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Investigação da etiologia genética dos Distúrbios da Diferenciação do Sexo

1. Introdução

1.2. Distúrbios da Diferenciação do Sexo

1.2.2. Investigação da etiologia genética dos Distúrbios da Diferenciação do Sexo

O cariótipo está entre os primeiros exames a serem realizados nos indivíduos com DDS com o objetivo de definir o sexo genético e detectar anomalias de cromossomos sexuais (37,38). Além da análise cromossômica, no campo da citogenética ainda pode ser utilizada a técnica de hibridação in situ por fluorescência (FISH) em casos de mosaicismo, de rearranjos cromossômicos, como deleções e translocações, e na caracterização de cromossomos marcadores. Porém, essa abordagem possui limitações como a necessidade de uma hipótese diagnóstica e a investigação de poucos loci em um mesmo experimento (39).

Sabe-se hoje que vários genes que regulam o desenvolvimento sexual exercem efeito dose-dependente, tais como NR0B1, FGF9 (fibroblast growth factor 9), SOX3 (SRY- box 3), SOX9, WNT4, ATRX (ATRX, chromatin remodeler) e DMRT1, entre outros. Alterações na dosagem gênica podem ser detectadas pela identificação de variações do número de cópias (CNV) utilizando as técnicas de Amplificação de Múltiplas Sondas Dependente de Ligação (Multiplex Ligation-dependent Probe Amplification, MLPA) e Análise Cromossômica por Microarray (ACM) (38).

MLPA é uma técnica semi-quantitativa usada para determinar o número relativo de cópias de sequências alvo (39). Em indivíduos com DDS, o uso desta técnica possibilitou nos últimos anos a identificação de deleção de dois éxons no gene NR5A1 e de duplicações envolvendo NR0B1 e SOX9 (39–41). Porém essa técnica, apesar de eficiente, possibilita apenas a identificação de alterações em sequências alvo, não realizando, portanto, uma varredura genômica.

Por sua vez, a ACM é uma tecnologia capaz de detectar deleções e duplicações submicroscópicas em todo o genoma, com resolução dependente do número de sondas presentes no microarranjo. Em indivíduos com DDS, CNV compreendendo regiões codificantes dos genes NR5A1, NR0B1, SOX9 e DMRT1 são as relatadas com maior frequência (39). Em um estudo com 116 indivíduos com DDS idiopática foram encontradas CNV com relevância clínica em 21,5% (42). Em outro estudo com 87 pacientes com disgenesia gonadal 46,XY sindrômica e não sindrômica foram identificados perdas e ganhos em 26 indivíduos (43). Na maioria dos trabalhos publicados até o momento a análise estava voltada para o estudo de regiões

codificantes. Embora mais plausível, esta vem demonstrando não ser a análise ideal, visto que no âmbito dos DDS, CNV em regiões regulatórias de genes dose-dependentes, como SOX3, SOX9, GATA4 e NR0B1, já foram descritas como causa desses distúrbios (39,44,45).

Aproximadamente 15% dos casos de DDS são causados por CNV, e essa taxa diagnóstica é maior em indivíduos que apresentam quadro sindrômico associado a disgenesia gonadal (3). Porém, apesar das vantagens apresentadas pela ACM, essa técnica não é capaz de identificar rearranjos cromossômicos balanceados, nem mosaicismo em baixa proporção celular (17)

As técnicas descritas anteriormente não identificam variantes de nucleotídeo único, cuja detecção depende de sequenciamento do DNA. A primeira técnica desenvolvida com esse propósito foi o sequenciamento de Sanger (46), que permite sequenciar fragmentos de até 900 pares de bases por vez; por esse motivo, o estudo de condições geneticamente heterogêneas por essa técnica precisa ser feito gene a gene (47,48).

Assim, com base nos achados clínicos e hormonais, a análise genética direcionada utilizando a metodologia de Sanger pode ser aplicada para a avaliação de sequência de genes específicos (37). Quando evidências bioquímicas sugerem o desequilíbrio de uma via específica, a chance de identificar uma variante em um gene relevante é alta, e por essa razão o sequenciamento de Sanger ainda é a principal ferramenta metodológica utilizada na investigação de SNV (17).

A priorização de genes na investigação diagnóstica de indivíduos com as formas não sindrômicas da disgenesia gonadal 46,XY (DGC e DGP) deve ser baseada naqueles em que mais frequentemente são encontradas variantes patogênicas, como SRY e

NR5A1. A presença de um quadro sindrômico também pode direcionar o estudo

específico de um gene, como por exemplo: o SOX9 nos casos de displasia campomélica; o WT1 na presença de nefropatias e(ou) tumor de Wilms; e GATA4 quando há anomalias cardíacas associadas (3,17,20,38). No entanto, o grande número de genes envolvidos no processo de determinação gonadal torna essa abordagem limitada na prática clínica. Além disso, quando a causa potencial do DDS não é clara ou o perfil hormonal não é específico, a abordagem gene a gene fornece um diagnóstico molecular em apenas 20% dos casos (17).

Devido ao amplo espectro fenotípico dos indivíduos com DDS, ao grande número de genes já identificados e candidatos potenciais na sua etiologia e à dificuldade na priorização de genes no sequenciamento de Sanger, as pesquisas na área têm evoluído gradualmente para o uso das novas estratégias de sequenciamento conhecidas como tecnologias de alto rendimento. Estas permitem o sequenciamento massivo e paralelo de milhares ou até milhões de fragmentos de DNA sequenciados simultaneamente, permitindo, assim, até mesmo a análise de todo o genoma (3).

Dentro das tecnologias de alto rendimento está o Sequenciamento de Segunda Geração (também conhecido como Next-Generation Sequencing - NGS) que tem como objetivo principal a identificação de variantes na sequência de DNA (48,49). Esta tecnologia permite ainda, a detecção de SV, definidas como variações no genoma com tamanho superior a 50 nucleotídeos que incluem deleções, duplicações, inversões, inserções e translocações (balanceadas ou desbalanceadas) a partir da análise dos dados com algoritmos específicos, além da identificação de deleções e inserções menores (Indels) (49,50).

Existem três abordagens de NGS: o painel gênico, o sequenciamento do exoma (whole exome sequencing - WES) e o sequenciamento do genoma (whole genome

sequencing – WGS).

O painel gênico consiste no sequenciamento de genes alvos selecionados devido ao conhecimento prévio de seu envolvimento em determinada condição. Assim, o sequenciamento de vários genes pode ser feito em um único experimento (17), e a eficiência desse tipo de abordagem vem sendo demonstrada por diversos trabalhos. Um estudo publicado recentemente com uma casuística de 278 indivíduos com DDS 46,XY e 48 com DDS 46,XX em que foi aplicada uma investigação direcionada para 64 genes associados a DDS e 967 genes candidatos chegou a um provável diagnóstico genético em 43% dos indivíduos XY e 17% dos XX (51). Özen e colaboradores obtiveram uma taxa diagnóstica de 45% em 20 indivíduos com DDS 46,XY utilizando um painel gênico com 56 genes sabidamente associados a esse grupo de condições. Além disso, esses autores demonstraram que essa abordagem é tempo-efetiva, diminuindo o período de diagnóstico para três dias, e também custo-efetiva, com custo quase três vezes menor que o método convencional de Sanger (52).

Por sua vez, Kim e co-autores aplicaram um painel com 67 genes associados a DDS em humanos a uma casuística de 37 pacientes com DDS 46,XY e sete com DDS 46,XX, sendo obtido o diagnóstico genético em 29,5% dos casos (53). Por último, Fan e colaboradores demonstraram a superioridade do painel gênico quando comparado à abordagem de gene único no centro diagnóstico onde esses autores atuam (28% versus 10%). Salientaram ainda que a taxa de detecção quando se utiliza o sequenciamento gene a gene é influenciada pela seleção do gene alvo, que é limitada pelo conhecimento e experiência dos clínicos com cada condição genética (54).

Apesar da eficiência da abordagem demonstrada por diversos trabalhos, mais de metade dos casos de DDS ainda continuam sem um diagnóstico molecular em todos os trabalhos descritos anteriormente. Isso pode ser consequência da investigação focada em genes previamente associados à determinação gonadal, não possibilitando, assim, a descoberta de novos genes (52) nem a análise de regiões não codificantes; pode ainda ser decorrente da ausência de análise de SV. O número determinado de genes investigados nos painéis representa uma limitação para condições com compreensão genética incompleta, como DDS, que necessitam de abordagens que possibilitem novas correlações genótipo/fenótipo (3).

Essas limitações podem ser superadas, em parte, pelo uso do sequenciamento do exoma, que possibilita obter informações de todas as regiões codificantes do genoma, com o potencial de levar à descoberta de novos genes associados aos DDS. Visto que todos os éxons estão sequenciados, os dados podem ser reanalisados facilmente quando novos genes são reportados na literatura, uma prática que acarreta em aumento da taxa diagnóstica (3).

Baxter et al. (2015) aplicaram o sequenciamento do exoma a 40 indivíduos com DDS 46,XY. Para a análise, os autores partiram de uma lista de genes cujas mutações haviam sido relatadas em pelo menos um caso de DDS. Foram identificadas em 22,5% dos casos variantes patogênicas, em 12,5% variantes provavelmente patogênicas e em 15% dos casos variantes de significado clínico incerto (55).

Além disso, o uso do exoma em casos de DDS possibilitou a identificação de uma potencial herança oligogênica em casos de mutações em heterozigose no gene NR5A1 (56,57); de duas variantes no gene ZNRF3 (zinc and ring finger 3) em indivíduos com DDS 46,XY (58); de mutações de mudança de matriz de leitura no gene NR2F2 (nuclear

receptor subfamily 2 group F member 2) em três pacientes 46,XX com DDS sindrômico

(59); de mutações no gene ESR2 (estrogen receptor 2), sendo uma variante em homozigose em um indivíduo com DDS 46,XY sindrômico e duas variantes missense em heterozigose em dois indivíduos com a forma não sindrômica de DDS 46,XY (60); de mutações no gene FOG2 (ZFPM2 - zinc finger protein, FOG family member 2) em dois pacientes com disgenesia gonadal 46,XY (61); de mutações em heterozigose composta no gene FLNB (filamin B) em um indivíduo 46,XY com displasia esquelética e disgenesia gonadal (62); de uma mutação em homozigose no gene FANCA (FA complementation

group A) em um indivíduo 46,XY com microcefalia e disgenesia gonadal (63); de uma

mutação no gene ANOS1 (anosmin 1) em dois irmãos gêmeos com fenótipo de síndrome de Kallmann (64); de uma mutação em homozigose no gene DHH em duas pacientes 46,XY com fenótipo feminino, filhas de casal consanguíneo e diagnosticadas com DGP (65); e de uma mutação em homozigose no gene SPIDR (scaffold protein involved in DNA

repair) em duas filhas de um casal consanguíneo diagnosticadas com falência ovariana

primária (primary ovarian insufficiency, POI) (66).

Além disso, o sequenciamento do exoma permite a detecção de SV, o que já foi demonstrado em um estudo com 2603 indivíduos com diferentes condições genéticas, incluindo 38 com DDS. Foram identificadas 123 SV clinicamente relevantes, mas nenhuma delas na amostra de indivíduos com DDS, o que pode ter sido ocasionado pela análise focada em regiões codificantes (39,67). A aplicação dos dados de WES na detecção da monossomia do cromossomo X foi também demonstrada em 27 casos de síndrome de Turner (68).

Apesar dos inúmeros benefícios dessa técnica, o sequenciamento do exoma ainda possui limitações que incluem cobertura incompleta dos genes, variabilidade das plataformas, dificuldade na interpretação das variantes e questões éticas relacionadas a achados incidentais (3). Em relação à detecção de SV, essa abordagem não permite precisão na identificação de pontos de quebra e não avalia a presença de variações do número de cópias em regiões não codificantes (39).

Assim, apesar do avanço representado pelo sequenciamento do exoma, sua implementação só permitiu chegar a um diagnóstico molecular conclusivo em diferentes condições genéticas em cerca de 30% dos casos. Sugere-se que isso seja

decorrente da análise direcionada às regiões codificantes do DNA, que representam uma parcela muito pequena no genoma completo (3).

O sequenciamento do genoma permite a identificação de SNV e Indels não apenas nas regiões codificantes, mas em todo o genoma. Para essa abordagem não se utiliza a captura de regiões alvo; em consequência disso, resultados de WGS mostram maior uniformidade na profundidade das sequências de leitura em todo o genoma e melhores parâmetros de qualidade em relação ao sequenciamento do exoma. Sua maior limitação encontra-se na difícil tarefa de identificar variantes deletérias relevantes entre os milhões de variantes encontradas em cada genoma, sendo drasticamente limitada pela nossa incapacidade atual para interpretar a patogenicidade da maioria das variantes (3).

No âmbito dos DDS, o sequenciamento do genoma foi realizado em um caso de DGC inicialmente diagnosticado como síndrome da insensibilidade androgênica; esse diagnóstico foi posteriormente questionado devido à presença de derivados Mullerianos. O sequenciamento do genoma mostrou a presença de uma variante provavelmente patogênica no gene SRY (NM_003140.2, p.Arg130Pro, c.389G > C) (32). A detecção de SV a partir de dados de WGS pode ser alcançada utilizando diferentes estratégias de bioinformática (depth of coverage, discordant sequence read

pair, split-read, assembly-based methods) ou uma combinação dessas estratégias. Estas

são complementares e específicas para os diferentes tipos e tamanhos de SV; variam também em relação à acurácia na definição do ponto de quebra (3,69,70).

Frente ao resultado de todos os estudos mencionados anteriormente, uma pergunta ainda precisa ser respondida: por que mais de 50% dos indivíduos com DDS ainda permanecem sem um diagnóstico molecular? A resposta pode estar em outros genes envolvidos nessas condições, porém ainda não descobertos; na presença de SV que não são facilmente detectadas por tecnologias de NGS ou pelos métodos de bioinformática; na ocorrência de alterações somáticas em processos essenciais durante o início da vida embrionária, afetando o desenvolvimento de um órgão, e que só podem ser identificados quando o tecido específico é analisado; ou ainda em fatores epigenéticos ou ambientais que podem influenciar o desenvolvimento gonadal, isoladamente ou em combinação com eventos genéticos raros.