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A implementação de uma nova estrutura curricular no curso de graduação em Medicina da UFRN, em 2001, deu sequência à incorporação de novos cenários e métodos de ensino-aprendizagem, bem como às experiências inovadoras de integração de saberes disciplinares. Sob essa nova perspectiva, a escola passa a ser um espaço onde a cidadania deverá ser desenvolvida, tendo o professor grande responsabilidade nesse desenvolvimento, reconhecendo o aluno como um futuro cidadão conhecedor dos direitos e deveres perante a sociedade em que atuará47.

A disciplina de Saúde Reprodutiva, ofertada semestralmente pelo Departamento de Tocoginecologia desde o ano de 2006 é parte integrante desse processo e, junto com outros componentes curriculares, passou a ter importância na formação e avaliação das diferentes habilidades envolvidas na atenção à saúde sexual e reprodutiva das pessoas. Reconhecer a necessidade desses conhecimentos e habilidades, os pontos fortes, as fragilidades e as lacunas existentes, remete a uma avaliação desse processo, ao mesmo tempo em que motiva o envolvimento com a formação na graduação de medicina da UFRN. Neste trabalho, apresentam-se os resultados obtidos com a participação dos graduandos do internato de medicina durante o ano de 2011, como reflexo de diversas iniciativas de reorientação curricular, especificamente no que tange à incorporação das temáticas relacionadas à Saúde Sexual e Reprodutiva.

Os resultados observados na avaliação das habilidades cognitivas demonstraram que os alunos que cursaram o componente curricular “Saúde Reprodutiva” tiveram desempenho significativamente superior em temas como DHSR, sexualidade, violência institucional, violência sexual, aborto/interrupção legal e DSTs/HIV. De certa forma, essa era a hipótese esperada na pesquisa, tendo em vista a suposição de que, ao cursar a disciplina “Saúde Reprodutiva”, os alunos teriam mais oportunidades de obter conhecimentos e incorporar conceitos sobre questões significativas na atenção à saúde.

O resultado acima destacado é um dado relevante para a análise da pesquisa e das questões relacionadas à atenção de qualidade. Briozzo e Faúndes77(2008) em seu artigo sobre a profissão médica e a defesa e promoção dos direitos sexuais e reprodutivos, chama a atenção para o fato de que os profissionais

de saúde por possuir status, perícia, credibilidade e contatos com a comunidade em geral, estão em uma posição excepcional na sociedade para a garantia do direito à saúde, tanto no âmbito de sua atuação profissional como no âmbito de sua participação política, e que, essas prerrogativas são importantes na elaboração de políticas em prol da mudança e da melhoria da atenção na área de saúde sexual e reprodutiva.

Na análise do desempenho de acordo com o sexo e os diversos temas da avaliação de conhecimentos, um achado interessante foi a observação de que o grupo feminino apresentou desempenho significativamente superior ao grupo masculino no tema “mortalidade materna”. Esse dado aponta para a importância da consideração da questão de gênero na formação profissional em saúde, conforme já previamente demonstrado em estudos que destacaram, por exemplo, diferenças relacionadas ao gênero nas atitudes de estudantes de medicina no cuidado aos pacientes78,79. Em estudo envolvendo estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Ribeiro et al78(2077) analisaram as atitudes de estudantes de diferentes níveis do curso no que diz respeito à relação médico- paciente, utilizando o questionário Patient-Practitioner Orientation Scale (PPOS). Os resultados demonstraram que o gênero feminino foi significativamente associado com atitudes mais centradas no paciente, sendo sugerida pelos autores a necessidade das escolas médicas examinarem criticamente esses aspectos na formação dos estudantes.

Sobre a temática “mortalidade materna”, esse é um conteúdo rotineiramente abordado no curso de Medicina da UFRN, não só no componente curricular “Saúde Reprodutiva”, mas também, em outros componentes curriculares obrigatórios. Trata- se de um problema de saúde pública80,81, sendo dependente de questões culturais, educacionais e de políticas públicas de saúde82. Como tal, é plausível admitir que sua adequada abordagem, especialmente no processo formativo, sofre influência de diversos fatores de ordem pessoal e subjetiva, incluindo-se aí a sensibilidade social e as qualidades humanísticas.

Por outro lado, a relação homem e saúde é objeto de atenção nos meios acadêmicos e também no contexto dos serviços, ganhando relevância nas últimas décadas, especialmente nas análises da sexualidade e da saúde reprodutiva83. Os trabalhos têm abordado os homens por meio de distintas perspectivas: de forma instrumental como apoio à saúde das mulheres; pelo reconhecimento de suas

necessidades de informação ou de saúde; de responsabilização por práticas sexuais de risco e de afirmação da necessidade de sua participação nas questões de saúde reprodutiva e sexual como integrante dos direitos reprodutivos84,85,86,87. O resultado encontrado nesse estudo é surpreendente e interessante por suscitar a discussão a respeito da influência das questões de gênero, masculinidade e relação com o cuidado em saúde sobre o processo de aprendizagem.

O médico egresso da UFRN deverá ter as competências, habilidades e atitudes do profissional da saúde que atendam às exigências e necessidades da sociedade contemporânea. Na atualidade, cada vez mais, esse profissional vem sendo chamado a pensar sobre problemas coletivos, ou seja, que não estão no âmbito da saúde de um único indivíduo. Questões abrangentes como direito à saúde, acesso aos serviços, autonomia reprodutiva e redução de danos merecem esforços coletivos para promover o desenvolvimento de outras competências, quais sejam: políticas, éticas e humanas. Estas vão se agregando e constituindo uma nova visão no âmbito da formação, da atuação e do planejamento em saúde88,89,90.

De acordo com essa ótica e analisando-se os resultados da avaliação das três dimensões englobadas na avaliação cognitiva, mereceu destaque o desempenho superior e significativamente positivo dos alunos que cursaram a disciplina “Saúde Reprodutiva” nas dimensões DHSR e Legal/Institucional, o que esteve de acordo com a proposta da disciplina, de fortalecer a formação acadêmica dos alunos não somente nos componentes teórico-metodológicos e técnico- operativos, mas também nos componentes ético-políticos15,90,91.

As habilidades clínicas relacionadas à interação com pacientes, tomada de história clínica, interpretação de dados, realização do diagnóstico, tomada de decisão, aconselhamento e orientação foram avaliadas pelo método OSCE, em avaliações organizadas em seis estações envolvendo pacientes simulados. De uma forma geral, na avaliação das habilidades clínicas, o desempenho dos graduandos do grupo SR foi similar ao dos formandos do grupo não SR, observando-se bons resultados na comunicação de ambos os grupos, quando comparado a outros componentes de avaliação.

Indiscutivelmente, o OSCE é um método valioso de avaliação, pois fornece uma visão integrada das habilidades clínicas dos alunos, facilitando a identificação das áreas de aprendizado a serem reforçadas. De acordo com os resultados aqui apresentados, observou-se que as melhores notas de desempenho global ocorreram

nas estações de Atenção ao Puerpério, Planejamento Reprodutivo (DIU e Contracepção de Emergência) e Infertilidade, tendo o resultado inverso sido observado nas estações de Climatério, Atenção Pós-Aborto, Anencefalia, Morte Materna e Gravidez com HIV.

Não foi observada nenhuma tendência significativa de efeito dos grupos SR e não SR sobre o desempenho dos alunos nas diversas estações, de forma que o grupo que cursou o componente curricular “Saúde Reprodutiva” apresentou desempenho significativamente superior em alguns componentes das estações de Violência Sexual, Infertilidade e DIU, mas desempenho inferior em outras, como Gravidez com HIV, Atenção Pós-Aborto, Atenção ao Puerpério e Climatério. Esses achados, reforçados pelas impressões destacadas pelos estudantes na avaliação qualitativa sobre o método, apontam para a importância do método OSCE muito mais como uma avaliação formativa do que somativa, tal qual foi utilizado no presente estudo. Adicionalmente, os resultados denotam a existência de áreas do conhecimento que carecem de prioridade na integração dos conteúdos curriculares e/ou situações que ocorrem com pouca frequência no campo de ensino e que por isso, merecem ser pensadas e contempladas na programação prática do internato de Tocoginecologia92,93,94,95.

Outro achado desse estudo foi o desempenho significativamente menor do sexo masculino em alguns componentes de avaliação do OSCE. Isso foi observado em estações como violência Sexual (técnica), contracepção de emergência (subdomínio Informação, NFP e desempenho global), anencefalia (técnica), gravidez com HIV (técnica e NFP) e Atenção Pós-Aborto (desempenho global). Conforme foi discutido na avaliação cognitiva, em estudos que destacaram a influência do gênero nas atitudes de estudantes de medicina no cuidado aos pacientes78,79 e, embora as diretrizes curriculares nacionais aprovadas para os cursos da saúde51 não façam menção explícita às temáticas sexual e de gênero na graduação, sua importância é inegável do ponto de vista de saúde e de formação profissional. Adicionalmente, é sabido que um dos fatores-chave para o sucesso de uma proposta que promova uma repercussão efetiva no agir profissional e na equidade da atenção, seja a capacidade de integrar a perspectiva de gênero e a promoção dos direitos como prioridades no planejamento e implementação de atividades de ensino e de assistência à saúde79,96,97, bem como o desenvolvimento de um olhar mais sensível e informado quando se trata de situações como as abordadas nas estações acima,

envolvendo violência sexual, gravidez indesejada, aborto, infecção por HIV e malformação fetal.

O OSCE é uma metodologia de avaliação que permite a observação do desempenho do aluno em seus aspectos técnicos, éticos e relacionais64,94. Esses aspectos, essenciais à atenção de qualidade, puderam ser avaliados nesse estudo, em estações focadas na saúde sexual e reprodutiva, onde a informação, a orientação e a sensibilidade foram tão importantes quanto o conhecimento técnico- científico do aluno, possibilitando verificar seu desempenho frente às situações como: direito à saúde, violência de gênero, sexualidade, planejamento reprodutivo, morte materna, malformação fetal, aborto, interrupção legal da gestação e gravidez com HIV98,14,99.

Ainda na análise da interação entre as variáveis, outro achado evidenciado esteve relacionado à idade dos estudantes. Observou-se que quanto menor a idade do aluno melhor foi o desempenho em cinco dos sete componentes avaliados no OSCE. Esse é um dado interessante de nosso estudo, revelando que a maior idade durante a graduação de medicina não esteve associada ao melhor desempenho ou ao domínio de habilidades clínicas com foco na atenção em saúde sexual e reprodutiva. Esses resultados remetem à reflexão de que, com relação à incorporação dessa temática nos currículos dos cursos da saúde, as estratégias de ensino e de integração de conteúdos devem ser planejadas e implementadas desde o início do curso, abrangendo os eixos técnico-operativo e ético-humanístico, como forma de contribuir com a formação de egresso profissional sensibilizado e capacitado para atender às demandas de saúde sexual e reprodutiva da população14,43,91,99.

Avaliando-se o desempenho dos estudantes nas habilidades relacionadas à comunicação observou-se desempenho satisfatório na grande maioria das estações, entretanto, chamou a atenção o desempenho inferior no subdomínio “Informação” nas estações de Violência Sexual, Anencefalia e Morte Materna. Esse é um dado relevante para discussão e corrobora com a impressão de que há deficiência no processo de formação médica, de iniciativas que reforcem o estabelecimento de uma boa relação médico-paciente e a troca de informações, especialmente no que concerne à transmissão de uma notícia que envolva uma mudança drástica na perspectiva de futuro em um sentido negativo, como o que ocorreu nas estações acima citadas. Todas as situações apresentaram elevado grau de dificuldade na

construção e adaptação para uso no presente estudo, no entanto, existia uma curiosidade abrangente em avaliar a competência do graduando em se relacionar e prover informação numa realidade onde cada vez mais os usuários desejam apropriar-se de decisões sobre o seu tratamento, buscando no médico um conselheiro e confiando que forneça informações necessárias à tomada de decisões100,101,102,103.

Outro aspecto que merece discussão em nosso estudo diz respeito à fidedignidade da avaliação de desempenho entre os dois avaliadores e em relação à avaliação procedida pelo paciente simulado. A fidedignidade pode ser definida como o grau de precisão de um instrumento de medida numa dada situação. Refere-se à consistência de resultados obtidos pelos mesmos sujeitos em diferentes ocasiões ou com diferentes conjuntos de itens equivalentes. É esse atributo da avaliação que garante a confiança que se pode ter nos resultados de um determinado instrumento104.

No presente estudo procedeu-se a análise de fidedignidade entre os dois avaliadores com relação aos componentes avaliados em cada estação de OSCE, bem como a fidedignidade entre a média obtida entre os avaliadores e o paciente padronizado na comunicação e desempenho global do aluno. Essa avaliação nos levou a constatação de que na avaliação da técnica se observou elevada consistência dos resultados obtidos entre os dois avaliadores nas diferentes estações. Entretanto, resultado semelhante não pode ser observado na análise da fidedignidade com relação à comunicação, componente que apresentou baixa confiabilidade interobservador entre os avaliadores, fazendo-nos supor o quão importante e necessário a presença de mais de um avaliador em exame de OSCE quando se trata de itens mais subjetivos e relacionais, como são os que envolvem a comunicação, realização de anamnese, educação em saúde e informação do paciente. Esses dados estão em concordância com os observados no estudo de Fischbeck105(2011), que avaliou competências de comunicação em OSCE com estudantes de medicina do primeiro ano do curso, onde a consistência da avaliação chegou a um grau médio de confiabilidade (α=0.55/0.50), sinalizando para o entendimento de que apesar da comunicação médico-paciente ser um processo de elevada complexidade, ela poderá ser testada por metodologia avaliativa como o OSCE.

Adicionalmente, a pesquisa revelou que ocorreu baixa fidedignidade ou baixa correlação entre as respostas obtidas entre a média dos avaliadores e o paciente padronizado, tanto em relação à análise da comunicação como do desempenho global. Esse é um dado novo, inerente à metodologia empregada nesse estudo, que, no entanto, sinaliza para a reflexão de uma questão relevante a ser considerada na avaliação prática de habilidades clínicas, como é a percepção e o treinamento do ator em uma avaliação com OSCE.

Esforços têm sido realizados para desenvolver métodos que avaliem de forma adequada o conhecimento e a habilidade clínica dos alunos de cursos da saúde. Muitas universidades e órgãos de classe estão unindo esforços para repensar maneiras de sistematizar a avaliação destas competências, acrescentando-lhe a perspectiva formativa e indutora de práticas pedagógicas inovadoras92,106. A avaliação dessas competências deve partir de uma perspectiva que utilize os variados métodos existentes para valoração dos distintos elementos que a compõem, acreditando-se que apenas a combinação desses métodos seja capaz de produzir resultados válidos e confiáveis107,108. Em revisão sistemática através de meta-análise109 com trinta e nove publicações sobre OSCE, foi evidenciado que a confiabilidade do método esteve associada não só a utilização de um maior número de estações, mas também, a um maior número de examinadores por estação quando da avaliação de habilidades interpessoais e de comunicação.

O aprender clínico tem se modificado, com a antecipação e diversificação de cenários de aprendizagem, fazendo com que os métodos de avaliação das competências clínicas sejam adaptados a essa nova realidade110. Um dos desafios dos educadores médicos é o de avaliar o “fazer” real num cenário clínico, com sua imprevisibilidade e com os aspectos emocionais envolvidos, para julgar se o estudante ou médico não apenas é competente no desempenho daquela função, mas também capaz de atender às diversas condições clínicas que deverá enfrentar nos cenários de prática, ao longo de sua vida profissional111. Indiscutivelmente, a observação do atendimento de casos reais, como ocorre com o Mini-CEX, permite a avaliação da capacidade de “fazer” do estudante diante das nuances apresentadas por cada caso clínico, no seu ambiente específico.

Nesse estudo, os resultados encontrados na avaliação de atitudes em cenário real demonstraram que os alunos que cursaram o componente curricular “Saúde Reprodutiva” obtiveram desempenho significativamente superior não só no

desempenho global, mas em variáveis que dimensionam as habilidades relacionais e de postura do aluno frente ao atendimento como: a realização da anamnese, as qualidades humanísticas e a relação médico paciente. Esse achado corrobora com a hipótese de que a incorporação e discussão de conteúdos no decorrer da disciplina “Saúde Reprodutiva” contribuiu positivamente para a aquisição de competências clínica relacionais do aluno de medicina, durante o internato de tocoginecologia.

Outro resultado interessante de nosso estudo foi a diferença encontrada no desempenho dos alunos com relação ao cenário e ao foco da avaliação. O desempenho dos alunos com o Mini-CEX, quando atendendo pacientes na enfermaria, foi superior em todos os itens de avaliação quando comparado ao desempenho observado em outros cenários como a sala de partos e a emergência obstétrica. Considerando que se observou resultado significativamente positivo nos itens exame físico e raciocínio clínico, sugere-se que a avaliação realizada na enfermaria conta com fatores favoráveis ao desempenho do graduando, provavelmente em decorrência do fato de a usuária internada na enfermaria já dispor de um diagnóstico estabelecido, com informações clínicas e exames complementares registrados no prontuário hospitalar, o que de certa forma favorece o desempenho do aluno quanto ao raciocínio clínico e quanto aos passos propedêuticos a serem seguidos durante o atendimento. Por outro lado, a avaliação nos cenários da sala de partos e emergência obstétrica, em virtude da própria complexidade inerente aos casos clínicos lá atendidos, reveste-se de maior dificuldade para a avaliação dos estudantes, o que se traduziria no desempenho inferior observado nesses cenários, em comparação com a enfermaria.

Todos esses dados assumem grande importância quando consideramos a educação como mudança de atitude, mudança esta expressa na aquisição de novos e adequados comportamentos cognitivos, psicomotores, afetivos e sociais. Dessa forma, a avaliação permite a verificação de que estes comportamentos estão sendo atingidos e colocados numa sequência lógica de ações que resultem em uma determinada competência, que no Mini-CEX é entendida como uma atuação profissional de excelência em situação real112.

No momento que vivemos, mais do que nunca a responsabilidade social é exigida dos cursos de Medicina por parte do governo, da comunidade e da própria academia. Documentos internacionais apontam diretrizes a serem seguidas pelas escolas médicas nesse sentido113. Se a avaliação adquire a potencialidade de

direcionar o currículo do curso médico, ela pode reforçar a implantação das DCN, a visão da integralidade da Medicina, a interdisciplinaridade através do trabalho multiprofissional e o processo de transformação das escolas médicas, que em última análise têm por objetivo final formar recursos humanos que fortaleçam o Sistema Único de Saúde97,112.