• Nenhum resultado encontrado

Discussão económica da agua e o debate do direito humano à Água

PARTE II HIDROPOLÍTICA INTERNACIONAL

CAPÍTULO 4 CONFIGURAÇÃO DA HIDROPOLÍTICA

4.5 Discussão económica da agua e o debate do direito humano à Água

Em matéria hídrica o reconhecimento, em 2002, pelo Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, da relação entre direitos humanos e água é um significativo avanço, ao que resta aguardar sua aplicação. Isto porque, conforme assinala Sandoval (2007), nos tempos atuais não existe uma referência clara, em qualquer dispositivo jurídico internacional, relacionada ao direito humano à água. Com base na leitura de documentos de valor global, como a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948), o Convênio Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), e o Convênio Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), o autor salienta duas importantes considerações. A primeira diz respeito à correlação que o direito à água tem com o direito à vida, e também com outros direitos básicos, como o direito à saúde ou à habitação. A segunda destaca o fato de que até meados do século XX a humanidade não tinha noção da dimensão do desafio que se tornaria a questão da gestão hídrica frente aos anúncios da escassez de água. Até então, não eram percebidos como tão altos os níveis de deterioração da água, nem sua relação com o aumento da população mundial, nos níveis populacionais a que se chegou na atualidade.

Nessa mesma lógica, é de se perceber que ainda não existe um debate sério e constante sobre o direito a um ar qualitativamente limpo. Isto porque a qualidade do ar ainda não chegou a um nível de deterioração que alarme os indivíduos e à sociedade, a ponto de reclamarem vigorosamente por sua proteção. Mas o tema hídrico sim.

Em janeiro de 2003, o Comitê de Diretos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas emitiu a Observação Geral n°. 15, sobre a Adoção do Direito à Água. Segundo esse Comitê, todas as pessoas têm o direito de ter acesso à água de maneira suficiente, saudável, aceitável, acessível e adquirível, para uso pessoal e doméstico. Os fatores de maior importância para avaliar o alcance deste direito estão presentes nos artigos 20, 26, 29 e 46 da referida Observação Geral n°15, e também em seus artigos 85, 89 e 127.

Em seu artigo 54, o documento acima referenciado alude à proteção de bens indispensáveis para a sobrevivência da população civil, entre os quais se encontra a água potável. No artigo 24 da Observação Geral n°15, os Estados signatários determinam que os Estados Parte reconheçam, por exemplo, o direito da criança a desfrutar de saúde, garantindo-

181 lhe todos os serviços necessários para o tratamento de doenças e de reabilitação da saúde. Além disso, determinam que os Estados Parte se esforcem para assegurar que nenhuma criança seja privada de seu direito ao desfrute desses serviços sanitários. Os Estados signatários devem, ainda, combater enfermidades sistêmicas através, dentre outras formas, da estratégia de prover uma água potável saudável, levando em conta os perigos e riscos da deterioração da ambiência.

Conforme Sandoval (2007), o direito à água não se encontra explicitamente incluído na legislação da maioria dos países, especialmente na dos países industrializados. No entanto, em muitos países em desenvolvimento, onde a aplicação deste direito não parece óbvio, tem sido introduzido nas constituições e/ou leis, como é o caso da Etiópia, Gâmbia, África do Sul, Uganda, Zâmbia, Burkina Faso, Bélgica e Uruguai. Outros países, como a França, estão em processo de incluí-lo na sua legislação.

Setores da sociedade civil mundial e, em especial, organizações não governamentais, têm sido os mais ativos na luta para o estabelecimento do direito humano à água. Defendem que o direito à água deveria ser proclamado como um valor universalmente partilhado. Compartem uma visão bastante generalizada entre aqueles que no mundo todo se opõem à privatização da água potável e do saneamento, por considerar que a água um bem público essencial, cujo fornecimento deveria ser da exclusiva responsabilidade das autoridades públicas locais.

Para Petrella (2004:32) ―O acesso à água e a obrigação de conservá-la para o objetivo de sobrevivência pertencem à humanidade coletivamente; não pode ser objeto de apropriação individual privada‖.

Esta visão é partilhada por sindicatos, associações de consumidores, instituições de caridade, ONGs e associações comunitárias, que temem uma elevação dos preços da água como resultado das privatizações, e em razão de posições monopolísticas que permitam às empresas privadas não prestar serviço a clientes ―não rentáveis‖ (Barlow, 2008).

Na Declaração de Mar del Plata, na Resolução sobre o Direito à Água (2000) do Conselho Europeu de Direito Ambiental, e no Plano de Ação da Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio + 10) se preconizou o acesso à água como um direito humano. Além disso, a ampliação da cobertura dos serviços de água potável e saneamento foi incluída como uma das Metas de Desenvolvimento do Milênio, as quais constituem uma das mais importantes referências atuais na luta contra a pobreza, no plano internacional.

182 Por outro lado, influentes representantes das organizações internacionais têm-se mostrado favoráveis à privatização da água, como Kofi Annan, Secretário Geral da ONU (2001), Michel Camdessus, Woicke Pedro, vice-presidente do Banco Mundial e, inclusive, representantes das chamadas "multinacionais da água", como Vivendi, Suez e Veolia, conforme SANDOVAL (2007).

Ora citado, a questão tem sido discutida em vários fóruns internacionais sobre a água, com alguns Estados posicionando-se contrariamente ao direito humano à água. Os EUA, por exemplo, propuseram a eliminação das palavras "direitos humanos", na Conferência Internacional sobre Água Doce, em Bonn, em 2001, restringindo a declaração a apenas "o acesso à água potável é uma necessidade básica". O tema foi intensamente discutido durante o Terceiro Fórum Mundial da Água, em Kyoto, em março de 2003, com muitos discursos feitos em favor da privatização. Contrariamente a tal posição, o presidente francês, Jacques Chirac, enviou uma mensagem em que propunha que "o acesso à água fosse reconhecido como um direito fundamental", mas sua iniciativa não foi bem sucedida.

Cabe mencionar que o reconhecimento do caráter vital da água deu-se em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos239, que em seu artigo 3º determina que ―toda

pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal‖, e, ainda, em seu artigo 25, quando ratifica que ―todos têm direito a um nível de vida adequado para a saúde e o bem-estar próprio e de sua família‖. Apesar disso, no âmbito internacional criou-se uma constante discussão em torno do cumprimento das garantias que possibilitem o gozo desse direito humano,240

de forma plena e a todas as pessoas, em igualdade de condições. Para alguns estudiosos do tema hídrico, existem dicotomias entre o discurso da escassez hídrica e os interesses dos atores do sistema internacional. Desse modo, há controvérsias acerca das razões pelas quais a água ainda não foi declarada um direito fundamental, tendo sido, no entanto, reconhecido o valor econômico deste recurso natural pelas Nações Unidas.

Foi visto que ao começar o novo século, a Declaração do Milênio das Nações Unidas, no ano 2000, ratificou a necessidade de acabar com a exploração irracional dos recursos hídricos, preconizando a formulação de estratégias de gestão de água no nível regional,

239

Ver http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm

240 Barbosa (2008) ao abordar a discussão sobre o tema hídrico argumenta que existe uma distinção entre Direitos Fundamentais e Direitos Humanos. Os primeiros são aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão ―Direitos Humanos‖ guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

183 nacional e local, de maneira a assegurar acesso equitativo e distribuição adequada, tendo como objetivo a redução, pela metade, do número de pessoas que não têm acesso a água potável. Por sua vez, com a Conferência Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável os Estados membros das Nações Unidas tiveram que definir os meios para realizar os objetivos da Declaração do Milênio241, onde ratifica-se o compromisso da comunidade internacional

com o desenvolvimento sustentável, e com o acesso seguro à água.

Em matéria jurídica, Barbosa (2008:6) destaca que apesar do debate sobre a água como direito fundamental da pessoa humana parecer uma questão óbvia no plano do debate internacional, ―como condição sine qua non, no âmbito jurídico-positivo internacional (tratados) e nacional (constituições pátrias) não se acata essa obviedade discursiva‖.

O referido autor menciona que nisso radica o paradoxo hídrico internacional: ―a ONU reconhece a água como portadora de valor econômico, mas não a reconhece como direito fundamental da pessoa humana‖. Explica que considerando esse contexto, a ONU deve não apenas escrever declarações de águas, mas sim formular documentos jurídicos que sejam gradativamente incorporados pelos diversos organismos internacionais, tais como Banco Mundial, BIRD, OMC, FMI, para, posteriormente, por exigência desses organismos nas relações econômicas e políticas internacionais, contribuírem com a positivação da água como direito fundamental da pessoa humana nos ordenamentos jurídicos internos de vários países membros da ONU.

Os especialistas estabeleceram a quantidade de 50 litros/pessoa/dia como o mínimo consumo de água necessário para atender às seguintes necessidades básicas: bebida, saneamento e preparo de alimentos (ESQUIVEL, 1998). Não obstante, os fóruns mundiais de água vêm se discutindo que ao priorizarem a água como dimensão de caráter privado, desconsidera-se sua faceta vital, qual seja, a água como direito fundamental da pessoa humana. Frise-se que no Fórum Mundial da Água, realizado na cidade do México, tornou-se clara a visão dicotômica protagonizada pelos atores internacionais, de um lado, grupos hídricos economicamente poderosos, que concebem a água como recurso natural privado; do outro, organizações não-governamentais (ONGs) e movimentos sociais, que vêm formulando uma idéia e, aos poucos, lutando pela sua concretude, justificando que a água é vital para a subsistência dos seres, e essa é uma dimensão que deve urgentemente ser agasalhada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como direito fundamental da pessoa humana242, sendo

241 Sandoval (2007:48)

242 Barbosa, BARBOSA TEXTO INTERNET http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link

184 considerado que o acesso a esse bem natural deveria ser um direito humano que teria de ser garantido pelos Estados a toda sua população.

As realidades mostradas, no capítulo dois, com base nos relatórios da OMS, do PNUD, dentre outros trabalhos científicos refletem, no entanto, as várias dificuldades de se lidar com um líquido tão vulnerável à deterioração243. Nesse âmbito, a limitação ao desenvolvimento das

sociedades e dos indivíduos é explicita, em várias regiões do mundo.

A dimensão social da água no contexto internacional converteu-se num foco permanente de discussão. Num primeiro momento, focou-se o dever dos Estados de garantir água potável a todos os povos do mundo e, posteriormente, veio a ser discutido o caráter econômico e mercantilista da água, introduzido através dos discursos da escassez. Isso pode ser deduzido da forma como o assunto hídrico, nesse ponto específico, vem sendo tratado. Vimos que no relatório da Conferência de Mar del Plata consagrou-se como princípio fundamental a cooperação e a valorização dos corpos hídricos compartilhados, sendo objetivado avaliar as consequências das diversas utilizações da água sobre a ambiência, e incentivar medidas de luta contra as doenças de origem hídrica.

A partir desses esforços, um conhecimento mais apurado veio a mudar as percepções sobre a água, o ciclo hidrológico e os recursos hídricos, mas na dimensão social houve poucos avanços para resolver os problemas mais críticos, que dizem respeito à deterioração das águas, e ao acesso a saneamento básico, nos países mais pobres. Embora tenha sido reconhecida a relação entre direitos humanos e a água, em 2002, pelo Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Culturais. Cabe, agora, esperar sua evolução e aplicação com melhores resultados.

Conclusivamente, é possível observar-se que com os alertas provocados pela escassez da água, vários foram os vieses tomados pela problemática hídrica. Igualmente, várias foram as discussões a respeito dessa crise, que pode vir a fortalecer os mercados da água, através de processos de privatização. Muitos debates nos fóruns da água e nos fóruns sociais centraram- se na conveniência de outorgar um valor econômico a ela, trazendo à tona questões a respeito do direito que têm as pessoas de ter acesso à água de boa qualidade, em igualdade de condições, mas até agora tem prevalecido o viés comercial da água, em detrimento dos interesses sociais.

243 A OMS e a UNICEF no Programa “Monitoreo del Abastecimiento de Agua y del Saneamiento” informa que: ―más de 2.500 millones de habitantes del mundo carecen de acceso al saneamiento mejorado y casi 1.200 millones carecen de las mínimas condiciones sanitarias‖.

185 Nesse último aspecto, Petrella (2004) levantou várias hipóteses sobre o agravamento do acesso á água, observando o fortalecimento financeiro das transnacionais que atuavam no mercado da água, sem apresentar soluções ao verdadeiro problema do acesso, especialmente em países pobres e em via de desenvolvimento. Para aquele autor, era inconcebível dotar de valor econômico um bem que tem valor vital. Dessa forma, defendia que a água não poderia ser considerada uma mercadoria, regida pelas regras do mercado, e que antes de se pensar em cobrar um valor econômico pela água, primeiro deveria ser solucionado o problema do acesso de todas as pessoas a ela. Isto, por ser um direito inalienável do ser humano, além de ser um bem global comum244. Desse modo, argumenta Petrella (2004) que os direitos e obrigações inalienáveis, com relação à água, são coletivos, e não individuais ou privados.

Um dos fatores mais controversos emanados dos princípios da Declaração de Dublin é, justamente, a valoração da água como um bem econômico. Essa medida tem sido amplamente criticada nos fóruns internacionais da água, por algumas ONGs, mas também constitui uma opção muito defendida pelas corporações e entidades que intervêm no lucrativo mercado das águas. A partir de Dublin, o que se observa é que a percepção sobre a água muda. Apesar de que em 1977, na Declaração de Mar del Plata, se reconheceu o acesso à água como um direito humano, a tendência muda nos anos seguintes.

Na mesma linha de Petrella (2004), Paquerot (2006) afirma que antes de se pensar em colocar preço à água, deve-se prover este elemento, essencial para a vida, a todos os seres do planeta.

Em contextos de deterioração ambiental, vertiginosa valorização dos recursos naturais, mercantilização da natureza e preocupações com a sustentabilidade, redefinem-se as relações de poder e segurança nacional estabelecidos. Como se sabe, a natureza não dotou todos os lugares e nações na Terra com o mesmo tipo e a mesma quantidade de recursos naturais, muito menos de fontes hídricas (ELHANCE, 1999). É assim que dessa não equitativa distribuição de bens naturais se alimentam e se amontoam as raízes de prováveis conflitos, ou as situações de cooperação sobre recursos naturais essenciais e escassos. Por isso, no âmbito das relações internacionais, ou desde a perspectiva da hidropolítica, os quadros descritos e os que se exporão a continuação evidenciam que a interdependência hidrológica pode implicar em um comprometimento da segurança em sentido amplo, em conformidade com o explicado no capítulo introdutório.

244 Conforme este autor, no Manifesto da Água, ―o acesso à água e a obrigação de conservá-la para o objetivo de sobrevivência pertencem à humanidade coletivamente; não pode ser objeto de apropriação individual privada‖ Petrella (2004:12).