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O Direito é uma profissão de palavras.

David Mellinkoff (1963).

Como Mellinkoff (1963), na epígrafe dessa seção, vemos que é pela linguagem que todo ser humano pode, se lhe forem dadas condições, reivindicar seus direitos e, assim, adquirir sua cidadania pelo uso da linguagem nas práticas sociais institucionalizadas.

O discurso jurídico é uma manifestação da língua geral em contextos específicos. Nas palavras de Calvi (2013, p. 20), “utilizar a palavra discurso, definitivamente, significa colocar a atenção nos fatores comunicativos e pragmáticos, considerando a variedade das situações nas quais se produzem a comunicação especializada e suas distintas funções”.

Sob essa ótica, acreditamos que o Direito é essencialmente um fenômeno linguístico. Porém, trata-se também de “um sistema normativo que tem como objetivo básico regular a conduta humana e é através da linguagem que esta conduta é regulada e as normas utilizadas são decodificadas em função de eventos de natureza jurídica” (PIN TO, 2014, p.1).

Nessa direção, vale dizer que é

[...] por meio da linguagem (oral ou escrita) que um jurista, em seu exercício profissional, transpõe os fatos de natureza jurídica para os processos judiciais, fazendo incidir a norma sobre casos concretos. Além disso, o Direito, sendo gerido por sistemas prescritivos (normas) que têm como finalidade direcionar a conduta humana, é formalizado através de documentos com alto grau de institucionalidade (Pinto, 2010). Estes apresentam, prioritariamente, características ´reguladas´ pela própria instituição jurídica, mas também podem vir a ter algumas especificidades em função do agente social envolvido (jurista responsável pela produção do texto oral ou escrito). Na verdade, existem escolhas estilísticas (mais de caráter coletivo ou individual) e organizacionais perpetradas quando da produção dos documentos jurídicos. (PINTO, 2014, p.1).

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GUENTCHÉVA, Z. La categorie du médiat e m bulgare dans une perspctive typologique. Re vue des Études

Frente ao exposto, nessa mesma direção, conforme Montolío (2011, p.70), corroboramos a ideia de que “está fora de dúvidas que os textos jurídicos são textos de especialidade e, em consequência, como qualquer documento de um âmbito específico de conhecimento, implicam um conteúdo complexo, que, neste caso, requer do receptor certo conhecimento das leis e de seu funcionamento”.

Os textos circunscritos ao domínio do discurso jurídico possuem características e linguagem específicas. De acordo com Bittar (2015), não podemos considerar qualquer discurso sobre questões jurídicas de discurso jurídico. Para ele, o discurso jurídico é contextualizado, “se produz no seio da vida social” e é “capaz de produzir influências sobre os demais universos de discurso que o circundam” (BITTAR, 2015, p.176 -177). Esse autor apresenta as seguintes características para o discurso jurídico: i) é uma linguagem técnica; ii) constrói-se a partir de experiências da vida ordinária; iii) ocorre intraculturalmente; iv) possui ideologia, v) exerce poder, vi) seu caráter é, normalmente, performativo, e sua apresentação se faz, fundamentalmente, por meio de pressupostos lógico-deônticos (BITTAR, 2015, p.183).

Segundo Cornu (2005, p.207), “o discurso jurídico pertence, pois, ao uso da língua. [...] Ele é um emprego da língua”. Trata-se de um tipo de discurso ainda considerado obscuro para uma grande parte de cidadãos da sociedade que não desenvolveu competências necessárias para interpretar muitas das normas jurídicas que “afetam diretamente em suas vidas de cidadãos livres em uma sociedade democrática”. (VIVANCOS, 2012, p. 203).

Colares (2010, p.14), com quem concordamos, discorre que a linguagem jurídica não é homogênea nem unívoca, consiste em várias realizações dessa linguagem em diferentes tipos de textos produzidos por múltiplos autores e dirigidos a uma grande variedade de destinatários. Essa autora afirma que na doutrina, por exemplo, é o jurista que fala sobre o Direito, usando uma metalinguagem para emitir comentários sobre conceitos e desenvolver teorias sobre a aplicação de princípios jurídicos. Já no contexto do processo decisório, o juiz, em pleno uso de suas atribuições, declara atos válidos, sentencia indivíduos culpado s ou inocentes. No tocante à legislação, o legislador constrói entidades jurídicas, distribuindo poderes, ordenando, permitindo ou proibindo comportamentos.

Bittar (2015, p.288)25 preconiza que o discurso decisório se estrutura a partir de uma “diversidade de discursos de naturezas diferentes e experiências humanas de sentido jurídico ”

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BITTAR, E. C. B. Linguagem jurí dic a: se miótica, discurso e direito. 6. ed. rev., atual. e mod. São Paulo: Saraiva, 2015.

(BITTAR, 2015, p. 294), trazidas aos olhos da autoridade decisória por meio da linguagem escrita e marcada pela valoração de posicionamento de sujeitos e ideologias. Esse autor acrescenta ainda que é o discurso decisório uma das espécies do discurso jurídico e é “uma prática textual de cunho performativo”, sendo “capaz de modificar a situação jurídica de um sujeito” (BITTAR, 2015, p. 288-289). Ou seja, é “capaz de criar uma nova realidade de linguagem dentro do universo jurídico " e de exercer uma “ação jurídica” (criando, modificando, extinguindo direitos etc) pelo fato de sua enunciação ter um poder discursivo de elocução que deriva do discurso normativo cujos fundamentos são extraídos para sustentar o dispositivo da decisão, por meio de uma linguagem “técnica, abstrata e objetiva” ( BITTAR, 2015, p. 300).

Nessa visão de pensamento, Bittar (2015, p.304) acrescenta ainda que o ato decisório (a decisão) é um ato performativo de linguagem que resulta de uma enunciação contextual própria pela qual se manifesta a autoridade decisória do juiz. Esse autor considera ainda que a sentença judicial apresenta um valor material concreto, socialmente engajado e sustentado institucionalmente, constituindo, desconstituindo, declarando e condenando.

Vista por esse prisma, o referido autor reconhece que a sentença é “um ato performativo de linguagem” (Idem, Ibidem, p. 304-305) e deve ser emitida por um órgão investido no poder de julgar, dotado de autoridade, assim como competente (poder- fazer), dotada de publicidade, bem como, encontrar-se inserida no contexto de um processo e de um conflito material existente na esfera jurisdicional, devendo obedecer aos trâmites processuais (procedimento prefixado por lei que determina o momento da enunciação do ato decisório). Nessa acepção, considera ainda que é um discurso peculiar que permite atuar “sobre estados do mundo e coisas do mundo”, ou seja, “atos de linguagem aptos à formação de enunciados performativos jurídicos”, dizendo, em linguagem jurídica, comandos normativos e produzindo efeitos mais que discursivos por meio de enunciados linguísticos e reconhecendo “este ou aquele argumento como prevalecente” (BITTAR, 2015, p.306).

Nessa linha de pensamento, Soto (2001, p. 26-27) define a sentença condenatória como

Todas aquelas que impõem o cumprimento de uma prestação, sendo este cumprimento tanto em sentido positivo como negativo (fazer ou não fazer). [...] Requisito necessário para existência da sentença condenatória é um dano a ser reparado que, não sendo constatado, não há o que indenizar e, consequentemente, não haverá um conteúdo que caracterize a sentença como condenatória ou até mesmo que justifique a sua existência.

Tem-se que a causa da sentença é a demanda fundamentada na pretensão que, por sua vez, busca seu motivo no interesse. Este deve estar respaldado no binômio utilidade e necessidade, pois o interesse processual é condição genérica de ação. Surge, assim, o principal efeito da sentença: a satisfação de interesses. A sentença tem como objetivo a imposição da norma ao concreto, substituindo, desta forma, tanto a vontade das partes nas ações de conhecimento, quanto a sua própria atividade nas ações executivas. [...] O efeito da sentença é, como dito, atuar na realidade, na relação material, impondo a ordem jurídica de forma concreta na garantia dos bens econômicos e morais.

Assim, entendemos a sentença condenatória como um ato performativo, de um discurso de poder dotado de autoridade que pode modificar a realidade dos sujeitos envolvidos no conflito da lide a ser julgada pelo magistrado.

Bittar (2015, p. 182) assinala que o discurso jurídico se apresenta em quatro modalidades, cada uma com particularidades textuais e funções jurídico-discursivas diferentes, a saber: “normativo, burocrático, o decisório e o científico ”. Em virtude do recorte de nosso trabalho, focamos nas particularidades linguísticas do discurso decisório, ou seja, na sentença judicial condenatória e nas questões do Processo de Direito Penal.

No tocante às funções jurídico-discursivas do Discurso jurídico, Bittar (2015, p. 182) destaca quatro tipos, a saber:

i) Função cogente: exercida pelo discurso normativo que tem a característica modal de poder-fazer-dever. Trata-se de textos normativos, leis, decretos etc, e corresponde às tarefas de comandar condutas, eleger valores preponderantes, recriminar/incentivar atividades;

ii) Função ordinatória: exercida pelo discurso burocrático que tem a característica modal de poder-fazer-fazer. Trata-se de decisões de expediente, andamento burocrático-procedimental e contraditório dialógico. Corresponde às atividades de regularização, acompanhamento, ordenação e impulso dos procedimentos, orientando os cursus dos ritos institucionais e das formas de contraditório discursivo;

iii) Função decisória: exercida pelo discurso decisório que tem a característica modal de poder-fazer-dever, nas esferas administrativas e judiciárias (sentenças, acórdãos etc). Corresponde às atividades aplicativa, conclusiva e concretizadora dos parâmetros normativos; e por último,

iv) Função cognitivo-interpretativa: exercida pelo discurso científico que tem a característica modal de poder-fazer-saber. Trata-se de lições doutrinárias, ensinamentos teóricos, críticas etc. Corresponde às atividades de conhecimento, distinção, classificação, orientação, informação, interpretação, explicação, sistematização e crítica dos demais discursos apresentados.

Assim, o autor considera que o discurso decisório jurídico põe fim a um procedimento, pronunciando-se sobre uma demanda, um pedido, uma reclamação ou um conflito, locuciona- se, apresentando-se como discurso. É visto como texto escrito no corpo dos autos, a partir de uma linguagem especializada e técnica, que age ilocutoriamente por meio de atos linguísticos e da vontade decisória da autoridade, que m movimenta a letra do discurso normativo, por meio de atitude pragmática de autoridade a qual produz efeitos mundanos desencadeados por efeitos discursivos ao pronunciar-se e publicar-se, interferindo sobre condutas sociais de forma perlocucionária.

Cabe ainda ressaltar que Bittar (2015, p.308) afirma que ato jurídico de linguagem “é um ato de acordo com as prescrições de um sistema linguístico e jurídico para a efetivação de uma vinculação entre sujeitos e para o aporte de resultados e consequências jurídicas”.

Bittar (2015, p. 185) leva em conta que o discurso jurídico se desenvolve a partir de experiências da vida comum, contextualizadas nas mais diversas culturas e considerando os aspectos históricos. Compreende que também é um discurso de dominação social marcado por valores culturais. Menciona que o discurso jurídico, de forma esquemática, caracteriza-se por ter elementos linguísticos, juridicidade e pressupõe posicionamentos ideológicos, agregado de valores e visões de mundo. Trata-se de uma linguagem composta por: linguagem natural>>linguagem formal>>sintática contextual dos signos jurídicos>> discurso normativo>>discurso burocrático>> discurso decisório>> supratextualidade científica.

Bittar (2015, p. 307), baseando-se em princípios austinianos, postula que o discurso jurídico se encontra carregado de elementos linguísticos e extralinguísticos, os quais podem ser resumidos nas seguintes categoriais:

a) Categoria da locução: corresponde ao que se locuciona linguisticamente com o discurso, por meio de palavras;

b) Categoria da ilocução: corresponde ao que se intenciona com o discurso; c) Categoria da perlocução: corresponde ao que se provoca com o discurso.

Na mesma direção, Alexy (2001) contextualiza a argumentação jurídica baseando-se nos postulados de Austin sobre a Teoria do Ato do Discurso que ocorre na enunciação (CABRAL, 2010). Atos de discurso são ações que são executadas quando algo é dito, com base em regras (condições) de felicidade (atos de discurso podem falhar ou ser bem- sucedidos). Tais regras articulam-se de forma direta com os efeitos performativos da

linguagem que consideram as regras convencionais que autorizam as pessoas apropriadas a agir por meio de atos performativos, que no caso específico de nosso trabalho, no contexto do processo judicial, o juiz é a pessoa apropriada para julgar, obedecendo às regras processuais e acredita na força do seu julgamento, pois está investido de poder pelo estado e tem a intenção de julgar, cumprindo seu papel institucional (CABRAL, 2010). Os atos de discurso (ou de fala) são realizados por meio da língua que desencadeiam efeitos comunicativos. Os enunciados veiculam sentido e ações por meio de forças. Nessa perspectiva, os atos se classificam como: ato locutório (locucional) que consiste na expressão de uma sentença com um significado específico; ato ilocucionário (ilocucional), isto é, o que se faz ao dizer (depende de convenções) e ato perlocucionário (perlocucional) que é provocar efeitos ao se expressar.

Quanto às características da linguagem do discurso jurídico, Cornu (2005) destaca as seguintes características:

► uma linguagem plural;

► uma linguagem de especialidade; ► uma linguagem de grupo;

► uma linguagem profissional;

► uma linguagem cultural, tradicional e histórica; ► uma linguagem pública, social e cívica;

► uma linguagem técnica; ► uma linguagem plurifuncional; ► uma linguagem pluridimensional.

Vale ressaltar que Gomes (2014, p.44) também elenca, de forma sintética, as principais características do discurso jurídico, nos níveis pragmático-enunciativo, morfossintático e léxico-semântico. A seguir, apresentamos tais características:

Quadro 1 – Características do discurso jurídico

Pragmático-enunciativo Morfossintático Léxico-semântico

► é um discurso especializado; ► é possuidor de um grande poder sócio, histórico,

linguístico, político e cultura l; ► é fortemente ideológico; ► é conservador;

► é essencialmente argumentativo;

► é complexo e marcado pela

► parágrafos e períodos longos, de grande complexidade e com abundância de orações intercaladas; ► alteração na ordem habitual da oração; ► uso abusivo de subordinação; ► presença forte de tecnicismos, arcaísmos e latinismos; ► forte atividade neológica; ► frequência no uso de siglas e de abreviações; ► uso abusivo e, às vezes, equivocado de maiúsculas;

opacidade; ► exerce poder;

► busca a neutralidade e a objetividade;

► raramente se adequa aos aspectos socioculturais dos cidadãos com os quais interage, o que acarreta erros por

inadequação ao registro da língua; ► uso abusivo de pronomes relativos, de particípios e de gerúndios; ► uso frequente de nominalização, de adjetivação e de adverbialização; ► uso frequente de construções impessoais e de estruturas passivas; ► forte presença de locuções; ► uso de fórmulas e estruturas prontas; ► uso de estruturas repetitivas; ► uso de estruturas estereotipadas; ► sintaxe arcaica; ► é um discurso denso e escuro; ► é prioritariamente formal, embora determinados gêneros do âmbito jurídico apresentem uma mescla de registros.

Fonte: Gomes (2014, p. 44)

Como percebemos, Bittar (2015, p. 175) explicita que a linguagem jurídica se manifesta valendo-se dos elementos de uma linguagem verbal (língua natural), grafando-se por meio da escrita. Esse autor elucida que “o discurso jurídico não é descontextualizado ”, ele é produzido nas práticas da vida social. Trata-se de um discurso mais que prescritivo e normativo.

Nessa ótica, Benvenuto (2010, p.8)26 explica que, se

[...] é por meio da linguagem que o Direito se estabelece – gerando vínculos jurídicos entre pessoas e grupos sociais, fazendo surgir e desaparecer entidades, concedendo e usurpando a liberdade, absolvendo e condenando réus, gerando e extinguindo institutos, poderes, princípios e procedimentos legais – não parece adequado persistir excluindo a linguagem do conhecimento jurídico.

Convém, ainda, ressaltar que Pinto (2010) ratifica que os manuais de prática textual jurídica recomendam que os documentos processuais sejam redigidos de forma objetiva, clara, precisa, enxuta, sem exibicionismos, buscando a comunicação téc nica e direta. Na linguagem forense, há fórmulas consagradas pelo uso e pela práxis. Os manuais, de modo geral,

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BENVENUTO, J. Prefác io. In: COLA RES, Virg ínia (Org ). Li nguage m e direito. Rec ife : Ed. Universitária da UFPE, 2010.

elucidam regras aos alunos de Direito, nos cursos de Prática forense para a redação de qualquer peça processual.

Colares (2010), na obra Linguagem & Direito, considera que o solo epistemológico para a reflexão da interface entre linguagem e direito, é fértil, destacando, nas palavras de Mellinkoff (1963, apud COLARES, 2010, p.10), que “[...] a justiça é uma profissão de palavras e as palavras da lei são, de fato, a própria lei [...]”.

Após delinearmos os aspectos sobre o Discurso Jurídico, passamos a complementar as questões teóricas com algumas noções dos Estudos Linguísticos e Jurídicos da argumentação, da responsabilidade enunciativa, do ponto de vista, focalizando o gênero sentença judicial condenatória, seu plano de texto e seus elementos linguístico-textuais.

Por fim, passemos para a apresentação da relação entre argumentação e discurso jurídico, destacando algumas discussões da Argumentação desde a antiguidade (Retórica) aos estudos atuais no âmbito dos estudos linguísticos.