe e dos dispositivos da dominação e da subordinação. As imposições dos princípios do materialismo histórico, que estipulava a realidade – como a dialética do jogo existente entre dominação e resistências – levaram intelectuais, até mesmo de orientação marxistas, como por exemplo, Thompson, a se afastarem da rigidez dessa matriz teórica e buscarem outras questões e temas que implicavam, consequentemente, na busca de outros modelos de análise.

Na outra extremidade, acrescenta Pesavento (2012), os Annales que, desde fins da década de 1930 criticavam a História Metódica (por priorizar as temáticas relacionadas aos grandes estadistas e ao nacionalismo; por sua concepção de fontes atreladas a documentos de cunho oficial), também estavam em questionamento. As aspirações de uma história totalizante, conforme a concepção Braudeliana do termo, se mostrava pouco eficaz na obtenção de seguidores. Em sua negação aos referenciais do marxismo, os seguidores dos Annales abandonaram a análise fundamentada na luta de classes. Voltaram-se para a

exploração de arquivos, a coleta sistemática de dados e a organização sequencial dos mesmos. Isso suscitou indagações se esta maneira de se produzir conhecimento histórico não estaria limitada a uma narrativa sem potencialidade de explicar os fenômenos sociais. As análises desenvolvidas privilegiaram o nível econômico e social, o que acabou posicionando a cultura a uma posição terciária. Mesmo trazendo conceitos como conjuntura, estrutura, média e longa duração, que foram utilizados como marcos explicativos para uma nova concepção de História que buscava a interdisciplinaridade e ampliação de temáticas, os Annales eram acusados de possuir reduzido poder explicativo e vazio conceitual.

Segundo Pesavento (2012), observa-se que historiadores franceses dos Annales e os denominados neomarxistas ingleses, entre as décadas de 1960 e 1980, com os denominados paradigmas em crise, procuraram desenvolver uma História Social que permeasse os territórios da cultura, buscando entender como as práticas e experiências, sobretudo dos homens comuns, materializavam-se em valores, ideias e conceitos sobre o mundo. Os debates historiográficos provenientes do campo das mentalidades estimularam os pesquisadores que defendiam os estudos referentes ao mental, mas que não pretendiam abrir mão de manter a História como uma ciência específica, procuraram suprir as limitações teóricas das mentalidades, buscando relacioná-la com o todo social. Para atingir tal objetivo, houve uma aproximação da História com a Antropologia, com a valorização da concepção Braudeliana de Longa Duração, isto é, o interesse de estudos das expressões culturais das elites e suas relações com a denominada cultura popular, além de haver um distanciamento do estruturalismo histórico e da História das Ideias. Cria-se, assim, as bases para a História Cultural, que não se omitiu de abordoar a questão das classes sociais e seus conflitos.

Burke (2008) reforça que a História Cultural representa uma enorme aproximação entre a História e a Antropologia, e que a ênfase que essa corrente historiográfica promoveu ao aspecto cultural abriu reflexões para que outras áreas passassem a considerar este ponto. Jonh Elliott (historiador político) assim como Roger Chartier renderam-se à Nova História Cultural e as explicações culturais entram para discussão de todos os temas. Até mesmo a URSS com Aaron Gurevich voltou - se para a antropologia e mesmo Claude Lévi-Strauss, com seu estruturalismo, estuda os elementos do sistema cultural ou social. Com a ampliação do conceito de cultura por Geertz, que a concebe como uma espécie de teia de significados tecida pelos seres humanos, outros pesquisadores foram influenciados, tais como Robert Darnton. Com sua obra o Massacre dos Gatos (1984), Darnton, narrando acontecimentos em Paris, procurou entender as relações sociais da época de 1730 a partir de sua interpretação dos significados e dramas sociais em oposição à função social dos costumes. Nesse rol da História

Cultural do final do século XX ainda destacam-se: Le Roy, Daniel Roche, Carlo Ginzburg, que vão estudar cultura e sociedade sem reduzir uma apenas ao reflexo da outra.

Burke (2008) destaca que a História Cultural também é suscetível a críticas. A primeira delas se remete à questão das fontes e seu tratamento, dos métodos e das conclusões que têm confiabilidade relativa, pois são produzidas e selecionadas com alto grau de condicionamento sendo assim, acusada de impressionista. Burke (2008) aponta como possíveis soluções ao problema do tratamento das fontes, aquilo que os franceses denominam História Serial, que tem como base a análise de uma série cronológica de documentos. Ele cita como exemplo o trabalho de análise de imagens votivas da região de Provence, França, onde as mesmas foram catalogadas cronologicamente. Isso permitiu evidenciar mudanças em comportamentos religiosos e sociais ao longo dos séculos. Tal metodologia também já fora utilizada na análise de outros documentos, tais como testamentos, escrituras e panfletos políticos.

No que se refere à questão da subjetividade que os textos analisados podem conter, pode ser utilizada a análise de conteúdo, um método originado no início do século XX, nas faculdades de jornalismo dos EUA. “O procedimento é escolher um texto ou corpus do texto, contar a frequência das referências a um dado tema ou temas e analisar sua covariância, a associação entre temas” (BURKE, 2008, p. 34). Ele exemplifica o emprego desta estratégia na análise dos escritos do Tácito (historiador e político romano do século I d. C), nos quais foi constatada a enorme frequência de palavras relativas ao medo, o que permite concluir as demonstrações de insegurança desse escritor, sejam elas manifestadas de forma consciente ou inconsciente.

Dos marxistas, acrescenta Burke (2008), as críticas referentes à História Cultural remetem-se ao fato de a História e Cultura ficar sem conexões, faltar relação com a base econômica ou social, subestimando-se a homogeneidade cultural e os conflitos de culturais distintas numa mesma sociedade. O trabalho “A formação da classe operária inglesa” de Edward Thompson, foi criticado por marxistas por aquilo que eles denominavam de culturalismo, uma vez que o autor colocou destaque nas experiências e nas ideias e não nas questões econômicas e políticas. Thompson por sua vez, reagiu acusando seus críticos por sua ênfase no economicismo. O fato é que se criou um embate entre culturalismo e economicismo que gerou frutos positivos.

Encorajou críticas internas aos conceitos centrais de uma fundamentação econômica e social, ou a base e uma superestrutura cultural. Para Raynond Willians, por exemplo, a fórmula de base e superestrutura era rígida, e ele preferia estudar o que chamou de relações entre elementos no modo de vida como um todo. Atraía-lhe a

ideia de hegemonia cultural, ou seja, a sugestão feita pelo marxista italiano Antônio Gramsci, de que as classes dominantes exercem poder não apenas diretamente pela força e ameaça da força, mas porque suas ideias passam a ser aceitas pelas classes subalternas. (BURKE 2008, p. 37- 38)

Nesse contexto de discussão teórica, os defensores da História Cultural afirmam que ela enfatiza não somente os mecanismos de produção dos objetos culturais, mas também os seus mecanismos de recepção. Nesta perspectiva, para uma maior compreensão do abrangente universo da cultura, desenvolvem-se as categorias conceituais de práticas, representações e apropriação.

Caminhando para a conclusão desta discussão sobre o campo historiográfico, ressaltamos sua importância uma vez que estes debates provocam interferências diretas na História ensinada na sala de aula. No item 3.2 dessa dissertação – O surgimento da História enquanto disciplina escolar e as influências da Historiografia sobre a História Ensinada – tratamos com mais detalhes dessas influências.

3 A HISTÓRIA ENSINADA