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É sabido que “as teorias da enunciação receberam uma leitura particular no cenário linguístico brasileiro”, tendo como foco as questões pragmáticas, o texto e as perspectivas discursivas, conforme Flores et al (2009, p.12). Nessa direção, é consensual que há traços comuns que as aproxima, permitindo que se fale numa linguística da enunciação, situando-as em um mesmo campo do conhecimento.

Muitos estudiosos são fundadores dos pressupostos epistemológicos do campo enunciativo, pois contribuíram para o desenvolvimento do aparato metodológico da Linguística Enunciativa, dentre eles destacamos autores como Bakthin (1992), Benveniste (1989, 2006, 2006), Culioli (1971), Authier-Revuz (1990, 2004, 2011), Ducrot (1987)51, Adam (2011) e Rabatel (2005, 2008, 2009, 2013, 2015, 2016).

No âmbito dos estudos no Brasil, o campo dos fenômenos enunciativos surgiu mediado por outras disciplinas dos estudos da linguagem articuladas à apropriação e à reelaboração dos termos e definições dos autores supracitados. No contexto dos estudos linguísticos no campo da linguística da enunciação no Brasil, destacamos os estudos de Flores e de Teixeira (2008), Flores et al (2009), Cabral (2010), Flores (2013) e Cabral e Santos (2016), dentre outros.

Cabe ressaltar que os estudos da enunciação em sentido amplo consideram que todos os níveis de análise linguística podem ser desenvolvidos na perspectiva da enunciação, bem como pontuamos que investigar “a linguagem do prisma de uma teoria da enunciação é estudá- la do ponto de vista do sentido, sim, mas isso não significa que os demais níveis de análise linguística não sejam contemplados pelas teorias enunciativas (FLORES et al, 2009, p.20)”.

A Linguística Enunciativa tem aberturas no âmbito dos estudos enunciativos, isto é, coexistem potencialidades de interlocução com outras abordagens enunciativas da linguagem

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Nos contributos ducrotianos, encontramos os pressupostos da Teoria Polifônica da Enunciação no âmbito da Argumentação na Língua.

que possuem traços comuns e (inter)relações com outras disciplinas, pelo fato de ter um objeto de estudo heterogêneo, ou seja, tratar de questões como a subjetividade, o dialogismo e a modalização. Em outras palavras, trata de fenômenos relativos ao uso da língua e por isso tem interfaces e intersecções com as diferentes áreas além da Linguística, tendo incorporado conceitos oriundos de diferentes teorias da enunciação (Benveniste, Bakhtin, dentre outros). Nesse contexto, destacamos que “algumas perspectivas da Linguística Textual recorrem a mecanismos enunciativos [...] para abordar questões referentes à problemática do texto.” (FLORES; TEIXEIRA, 2008, p. 94).

Nessa ótica, a Linguística da enunciação “toma para si não apenas o estudo das marcas formais no enunciado, mas refere-se ao processo de sua produção”: ao sujeito, ao tempo e ao espaço. Desse modo, Flores e Teixeira (2008, p. 109) afirmam que a Linguística da enunciação é o estudo do dito, do enunciado e pode ser entendida co mo um ponto de chegada para onde convergem diferentes teorias. Também “deve centrar-se no estudo das representações do sujeito que enuncia e não no próprio sujeito, objeto de outras áreas.” (FLORES; TEIXEIRA, 2008, p. 107).

No que tange aos pressupostos da Linguística Enunciativa, juntamente com Cabral (2014, p. 160), defendemos que o trabalho do linguista da Enunciação consiste [...] no interesse em identificar como o sujeito se comporta frente a seu enunciado, comprometendo- se com ele ou dele se afastando, trabalho que realiza por meio do levantamento de marcas linguísticas e também no “reconhecimento dos índices linguísticos que instituem as relações entre os locutores e o enunciado e os interlocutores entre si”.

Corroborando tal direcionamento, a respeito dos instrumentos de realização da enunciação, nos pressupostos benvenistianos, no Aparelho formal da enunciação, consideramos que, enquanto realização individual, a enunciação pode ser definida, em relação à língua, como um processo de apropriação pelo qual a língua é assumida pelo locutor para se propor como sujeito. O locutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor52 por meio de índices específicos, de um lado e por meio de procedimentos acessórios, de outro.

Nessa perspectiva, segundo Flores (2013), o locutor se apropria da língua, do sistema, para produzir, em atos singulares, um aparelho de enunciação que é, por sua vez, constituído

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Consoante Flores (2013, p. 124), é indivíduo definido pela construção linguística particular de que ele se serve quando se enuncia. Essa construção linguística é constituída por indicadores como eu e tu, que não e xistem a não ser na medida em que são atualizados na instância de discurso, em que marca m para cada uma das suas próprias instâncias o processo de apropriação pelo locutor. (FLORES, 2013, p.124).

pelos índices específicos (categorias de pessoa, tempo e espaço) e pelos procedimentos acessórios (ligados à singularidade que cada enunciação evoca).

Na enunciação, encontramos indicadores de subjetividade que são

formas da língua cujo traço distintivo é o de se definirem somente com relação à instância de discurso na qual são produzidos. Pertencem a várias classes de palavras (pronomes, advérbios, verbos, entre outras) e de distribuem de acordo com a noção expressa: indicadores de pessoa, indicadores de tempo e indicadores de espaço (lugar). (FLORES, 2013, p. 124).

Nesse sentido, concordamos que a língua oferece infinitas possibilidades de escolhas e combinações linguísticas, fazendo com que o locutor-enunciador primeiro (L1/E1) marque de alguma forma seu enunciado, manifestando a expressão de aproximação ou distanciamento do locutor frente ao conteúdo de seu enunciado, atestando ou não seu grau de adesão a ele, ou a (não) assunção da responsabilidade enunciativa no que tange ao conteúdo proposicional, de acordo com seus propósitos comunicativos, a fim de direcionar a orientação argumentativa do texto.

Vê-se que Benveniste (1989) destaca a questão do sujeito constituído na linguagem e pela linguagem, na relação entre o eu-tu, afirmando que a linguagem é, portanto, a possibilidade da subjetividade, pelo fato de conter sempre as formas linguísticas apropriadas à sua expressão. De algum modo, a linguagem propõe formas vazias das quais cada locutor, no exercício do discurso, se apropria, fazendo sempre revelar sua pessoa e o outro na enunciação. Nesse viés de abordagem, algo que devemos considerar, segundo Cabral e Santos (2016), baseando-se nos pressupostos de Benveniste (1989), é a enunciação como uma instância inerente ao discurso, constituída em um contexto que possibilita e precede a comunicação, seja pela linguagem oral ou seja pela escrita. A enunciação perpassa a noção de pessoa, tempo e espaço e configura-se em três maneiras: (i) uma realização vocal, (ii) conversão da língua em discurso, (iii) o colocar em funcionamento a língua, de modo que, antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é “efetuada em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno ”. (BENVENISTE, 1989, p. 83-84). Desse modo, o enunciado é produto do processo da enunciação, tem existência em um dado momento e supõe a conversão individual da língua em discurso.

Seguindo um olhar enunciativo sobre o discurso, podemos formular que a teoria da enunciação benvenistiana é um campo fértil para fundamentar não só a relação da linguagem com a subjetividade, todavia a construção de recursos metodológicos que permitam investigar como a subjetividade se materializa linguisticamente no discurso (TEIXEIRA, 2012).

Devemos mencionar que, segundo Cabral e Santos (2016, p. 28), a enunciação trata do processo pelo qual o indivíduo põe em uso o sistema linguístico.

Sendo assim, considerando que os instrumentos da enunciação são as marcas da conversão individual da língua em discurso, admitimos que o sujeito necessariamente deixa suas marcas no enunciado; essa presença constitui o parâmetro para as condições necessárias de enunciação e para a construção dos sentidos do texto. São as escolhas em função de um querer dizer [...] que permitem a construção dos objetos de discurso. Dessa forma, o sujeito toma a língua como instrumento para realizar seus propósitos, insere-se no enunciado e constrói com ele objetos de discurso que instauram seus pontos de vista a respeito da realidade instaurada no discurso. (CABRAL; SANTOS, 2016, p. 28).

Assim, a enunciação constitui o processo pelo qual o indivíduo coloca em funcionamento o sistema linguístico, ou seja, trata-se do ato de produção do enunciado e se manifesta por meio de textos. Dessa maneira, o enunciado é resultado do processo (CABRAL, 2010).

Consoante os ensinamentos benvenistianos, destacamos que é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito. Desse modo, o sujeito que diz “eu” também constrói relativamente a “eu” uma representação, orie ntada argumentativamente em direção a um ponto de vista sobre “eu”, em relação a “tu” e em relação a “ele”. Assim, podemos concluir que “eu” constitui um objeto de discurso, construído no desenvolvimento da textualidade.

Seguindo essa mesma linha, a linguagem é uma maneira de expressar a subjetividade, e o discurso provoca a emergência dessa subjetividade, cuja instalação cria a categoria da pessoa. O enunciador evoca para seu discurso muitos procedimentos para imprimir sua marca no enunciado, seja explicitamente, seja implicitamente, por meio de escolhas lexicais e sintáticas que atendem suas intenções.

Por isso, concordamos com Kerbrat-Orecchioni (1980, 1997) a qual defende que as unidades lexicais são em si mesmas, em língua, carregadas de uma dose mais ou menos forte de subjetividade. Nessa perspectiva, “o estudo do texto inclui diversas categorias de fenômenos linguísticos que marcam atitudes do enunciador perante o que ele enuncia.” (CABRAL; SAN TOS, 2016, p. 28-29).

Conforme observamos, o conceito de enunciação articula-se com uma concepção de linguagem marcada subjetivamente por meio de estratégias e marcas linguísticas, consoante os propósitos comunicativos. Nessa direção, Ducrot (1972, 1984 apud CABRAL & SANTOS, 2016, p. 29) afirma, porém, que o “sujeito enunciador, muitas vezes, se ‘esconde’ por detrás de falsa objetividade, utilizando-se dos pressupostos do enunciado, por exemplo, para mascarar a subjetividade”. Todavia, Kerbrat-Orecchioni (1980, 1997 apud CABRAL & SANTOS, 2016, p. 29) destaca que toda unidade lexical é subjetiva: por meio delas, damos sentido ao mundo, criamos uma realidade discursiva e interagimos com ela.

Cabral e Santos (2016), aludindo aos pressupostos de Milner (2003) e evocando as considerações de Kerbrat-Orecchioni (1980, 1997), compreendem que os verbos são manifestações das ações dos objetos de discurso. As autoras citadas consideram os verbos como elementos cujos sentidos se agregam aos referentes ampliando os seus sentidos, o que confere aos verbos um lugar na construção dos objetos de discurso. Nesse sentido, o verbo é “uma das principais ferramentas para evidenciar uma atitude frente aos fatos enunciados e marcar intenções frente aos interlocutores. Eles permitem exprimir tanto opinião como julgamento e sentimento, marcando uma intenção de dizer”. (CABRAL; SAN TOS, 2016, p. 37).

No contexto da linguística brasileira, Flores e Teixeira (2009, p.144) elencam reflexões epistemológicas no que tange às semelhanças entre Bakhtin e Benveniste e ratificam a integração desses estudiosos ao campo da Linguística da Enunciação.

Nessa direção, identificamos quatro questões observadas entre a visão bakhtiniana e benvenistiana: a) a referência (continuidade ou ruptura) à dicotomia saussuriana língua/fala e, por ela, ao quadro sistêmico-estrutural; b) a proposição de análise da linguagem do ponto de vista do sentido; c) a reflexão em torno de mecanismos de produção do sentido entendidos como marcas da enunciação com a elaboração explícita de uma teoria sobre o t ema da enunciação; e d) a inserção do elemento subjetivo no âmbito dos estudos da linguagem.

Flores e Teixeira (2009) aludem que integrar os estudos bakhtinianos ao campo da Linguística da Enunciação implica admitir que esse autor formula proposições que estão em consonância com os linguistas que desenvolvem uma perspectiva enunciativa de estudo da linguagem, tendo como foco a concepção dialógica de linguagem. Tais autores ratificam que

o dialogismo é como um axioma da teoria bakhtiniana, que atravessa diferentes noções aí desenvolvidas: linguagem, palavra, signo ideológico, sujeito, estilo, compreensão etc. Tal axioma promove a enunciação como centro de referência do sentido dos fenômenos linguísticos, o evento que

institui o sujeito na interação viva com vozes sociais. Isto é, a perspectiva bakhtiniana não concebe o estudo da língua a não ser na enunciação. Assim, a enunciação é o operador que faz funcionar o axioma bakhtiniano. A noção de enunciação em Bakhtin é formulada a partir do questionamento da dicotomia língua e fala, presente em diversos textos, sob denominações diferentes. (FLORES E TEIXEIRA, 2009, p.147).

A partir disso, reiteramos que os estudos enunciativos direcionam o olhar para as relações dialógicas do enunciado. Trata-se de questões que são articuladas ao estudo do PDV e da Responsabilidade Enunciativa.

No que tange aos contributos ducrotianos, encontramos menção à enunciação a partir da Teoria Polifônica da Enunciação no âmbito da Argumentação na Língua. Nesses postulados teóricos, “a enunciação é definida como o surgimento do enunciado”. Tal visão propõe não um sujeito da linguagem, mas um eu locutor produtor de discurso para um tu interlocutor. Nessa perspectiva, o locutor marca sua posição no plano do discurso, argumentando em relação ao que está sendo dito. (BARBISAN, 2007, p. 33-34).

Nesse contexto, é válido também explicitar o conceito de polifonia, já que a Responsabilidade Enunciativa, nosso foco de estudo, demanda fronteira com os termos de enunciação, polifonia, vozes, heterogeneidade da linguagem, dialogismo e subjetividade. Nesse viés, reportando- nos aos estudos de Lourenço (2013, p.63-64), destacamos que os textos circunscritos ao domínio jurídico não existem sem a fundamentação (fontes do direito) devida “e por esse motivo recorre a outros textos – intertextualidade, outros discursos – alteridade, e faz emergir outras vozes – das partes envolvidas, sentenças proferidas, dentre outras – configurando-se a polifonia”. Nos textos do domínio jurídico, a citação das fontes do direito53 servem para validar, fundamentar, sustentar e argumentar, tanto no texto petitório quanto no texto decisório.

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Para Lourenço (2013, p.64), e m conformidade com os estudos sobre o Código Pena l, as fontes do direito / fontes jurídicas são concebidas como fontes produtivas da norma, ou seja, “são fatores sociais, históricos, religiosos, naturais, demográficos, polít icos, econômicos, mora is, de época, etc., que dera m orige m a u m determinado ordenamento jurídico. Trata-se de um conjunto de valores e circunstâncias sociais que, constituindo o antecedente natural do direito, contribuem para a formação do conteúdo das normas jurídicas, sendo, as fontes do direito conhecimento necessário ao jurista para possibilitar a aplicação do dire ito, devendo estas serem observadas obrigatoria mente, a fim de respeitar os ditames do direito, a saber: i) Legislação - fonte primacia l do direito, e m virtude da maior certe za e segurança que ela carrega, já que devidamente escrita; ii) Jurisprudência - conjunto de reiteradas decisões dos tribunais sobre determinada maté ria; iii) Costume - consiste na prática de uma determinada forma de conduta, repetida de maneira uniforme e constante pelos me mbros da comunidade; iv) Doutrina - consiste na exposição, e xplicação e sistematização do Dire ito, consubstanciada nas manifestaçõ es dos estudiosos, jurisperitos ou jurisconsultos, através de tratados, livros didáticos, monografias, conferências, etc. A doutrina é resultado do estudo que pensadores – juristas e filósofos do direito – fa ze m a respeito do direito; v) Analogia - fa zer uso da analogia significa aplicar ao caso em concreto uma solução já aplicada a u m caso semelhante; vi) Princíp ios Ge rais de Dire ito - são postulados que procuram funda mentar todo o sistema jurídico, não tendo necessariamente uma correspondência positivada equivalente. São ideias jurídicas gerais que

Enfim, considerando as discussões empreendidas, nesta seção, passemos para o estudo da RE e as acepções que abrigam e se (inter)relacionam com ATD e a LE, com foco na construção textual-enunciativa do PDV e da RE.