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PROCEDIMENTOS DE DESCRIÇÃO, ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Na obra Análise de textos: fundamentos e práticas, Antunes (2010) discorre sobre o trabalho científico de análise de textos e enfatiza a relevância de tais estudos para a compreensão das regularidades que costumam ocorrer na produção e circulação dos diversos gêneros presentes nas mais variadas atividades sociais, pois, através desses estudos, podemos entender melhor os processos linguísticos presentes nas nossas interações verbais, sejam elas realizadas na fala ou na escrita. Para essa autora, “a própria atividade da análise – reiterada e consistente – é fundamental para desenvolver nossa capacidade de perceber, de enxergar, de identificar os fenômenos ou os fatos que ocorrem nos textos”. (ANTUN ES, 2010, p. 51)141.

Nessa direção, Antunes (2010, p. 66) considera que

um texto assume determinadas formulações, é expresso em certos níveis de formalidade, em certos formatos e suportes na dependência das normas, sociais e discursivas, que decorrem do universo de referência e do campo social em que o evento comunicativo se insere e vai circular. Por isso é que a produção e a recepção social das ações verbais constituem ‘verdadeiras rotinas comunicativas’.

A pesquisadora ressalta ainda que “a finalidade da análise, portanto, é promover esse estado de pergunta, de busca; esse querer ver, mais por dentro, a engrenagem de funcionamento da linguagem” (ANTUNES, 2010, p. 52). Dessa forma, a análise de textos nos permite perceber diversas questões particulares dos grupos pertencentes as mais diversas esferas sociais que o produzem, revelando muito mais do que os próprios autores podem imaginar. Dessa maneira,

analisar textos é procurar descobrir, entre outros pontos, seu esquema de composição; sua orientação temática, seu propósito comunicativo; é procurar identificar suas partes constituintes; as funções pretendidas para cada uma delas, as relações que guardam entre si e com elementos da situação, os efeitos de sentido decorrentes de escolhas lexicais e de recursos sintáticos. É procurar descobrir o conjunto de suas regularidades, daquilo que costuma ocorrer na sua produção e circulação, apesar da imensa diversidade de gêneros, propósitos, formatos, suportes em que eles podem acontecer. (ANTUNES, 2010, p. 49).

Retomando o que foi exposto anteriormente, para realizarmos a análise dos textos e responder às questões de pesquisas, anunciadas, seguimos uma abordagem qualitativa de

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natureza interpretativista. Nesse sentido, concordamos com Charaudeau (2011, p. 14) quando destaca que “interpretar consiste em uma operação de correlação de fatos observados com outros fatos, para formular, por inferência, hipóteses de sentido”. Nesse viés, entendemos a importância do papel do sujeito pesquisador, uma vez que este interpretará, através dos dados, os fenômenos recortados para análise ali presentes com um fim de lhes atribuir significado.

Dessa forma, adotamos os seguintes procedimentos para o estabelecimento do texto e tratamento dos dados, aplicando os seguintes procedimentos metodológicos para as análises:

1- Revisão bibliográfica do referencial teórico sobre a Responsabilidade Enunciativa, PDV e sobre o plano do texto do gênero textual/discursivo sentença judicial condenatória que trata de crime contra a dignidade sexual, como também breve contextualização sobre o discurso jurídico, pela sua importância de caráter social, detivemo-nos em reflexões fundamentadas sobre os estudos da escrita especializada no âmbito jurídico empreendidos por Montolío (2008), Gomes (2013), Lourenço (2015) e Bittar (2015), dentre outros autores;

2- Conforme os critérios estabelecidos, realizamos a coleta e seleção do corpus que constitui o banco de dados da pesquisa e que apresenta, em seu conteúdo, material necessário para a investigação da (não) assunção da Responsabilidade Enunciativa nos textos selecionados;

3- Leitura das sentenças selecionadas identificando o plano textual, dessa maneira, tomamos a natureza do gênero como base (seu conteúdo, composição, estilo, esfera da atividade humana a que se mostra vinculado, com seus propósitos comunicativos reconhecidos, entre outros). Isso norteou o nosso entendimento quanto às características linguístico-textuais desse gênero e quais marcas e categorias oriundas de nosso referencial teórico eram representativas no corpus; 4- Por se tratar de sentenças em segredo de justiça e por tere m publicidade restrita, de

modo a preservar a face dos envolvidos e em conformidade com os princípios jurídicos/legais, éticos e sociais, os nomes das partes foram retirados e colocamos o código XXXX. Outras informações que pudessem identificá- los também foram codificadas com XXXXX. Dessa maneira, por questões de ética e com base na legislação, manteremos em sigilo o número do processo e o anonimato dos sujeitos processuais autênticos. Lembramos, ainda, que os originais das sentenças se encontram sem os nomes dos envolvidos e com o código anteriormente

mencionado, para preservação das faces dos envolvidos e para cumprir as normas éticas do trabalho científico;

5- Contagem do número de laudas de cada sentença e elaboração de tabela com ano que a sentença foi prolatada, quantidade de laudas, tipificação do crime, informações sobre as vítimas e réus, a fim de realizar levantamento do quantitativo da materialidade textual analisada;

6- Após seleção das 6 seis sentenças que tratam de estupro de vulnerável, cada sentença analisada recebeu como código a sigla (SJCEV) e em seguida uma numeração específica, seguindo o ano da data da prolatação da sentença;

7- Recortes de fragmentos nas sentenças, para exemplificar as análises. Tais fragmentos de cada sentença foram codificados com um composto de dígitos, em que o primeiro dígito é a letra S, que indica sentença, e o segundo dígito, J significa judicial, o terceiro, C de condenatória, o quarto EV de estupro de vulnerável e um número, contado a partir do numeral 1, mantendo a seq uência de acordo com a ordem de coleta das sentenças, bem como considerando o período em que foi prolatada. Ademais, serão denominados SJCEV (código da sentença no corpus = sentença judicial condenatória estupro de vulnerável (Ex: SJCEV1 ), Fragmento=F (número do código do fragmento), mais a codificação do plano da sentença que o fragmento foi retirado (PTR = plano de texto do relatório, PTF = plano de texto da fundamentação, PTD = plano de texto do dispositivo (EX: SJCEV1PTR), obedecendo, pois, a sequência das sentenças e dos excertos em análise;

8- Deixaremos, em destaque, a parte dos fragmentos que exemplificarão nossas análises, ou seja, no tocante ao tratamento dos dados para as análises, os fragmentos dos exemplos das sentenças foram transcritos, conforme o original, e as estruturas linguísticas, identificadas, descritas, analisadas interpretadas estarão ilustradas em realce na (cor cinza). Vale ressaltar que a seleção na cor cinza mostra o que selecionamos e salientamos nas análises, evitando, assim, não confundir com as marcas tipográficas que aparecem em vários trechos das sentenças analisadas, as quais foram transcritas como constam nas peças processuais originais;

9- Organizamos as sentenças em ordem temporal considerando a data na qual foi prolatada;

10- Por questões de ética na pesquisa científica, nos excertos analisados, suprimimos alguns fragmentos da descrição e narração dos atos libidinosos p raticados contra

crianças e adolescentes, como também suprimimos as “expressões-tabus”142. Marcamos tal procedimento com colchetes e reticências [...];

11- Identificação, descrição e análise das marcas linguísticas utilizadas pelo autor do texto, desenvolvendo o núcleo metodológico-descritivo da pesquisa;

12- Leitura sistemática, destacando os enunciados nos quais se materializa a Responsabilidade Enunciativa;

13- Identificação do PDV assumido pelo juiz e dos imputados a enunciadores segundos;

14- Identificação das estruturas linguísticas que marcam a assunção e a imputação (a não assunção da Responsabilidade Enunciativa/ mediativo: mediação epistêmica e mediação perceptiva);

15- Reconhecimento das fontes do dizer, responsáveis pelo conteúdo proposicional dos PDV enunciado na sentença judicial;

16- Identificação e análise interpretativa dos fragmentos textuais, com foco no gerenciamento das diferentes vozes presentes, tipos de PDV (PDV: representado, assertado/afirmado e narrado/contado), posturas enunciativas, posicionamento (acordo, desacordo e (pseudo)neutralidade), movimentos enunciativos (assunção da RE, imputação, responsabilização compartilhada), gerenciamento e hierarquização das vozes (PDV de enunciadores segundos) evocados em favor da orientação argumentativa;

17- Registro dos resultados das principais ocorrências obtidas para síntese das principais incidências da análise em tabelas, preenchendo com fragmentos textuais e marcando: ø para a não ocorrência da marca, do posicionamento enunciativo ou fenômeno linguístico); + para a presença do fenômeno linguístico-textual e enunciativo;143

18- Discussão das generalizações dos resultados depreendidos das análises.

142Consideramos o conceito de “tabus linguísticos”, seguindo Brito e Panichi (2013, p. 177). Tais autoras

afirma m que o tabu linguístico é conhecido como impropério, que é tido como a proibição de se dizer qualquer palavra ou expressão que seja grosseira ou imora l. Alé m disso, é um tabu de “natureza sentimental” . Trata -se també m de uma proibição de expressão vocabular que não é tida como supersticiosa nem imo ral, mas que atenta contra os bons costumes, já que se afronta o respeito, dependendo do contexto em qu e ocorre m. Afirma m a inda que: “nos processos de crimes contra a dignidade sexual de indiv íduos é patente a presença dos tabus linguísticos, haja vista ser o campo sexual o ma is resguardado das pessoas, pois, além do pudor existente em pronunciar os termos referentes à sexualidade, e xiste també m uma reserva em assumir determinados desejos e atitudes [...] na intimidade” (p. 179).

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Utiliza mos como recurso metodológico para marcar a ocorrência do recurso linguístico-textual ou enunciativo no preenchimento das tabelas utilizadas na síntese dos dados.

Cabe destacar que elegemos as categorias, considerando o modelo teórico adotado na fundamentação. Em outras palavras, de forma mais específica, as categorias de análise levadas em conta seguem as propostas teóricas do campo da ATD, retiradas dos pressupostos de Adam (2011) no que tange à responsabilidade e orientação argumentativa, de Passeggi et al. (2010) sobre responsabilidade enunciativa, de Guentchéva (1993, 1994, 2011, 2014) sobre o mediativo, de Authier-Revuz (1990, 2004) sobre heterogeneidade discursiva e de Rabatel (2008, 2009, 2011, 2013, 2015, 2016) acerca do Ponto de Vista (PDV), locutor, enunciador, posturas enunciativas, posicionamentos, movimentos enunciativos da assunção da Responsabilidade Enunciativa e a imputação, dentre outros autores que tratam do tema.

Após a formação do corpus, fizemos uma leitura prévia do material vislumbrando identificar, descrever, analisar e interpretar as marcas linguísticas levando em consideração, durante a análise para reconhecimento das categorias textuais e enunciativas, principalmente, as seguintes marcas e estratégias linguísticas144:

►expressões verbais e índices de pessoas;

►modalidades sintático-semânticas e elementos modalizadores (lexemas afetivos e avaliativos, expressões adjetivadas, advérbios, entre outros);

► tipos de representação da fala (discurso direto, discurso indireto etc.) com foco nas marcas tipográficas e verbos dicendi, delimitadores do discurso de outrem; ►indicações de quadro mediadores (conectores, marcas tipográficas, expressões

verbais);

►Operadores/Conectores argumentativos; ►

► Marcas tipográficas (sinal gráfico aspas, negrito e itálico).

Vale destacar que, na análise da materialidade linguístico-enunciativa do universo textual dos excertos, utilizamos de maneira distinta: L1/E1 para nos referirmos ao primeiro locutor-enunciador, que, no caso, é o juiz que pro fere e gerencia as vozes no texto e, ao

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Ressalvamos que algumas marcas linguísticas poderão ser utilizadas em ma is de um grupo de posicionamentos enunciativos no jogo da (não) assunção da RE, a e xe mplo das e xpressões verbais, dos conectivos, dos índices de pessoas, que podem marcar u m maio r ou menor engaja mento do locutor. O termo índices de pessoas pode se referir a ma rcas de prime ira , de segunda ou de terceira pessoa, e a indicação do grau de (des)engajamento do locutor pode ocorrer també m a partir da pessoa marcada no dispositivo enunciativo. Salientamos ainda que a escolha das categorias de análise deu-se em função de nosso contato com as teorias sobre o tema, be m co mo e m função de nosso contato inicial co m o corpus e da percepção de que essas categorias ocorrem co m ma ior frequência nos textos selecionados e analisados.

enunciar, assume posturas enunciativas diversas; e2, para designar os enunciadores segundos, aqueles a quem são imputados certos PDV, que no caso serão de fontes enunciativas diversas, dentre elas: as testemunhas, a legislação, o Ministério Público, a jurisprudência, a doutrina, o discurso jornalístico, o parecer especializado, o exame de conjunção carnal, o réu e a defesa, dentre outros.

Como dito anteriormente, nossa pesquisa se circunscreve no âmbito da Análise Textual dos Discursos (ATD), que se subsidia na Linguística Textual e na Linguística da Enunciação, mais precisamente no que Adam (2011) denomina de translinguística. Portanto, nossa análise fundamenta-se em trabalhos sobre a responsabilidade enunciativa tendo como autores de base Adam (2011), Rabatel (2009, 2013, 2015, 2016), Guentchéva (1994, 2011, 2014) e Rodrigues (2010). Subsidiamo-nos também em estudos sobre os Gêneros Discursivos/Textuais, focalizando o gênero sentença judicial condenatória que trata de crime contra a dignidade infanto-juvenil, com base no pressuposto de que “todo enunciado possui um valor argumentativo” (ADAM, 2011, p. 122). Desse modo, analisamos os textos inclusos nesta pesquisa que possuem direcionamento argumentativo marcado linguisticamente, pois a argumentação no texto jurídico constitui essência natural. Em suma, seguimos a metodologia de trabalho ora explicitada por ser esta uma pesquisa com base qualitativa, de natureza descritiva, interpretativista e documental.

Apresentado, portanto, o enquadre metodológico de nossa investigação, retomaremos os pressupostos da análise textual-enunciativa: as categorias e marcas. Em seguida, passaremos ao capítulo da descrição e caracterização do plano de texto da sentença condenatória em estudo, bem como da análise dos dispositivos enunciativos concernentes à responsabilidade enunciativa, articulada à orientação argumentativa da sentença.

3 ANÁLISE DOS DADOS

Nem advogados nem linguistas têm o monopólio da verdade, e ambos podem aprender um com o outro, e beneficiar-se pela chance de examinar as pressuposições sobre a linguagem de cada um. (HUTTON apud ALVES, 2003).

3.1 RETOMANDO AS CATEGORIAS PARA A ANÁLISE LINGUÍSTICA E TEXTUAL-