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Os distúrbios da diferenciação do sexo são condições congênitas raras, considerados uma emergência social (128). Determinar a etiologia dessas condições auxilia na atribuição do sexo social, permite um aconselhamento genético adequado, bem como o manejo e o acompanhamento clínico do paciente a longo prazo (38).

Um grande número de genes pode ser considerado agente causador desse grupo de afecções, visto que a etiologia dos DDS é amplamente variável. De fato, desde a descoberta do gene SRY por Sinclair et al. (1990) (129) um grande número de genes vem sendo associado a DDS. Por esse motivo, as tecnologias de sequenciamento de alto rendimento representam uma abordagem investigativa eficiente quando comparada ao método tradicional de sequenciamento, no qual a investigação é realizada gene a gene. As características clínicas e os padrões hormonais variáveis dificultam a previsão de um provável gene causador (38). Assim, a escolha das tecnologias aplicadas neste trabalho tinha o intuito de possibilitar uma investigação etiológica ampla em casos de DDS cuja etiologia ainda não estava solucionada.

Dos 14 indivíduos investigados neste trabalho, 11 apresentaram pelo menos uma variante deletéria relacionada a sua condição. Em três casos, incluindo um analisado por sequenciamento de exoma, nenhuma variante que pudesse ser associada ao fenótipo de DDS foi identificada. Em pelo menos dez, acredita-se que a causa da disgenesia gonadal seja uma herança oligogênica, com múltiplos eventos modulando o fenótipo dos pacientes.

Audi et al. mencionaram que resultados do sequenciamento do exoma e do genoma provavelmente demonstrarão que o fenótipo de alguns indivíduos com DDS resulta de uma combinação de eventos genéticos (38). Essa característica já demonstrada por outros autores em indivíduos com DDS 46,XY portadores de mutações em heterozigose do gene NR5A1 representa uma explicação plausível para a variabilidade fenotípica destes distúrbios (56,57).

Algumas características da casuística desse trabalho suportam a hipótese de que a herança oligogênica pode ter sido responsável pelo distúrbio em alguns casos. Em primeiro lugar, a variabilidade fenotípica ilustrada pela casuística do Grupo I. Dentre os dez indivíduos com DGP podem ser observados diferentes graus de virilização da

genitália externa, variando de Prader I a Prader V com presença de útero em dois casos. Essa variabilidade pode ter ocorrido em decorrência do desequilíbrio na expressão de mais de um gene atuando em diferentes vias em diferentes períodos do desenvolvimento gonadal, levando aos diferentes graus de diferenciação testicular observados na casuística.

Em segundo lugar, a herança paterna de algumas variantes, como por exemplo a mutação do gene SRY. Assumpção e colaboradores demonstraram a patogenicidade dessa mutação por estudos funcionais (116); no entanto, a variante está presente em membros não afetados da irmandade e no próprio genitor, demonstrando que, apesar do seu efeito deletério, essa variante isoladamente não é suficiente para resultar em disgenesia gonadal. Além disso, entre os irmãos afetados também há variabilidade fenotípica, uma vez que dois indivíduos apresentam DGP e um DGC. Neste estudo, foram identificadas diferentes variantes adicionais em dois indivíduos afetados da família, um com DGP e o outro com DGC, sugerindo que a segunda variante possa ter modulado o fenótipo desses indivíduos gerando essa diversidade fenotípica.

A mutação do gene NR5A1 descrita previamente como causadora do distúrbio apenas em homozigose (35,96), foi identificada em heterozigose no indivíduo 5 da casuística. O estudo do exoma mostrou uma segunda variante considerada deletéria por ferramentas de predição em um gene que interage indiretamente com o gene NR5A1, indicando que talvez um efeito deletério em cascata possa ter originado a disgenesia gonadal.

Finalmente, a não compatibilidade de fenótipos descritos na literatura com os encontrados na casuística pode ser resultante da modulação de um segundo evento genético; portanto, a correlação genótipo-fenótipo pode ser dependente do evento genético adicional. Assim, não podemos descartar a hipótese de que a herança oligogênica possa ter impacto no fenótipo de indivíduos com DDS.

Os indivíduos investigados neste trabalho foram selecionados com base em critérios clínicos e laboratoriais rigorosos. Portanto, a recorrência do envolvimento dos genes SIX4, WWOX e HHAT pode ser um indício considerável do papel desses genes no desenvolvimento gonadal. Já em relação a mutações no gene CYR61, apesar de recorrentes na casuística, o fenótipo associado com o desequilíbrio desse gene não estava presente em nenhum dos casos em que foi encontrada a variante, não sendo

possível determinar sua real relevância em nossa casuística. Além disso, a recorrência de mutações em genes com possíveis efeitos deletérios na via hedgehog vai ao encontro de evidências de que a mesma esteja envolvida no processo de desenvolvimento gonadal. Por sua vez, a recorrência de possível desequilíbrio do gene NR5A1 resultante de interação gênica inadequada. reafirma sua importância na determinação sexual. Na Figura 10 estão demonstradas as interações entre alguns genes em que foram identificadas variantes nos indivíduos desta casuística e o gene NR5A1.

Figura 10: Interação dos genes em que foram encontradas variantes neste trabalho (em azul) com o gene NR5A1 (em vermelho).

As variantes em regiões de splicing detectadas neste estudo não foram consideradas como causa das afecções em decorrência dos resultados das ferramentas de predição. Essas ferramentas mostraram que a presença de tais variantes não alterava o processo de splicing. No entanto, devemos considerar que as ferramentas in silico não fornecem respostas claras, e que resultados inconsistentes ou imprecisos podem ocorrer (130,131); assim, pode ser que a participação desse tipo de variante na etiologia dos casos de DGP e DGC analisados neste trabalho tenha sido subestimada.

As variantes sinônimas, por não alterarem o aminoácido codificado, foram consideradas por anos como alterações neutras durante a evolução, ou seja, não afetariam a função da proteína. No entanto, os códons sinônimos não possuem frequências iguais na maioria dos genomas sequenciados (132). Duas linhas de evidência sugerem que as variantes sinônimas podem ter consequências funcionais: a primeira, baseada nos achados citados anteriormente, sugere que mesmo os códons sinônimos estão sobre pressão evolutiva; a segunda evidência envolve a maior compreensão nos processos de síntese e conformação das proteínas.

Nas últimas décadas têm surgido evidências de que variantes sinônimas podem resultar em alteração no processo de splicing, podendo levar a efeitos deletérios e, consequentemente, a doenças. Evidências recentes indicam também que SNVs sinônimas podem afetar a estabilidade do RNA mensageiro e, por consequência, sua expressão e atividade enzimática (133,134). Kimchi-Sarfaty et al. demonstraram que o polimorfismo sinônimo c.3435T>C (p.Ile1145=) no gene MDR1 possui consequências funcionais e clínicas (135). Além disso, alterações sinônimas que trocam um códon comum por um raro, ou vice-versa, podem também afetar a eficiência da tradução da proteína, como demonstrado para o gene CFTR, cujas mutações são responsáveis pela fibrose cística (136).

Apesar dessas evidências, a estratégia de análise utilizada neste trabalho eliminou as variantes sinônimas devido à dificuldade de demonstrar experimentalmente o mecanismo molecular relacionado a etiopatogênese. Além disso, visto que as estratégias de análise 2, 3 e 4 visavam identificar genes candidatos, a análise focada em variantes exônicas que possuem maior probabilidade de efeito deletério era mais plausível. No entanto, a análise dos resultados de exoma com priorização das variantes sinônimas com efeitos funcionais poderá ser realizada em estudos futuros, utilizando a ferramenta Silent Variant Analyzer (SilVA) (134).

Na tentativa de classificar as variantes encontradas, foi utilizado o guia de interpretação de variantes do Colégio Americano de Genética Médica e Genômica (ACMG – American College of Medical Genetics and Genomics). Com base nesse guia, variantes provavelmente patogênicas podem ser apontadas nos genes HHAT e WWOX em decorrências de relatos na literatura de outros indivíduos com fenótipo semelhante; porém, devido à não compatibilidade completa de fenótipo e à ausência de estudos

funcionais, essas variantes não podem ser classificadas como patogênicas. As outras variantes identificadas foram consideradas como variantes de significado incerto, pois as mesmas estão localizadas em genes candidatos, nos quais o fenótipo compatível ainda não foi observado em humanos. No entanto, devemos salientar que esse guia foi desenvolvido para classificar variantes em genes causadores de doenças mendelianas visando diagnóstico, e que os autores claramente não recomendam essa classificação para doenças complexas e na pesquisa científica (131).

Devido às limitações de tempo e recursos financeiros, estudo funcionais não estavam previstos neste estudo; portanto, a real patogenicidade das variantes ainda não pode ser comprovada, devendo ser objeto de estudos futuros. Assim, estudos adicionais são necessários para elucidar o papel dessas variantes na etiologia das disgenesias gonadais 46,XY.

Apesar da importância da detecção de variantes de nucleotídeo único nos casos de DDS ser incontestável, uma parcela da etiologia dessas condições está associada a variações do número de cópias que afetam regiões codificantes e não codificantes. Variações que afetam genes dose-dependente, bem como suas regiões regulatórias, já foram descritas envolvendo os genes SOX9, SOX10, SOX3 e o NR0B1 (121,122,124–126). Assim como nesses casos, uma duplicação de 297.5 kb em Xp21.2:30561644_30859140 foi detectada em um indivíduo com DGP neste estudo. Essa variação não envolve o gene

NR0B1, gene candidato a ser o responsável pela disgenesia gonadal quando a região

Xp21.2 está duplicada (40), porém a região duplicada possui regiões regulatórias e compromete três outros genes também envolvidos em todas as duplicações previamente descritas na literatura. Este caso demonstra a importância da detecção de SV em regiões codificantes e não condificantes em indivíduos com DDS.

Apesar das tecnologias de sequenciamento possibilitarem uma análise ampla de várias regiões codificantes, a análise direcionada limita os achados, e muitos casos de DDS permanecem com etiologia desconhecida. Variantes em regiões não codificantes, SV, moduladores oligogênicos, fatores epigenéticos, alterações em regiões regulatórias, fatores ambientais e (ou) de estilo de vida são fatores que quando comprometidos podem resultar em erros no processo do desenvolvimento gonadal (39,56,137). Assim, apesar dos inúmeros esforços dos pesquisadores, muito conhecimento ainda é

necessário para a completa compreensão do processo de desenvolvimento gonadal e elucidação das etiologias desconhecidas.

É importante salientar também que o conhecimento disponível atualmente sobre genes, suas funções, vias e interações ainda é muito restrito. Muito do nosso conhecimento é constantemente atualizado e algumas vezes alterado. O fenótipo causado pelo gene NR5A1 pode ser considerado um exemplo. As primeiras descrições de mutações nesse gene estavam associadas com insuficiência adrenal e disgenesia gonadal, porém vários anos após os primeiros relatos constatou-se que a insuficência adrenal é um achado raro em indivíduos portadores de mutação nesse gene (21). Isso demonstra novamente a dificuldade da correlação genótipo-fenótipo frente ao nosso conhecimento limitado. Portanto, este estudo demonstra a eficiência das tecnologias de sequenciamento de alto rendimento, ao mesmo tempo em que evidencia a complexidade do desenvolvimento sexual.