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PARTE I INTERDEPENDÊNCIA HIDROLÓGICA

CAPÍTULO 1 As águas nas Relações Internacionais

1.4 Segurança internacional

1.4.1 Segurança hidroambiental

Frente às mudanças do sistema internacional surge uma reflexão acerca das tradicionais definições de segurança, abrindo passo a um novo paradigma de segurança internacional, dado o surgimento dos problemas ambientais e hídricos, que neste trabalho têm-se denominado hidroambientais30. Salienta-se aqui a importância da (in)disponibilidade de água como fator de risco, tanto para a segurança da população como para a convivência pacífica entre as nações, dada a complexidade de aspectos envolvidos.

O enfoque do tradicional conceito de Segurança Nacional - baseado na preocupação estratégico-militar de preparação para a guerra tradicional – se ampliou com o fim da Guerra Fria devido ao surgimento de novos desafios no contexto internacional. Com a queda do Muro de Berlim, símbolo do fim da Guerra Fria, a luta pela corrida armamentista passou a

28 O trabalho de Michael Schulz, por exemplo, enfatizou o papel da água e a sua escassez como um vetor de tensões de diferente nível entre Turquia, Iraque e Síria, devido ao compartilhamento das águas dos rios Tigre e Eufrates. O autor aponta aspectos relevantes acerca do papel estratégico da água na segurança desses países e lembra que, no caso do Iraque, que já enfrenta condições de escassez hídrica, os quadros históricos de conflito com seus vizinhos podem ver-se aguçados pela água. Ver Schulz, Turkey, Syria and Iraq: A Hydropolitical

Security Complex. In: OHLSSON, Leif. (Ed.) Hydropolitics: Conflicts over Water as a Development Constraint. London: Zed Books, 1995.

29 Nesse contexto, são aplicáveis as argumentações de Arun Elhance (1999) quando afirma que numa situação de crescente escassez de água, ―as altamente complexas e multidimensionais interdependências criadas pelos recursos hídricos transfronteiriços constrangem os Estados de afirmar sua soberania e perseguir unilateralmente objetivos de segurança nacional, desenvolvimento econômico e bem-estar social‖.

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35 não ser mais o principal meio para garantir a segurança dos Estados. Ameaças provindas de problemas ambientais e ecológicos, assim como do narcotráfico, do terrorismo, da pobreza, das doenças endêmicas como Aids, das migrações, entre outras, colocaram a descoberto que problemas de caráter transnacional deveriam ser percebidos com maior atenção.

Diante dessas circunstâncias, novos conteúdos de segurança internacional se formaram sob uma perspectiva diferente daquela derivada do confronto Leste-Oeste, centrada no Estado e focada em incrementar seu poder relativo no sistema bipolar. A esse respeito, Villa (2001:65) afirma que ―desde o início do pós-Guerra Fria, a preocupação estratégico-militar tem recuado no cenário das discussões internacionais, ao passo que outras dimensões, como a econômica e a ecológica, passaram a ocupar um espaço mais amplo no debate político- acadêmico.‖ Assim, novos fenômenos de segurança, antes ocultos e diluídos pelo debate em torno da Guerra Fria, se consolidaram. Villa (2001:66) ainda salienta que ―no plano específico, esses fenômenos são a concorrência econômico-tecnológica, os desequilíbrios ambientais, a explosão populacional, as migrações internacionais e o narcotráfico‖. Conforme explica o referido autor, esses novos processos têm como singularidade sua natureza societal, que reside no funcionamento de uma sociedade civil cada vez mais transnacionalizada, o que possibilita ―que atores não estatais, como grupos ecológicos, ambientalistas, de direitos humanos e de direitos reprodutivos, entre outros, surjam como consciências críticas em torno dos novos fenômenos surgidos‖. Pelas características e a dimensão transnacional desses fenômenos, o paradigma de segurança nacional teve que incluir novas ameaças e a influência desses fenômenos na sociedade.

Mesmo fora do âmbito dos Estados, cabe destacar, por exemplo, o relatório publicado pela Comissão Independente sobre Questões de Desarmamento e Segurança, em 1982, presidida por Olaf Palme (ICSDI 1982). Naquele documento foram consideradas várias ameaças à segurança comum, que incluem, além das ameaças militares, diversos tipos de ameaças não militares, como as relacionadas com os problemas econômicos e a escassez de recursos, o crescimento demográfico e a destruição do ambiente (CUNHA, 1998). Também, em relatório produzido em 2004 por uma comissão de especialistas indicados por Kofi Annan, então Secretário-Geral da ONU, foram identificados seis núcleos temáticos descrevendo as principais fontes de ameaças à segurança internacional, sendo apontadas as seguintes: 1) as guerras entre Estados; 2) a violência no interior dos Estados, guerras civis, violações aos direito humanos em larga escala e o genocídio; 3) pobreza, doenças infecciosas e a degradação ambiental; 4) armas nucleares, químicas e biológicas; 5) terrorismo e 6) crime

36 organizado transnacional. Esses núcleos, cada qual com suas particularidades, apresentam uma ampla gama de assuntos com potencial de gerar instabilidades, desde as tradicionais disputas territoriais até a competição por água ou outros recursos naturais, tal como assinala Ricupero (2009), citado por Queiroz (2011:32).

As dimensões econômica, ecológica e/ou ambiental - somadas ao surgimento de novos atores além dos Estados, como as ONGs, movimentos sociais, entre outros, - vieram a compor as agendas de discussão, trazendo uma mudança no circuito das relações internacionais, dado o reconhecimento de problemas e fenômenos de efeito transnacional.

Em tal sentido, Villa (2001:69), destaca que sob o ponto de vista conceitual, a natureza especificamente transnacional e societal dos problemas, processos e dos agentes, implica ―relativizar a apreensão e a análise da noção de segurança internacional, que tem por base a perspectiva teórica realista, mais apropriada à compreensão de relações interestatais puras‖. Malgrado a incursão das novas temáticas nos assuntos de segurança, e considerando que o novo cenário internacional se caracteriza por ser mais dependente e menos independente, Keohane e Nye (2001:42) salientam que ―as tradicionais questões relativas à segurança não deixaram de ocupar posição de destaque, mas passaram a ser vistas de modo cada vez mais integrado a esses novos temas da agenda internacional‖.

Em um contexto de grandes mudanças analíticas devido à intervenção de novos atores não territoriais e à percepção de novas ameaças, no inicio dos anos de 1980, o termo segurança ambiental surge com o alargamento do conceito tradicional de segurança. Em tal sentido, o termo aparece pela primeira vez, conforme Cunha (1998:16), no relatório da Comissão Independente sobre Questões de Desarmamento e Segurança, presidida por Olaf Palme, em 1982 (ICSDI 1982), ora citado.

Para Cunha (1998) nesse documento se faz uma distinção entre "segurança coletiva" e "segurança comum", tendo a primeira a ver com a segurança em nível de relacionamento entre os Estados, abarcando conceitos como os de aliança e dissuasão. A segurança comum teria a ver com a cooperação para fazer frente aos problemas globais e aos problemas relacionados com o futuro da humanidade e a sua sobrevivência. Nesse contexto, a segurança ambiental teria como objetivo limitar os riscos dos impactos negativos sobre a ambiência e as reservas de recursos naturais.

De forma mais afirmativa, e de acordo com uma definição próxima da que é proposta por Myers (1993) citado por Cunha (1998), poder-se-ia dizer que a segurança ambiental refere-se ou visa à proteção da ambiência e do estoque de recursos naturais, de forma que

37 possam ser garantidos alimentos, água, saúde e segurança pessoal, tanto aos indivíduos como às comunidades. Desse modo, as várias ameaças à segurança comum incluiriam, além das ameaças militares, diversos outros tipos de ameaças não militares tais como as relacionadas com os problemas econômicos e a escassez de recursos. Nesse quadro, se considerando os riscos que recaem no crescimento demográfico, na destruição da ambiência, e a concorrência por recursos naturais como a água, a escassez qualitativa ou quantitativa desta, pode constituir ameaças de nível baixo, meio ou alto; podendo levar aos Estados a terem relações hostis (HOMER-DIXON, 1994; GALHO FILHO, 2005; PNUMA, 2006).

Nessa linha de pensamento, Mestre (1998:19) destaca:

Quando são abordadas as questões de segurança se atende habitualmente a: (i) valores relevantes que importa assegurar; (ii) ameaças que incidem sobre esses valores; (iii) vulnerabilidades que tornam aquelas ameaças relevantes; (iv) mecanismos de resposta para reposição da segurança (...). Com uma sensibilidade equivalente à que proporciona esta sistemática, desde o fim da Guerra Fria, os conceitos tradicionais relacionados com segurança, baseados na soberania nacional e na segurança territorial, têm vindo a ser crescentemente questionados. A integridade do território nacional, a independência política e a soberania nacional se mantêm como fatores fundamentais. Contudo, uma definição mais aproximada de segurança deverá incorporar fatores que decorrem de ameaças não tradicionais e as suas causas subjacentes. (...), entre essas ameaças são apontados: o declínio econômico; a instabilidade política e social; as rivalidades étnicas e as disputas territoriais; o terrorismo internacional; a lavagem de capitais e o tráfico de droga; e a degradação ambiental (os autores se referem a ―environmental stress‖).

Tendo em vista todas essas mudanças e as características dos fenômenos que se tecem numa sociedade cada vez mais ―globalizada‖ e transnacionalizada, a fórmula conceitual alternativa de segurança internacional ―parece atender ao surgimento de um tipo ideal de segurança global multidimensional‖. Villa (2001:72), a esse respeito se pronuncia:

Global porque a interdependência e a transnacionalização dos novos fenômenos de segurança permitem ao conceito abranger significados não apenas localizados como também planetários. Multidimensional porque não se constitui só de conteúdo estratégico-militar, mas também de outros conteúdos transnacionais, como explosão demográfica, desequilíbrios ecológicos e migrações internacionais, que fazem a segurança internacional ser encarada sob diferentes ângulos. Porém, um dos aspectos mais relevantes, desde o ponto de vista conceitual, é que o surgimento de uma noção de segurança global multidimensional acaba atingindo uma das unidades fundamentais do realismo: a noção de sistema internacional.

Em adição aos temas acima mencionados, e pelos novos fenômenos, ocorridos no cenário internacional, que começaram a fazer parte do diálogo dos países industrializados e daqueles em via de desenvolvimento, também se começou a compreender que para construir a

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