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PARTE II HIDROPOLÍTICA INTERNACIONAL

CAPÍTULO 4 CONFIGURAÇÃO DA HIDROPOLÍTICA

4.1 Hidropolítica: conceituação

A hidropolítica se consubstancia a partir de análises sistêmicas e integradas das relações conflitantes ou cooperativas entre atores que compartilham corpos hídricos transfronteiriços. Na hidropolítica estão conformadas diversas relações entre ambiência, sistemas hídricos, bacias hidrológicas, pessoas e Estados. Envolve, dessa forma, o estudo e a gestão de problemas e soluções entre atores que afetam ou são afetados multidimensionalmente pelos sistemas hídricos que se compartilham.

Embora sejam poucas as definições sobre hidropolítica, é necessário destacar que este termo aparece pela primeira vez em 1979, no trabalho de John Waterbury, ao referir-se à situação conflituosa da bacia do Rio Nilo, compartilhada por dez Estados, numa região semiárida onde os valores atribuídos à água eram diversos, e se apresentava um cenário de

133 escassez física do elemento173, sendo este um fator provocador dos conflitos na região pela água. A partir do trabalho de Waterbury muitos interessados no estudo do assunto hídrico, em sua dimensão política e na segurança, têm recorrido ao seu uso.

Entretanto, é a Arun P. Elhance a quem se atribui a primeira definição de hidropolítica, num trabalho publicado em 1999, intitulado Hydropolitics in the third world: conflict and cooperation in international river basins (TURTON, 2002). Para Elhance (1998:218)“is the systematic analysis of interstate conflict and co-operation regarding international water resources”. Nessa definição torna-se evidente que hidropolítica envolve três elementos chaves: conflito e cooperação; Estados como atores principais; bacias hidrográficas (como epicentro das análises).

Para alguns estudiosos dos assuntos hídricos, a hidropolítica, por estar associada a situações de disputa, conflito, guerra, segurança e soberania se ocuparia das diferentes causas de tensões, projetando futuras predições na matéria. Para outros, daria conta das posturas de diferentes Estados com relação às águas internacionais e seus fundamentos no direito internacional, assim como se ocuparia dos casos nos quais os conflitos desembocam em ações de cooperação ou enfrentamentos, e tensões de diversa índole174.

Tal como supracitado, Arun Elhance focou sua análise nos Estados, mas os Estados não são os únicos atores relevantes na hidropolítica. Existem atores como as ONGs, os movimentos sociais, as transnacionais, por exemplo, que são de grande relevância para analisar as relações conflitantes ou cooperativas entre Estados que compartilham corpos hídricos para além de suas fronteiras.

Nesse sentido, Antony Turton realizou um levantamento da literatura existente sobre hidropolítica em 2002. Em seu trabalho inclui os atores não territoriais (ou transnacionais) que junto com os Estados (como atores principais da hidropolítica) oferecem maior abrangência mais adequada às relações hidropolíticas, conforme as mudanças do sistema internacional. O aporte de Turton foi ampliar o foco de análise da hidripolítica de forma multidimensional ou multisetorial, propondo, dessa forma, a ampliação do conceito de Elhance ao incluir outros atores além dos Estados.

173Ver John Waterbury, Hydropolitics of the Nile Valley Syracuse University Press, 1979.

174 Ver Edith F. Kauffer Michel, ―El concepto de hidropolítica en la frontera sur de México‖, em Boris Graizborde Jesús Arroyo Alejandre (coord.), El futuro del agua en México, Guadalajara y Los Ángeles. Universidad de Guadalajara. PROFMEX, Casa Juan Pablos, 2004. Edith F. Kauffer Michel, Hidropolítica. ¿Un

concepto útil para entender la problemática del agua en la Frontera México, Guatemala e Belice?”, en Edith

Kauffer Michel (ed.), El agua en la frontera México-Guatemala-Belice, Tuxtla Gutiérrez, Colección Social y Humanística, UNACH, ECOSUR, The Nature Conservancy, 2005: 45-57.

134 Assim, Turton (2002:56) considerou as diferentes formas de interação política relacionadas com a água, referindo-se à hidropolítica ―en tanto asignación autoritativa de los valores en una sociedad con respecto al agua”, centrando sua atenção nas escalas ou níveis de análise, e na variedade de temas relevantes em função de vários contextos estudados. Para aquele autor é necessário considerar o papel de atores não territoriais no desenvolvimento da hidropolítica. Nesse ponto, Turton (2002) estabelece uma grande diferença em relação ao entendimento de Elhance, já que considera importante o papel de atores não territoriais, que foram desconsiderados por este último, que foca sua análise nos Estados. Em quanto ao foco de análise, Turton como Elhance, centram-se no estudo de bacias hidrográficas.

Conforme foi explanado nos capítulos anteriores, neste estudo se pode perceber a ênfase que se faz no uso do conceito de bacia hidrológica (envolvendo bacias hidrográficas e bacias hidrogeológicas - águas aquíferas). Com base nisso, pode-se observar uma limitante nas análises que se baseiam apenas nas bacias hidrográficas.Uma vez que muitas relações conflitantes e cooperativas advêm do uso e gerenciamento de bacias aquíferas. Inclusive o Direito Internacional de Águas já se começou a ocupar-se de sua codificação.

Por ser um tema relativamente novo, muitos estudos nos quais se analisa a hidropolítica têm acontecido em bacias hidrográficas que guardam um elemento em comum: a escassez física da água.

A produção acadêmica predominantemente nessa matéria têm-se desenvolvido nos Estados Unidos e em alguns países europeus, como a França e a Espanha, ou com base em análises de bacias do Oriente Médio e da África. Sob esses aspectos, a escassez física da água constitui um vetor ou variável de importância para a hidropolítica, em função da disputa e dos conflitos entre os atores dependentes de uma fonte hídrica escassa (MICHEL, 2005; KAUFER, 2005; KAUFER, 2004; MICHEL, 2004).

Os países amazônicos ao compartilharem uma situação de abundância hídrica, não enfrentaram conflitos pontuais de disputa hídrica, como será tratado na terceira parte desta pesquisa. Acredita-se que na Bacia Amazônica existam mais motivos para a cooperação do que para o conflito entre os Estados que compartilham esse corpo hídrico, especialmente por levar em conta a existência de relações relativamente pacíficas e alguns empreendimentos de cooperação, merecendo destaque a iniciativa de Gerenciamento Integrado e Sustent´vel dos Recursos Hídricos transfronteiriços na Bacia do Rio Amazonas OTCA/PNUMA/OEA.

Adicionalmente acredita-se que pelas dinâmicas do sistema internacional e pelos abundantes potenciais hídricos do contexto amazônico, várias pesquisas irão se produzir. O

135 gerenciamento sustentável de tão delicado ecossistema merece essa atenção, assim como pelas dinâmicas do contexto internacional. De outro lado, como será abordado a continuação, existe um acompanhamento jurídico a respeito de recursos transfronteiriços que incluem tanto águas superficiais quanto águas subterrâneas, sendo, portanto, um tema de interesse também para a hidropolítica.

Diante das possibilidades analíticas no estudo da hidropolítica, a análise do tema doravante desenvolvida levará em conta os postulados de Turton acerca do tema. Para Turton (2002), existem quatro dimensões da hidropolítica. A primeira se refere às analises que focalizam o tema água e conflito, para o qual o Estado, ou os componentes do Estado, são frequentemente utilizados como unidade de análise; outra variante se concentra no aspecto do conflito e a cooperação no âmbito do Estado. Nosso trabalho se concentra nesse último aspecto, o de cooperação na Bacia Hidrológica Amazônica.

Uma segunda dimensão da hidropolítica, conforme Turton (2002), destaca o assunto da água e da ambiência. Conforme salienta o autor, é a literatura que cresce mais rapidamente e procura colocar a água dentro de um amplo cenário ambiental. Como tal, a água é vista como sendo um componente da ambiência, com uma variedade de forças motrizes de conflito inerentes175, que estão vinculados à multifuncionalidade da água. Essa visão é a que mais se sobressai, já que nenhum processo social ou político pode ignorar a natureza vital da água e suas funções ecológicas e ambientais, sociais e econômicas; além de suas funções nos ciclos hidrológicos, ecológicos ou ambientais.

Num terceiro grupo, o assunto hídrico é tratado a partir de uma abordagem que destaca a segurança em amplo sentido. Conforme salienta o Turton (2002), esta é a área focal da hidropolítica, que intenta chamar a atenção para a crise hídrica (ou em sua maior configuração ambiental), e como resultado procura politizar e até securitizar a gestão da água, tal como se depreende de suas palavras ao se referir ao conceito amplo de segurança trabalhado por Buzan et al, 1998. Dessa forma, esse tipo de literatura possui um padrão diferente de interesse176.

175 The second body of literature is growing rapidly and seeks to place water within a broader environmental

setting. As such, water is seen as being a component of the environment, with a variety of inherent conflict drivers. In this context, the scholars concerned see environmental goods as scarce resources, which are, in turn, contested. There is also a strong north/south component to this literature with elements in it of what may best be described as „reflexivity‟ (Giddens, 1990). A glance at this body of work is therefore also equally instructive. Significantly, new drivers and actors are identified within these writings. It should also be noted that some of the authors have straddled the first and second bodies of literature. Most obvious among these are Allan, Falkenmark, Lonergan and Turton.

176

The third main focal area of hydropolitical writing aims at drawing attention to the element of crisis within

the water sector (or in its broader environmental setting), and as result seeks to politicise, and possibly even to „securitise‟ the management of water(Turton 2001c). Elements of this can be understood (Turton 2001b) when the expanded concept of security is used as suggested by Buzan (1991; 1994) and Buzan et al (1998). Aglance at

136 A quarta dimensão da hidropolítica, para Turton (2002:19), destaca os componentes sociais e culturais da água: Água, Sociedade e Cultura. Neste grupo, conforme salienta o autor, tende-se a examinar o assunto hídrico num sentido mais abstrato, e menos empírico.

Por todo o anteriormente dito, os aportes da hidropolítica servem para compreender que os conflitos e a cooperação entre Estados e usuários das águas se circunscrevem em cenários complexos, onde a água é um recurso vital para a existência das espécies e, também, para o desenvolvimento econômico e social das nações. Todos os membros da sociedade, da mais desenvolvida à mais natural177, estão relacionados pela interdependência hidrológica.

Com a pouca conscientização sobre isso, e as poucas mobilizações sociais que alcancem algum resultado para diminuir os conflitos ambientais e sociais, os problemas relacionados com as águas atingem de diferentes maneiras aos indivíduos. Nesse sentido, o equacionamento dessas questões revela a dificuldade do gerenciamento hídrico transnacional, exigindo por suas dinâmicas e interconexões físicas, uma abordagem política e jurídica diferenciada, que aponta para a urgência de gerenciar de maneira mais apropriada as águas que compartilham dois ou mais Estados. Nesse cenário, as leis, normas e princípios que constituam regimes internacionais são instrumentos valiosos para regular o comportamento dos atores do sistema internacional, e dos atores que compartilham sistemas hídricos.