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A discussão em torno do riso entre Guilherme de Baskerville e Jorge de Burgos

Capítulo IX – Onde se conta o que nele se verá

4.2. A discussão em torno do riso entre Guilherme de Baskerville e Jorge de Burgos

Por três momentos, logo no início da narrativa, Guilherme de Baskerville e Jorge de Burgos tecem diálogos em torno do caráter lícito ou não do riso. Dentre esse três, selecionou-

se a terceira discussão em torno do riso realizada por esses personagens que, segundo Enrique Montero Cartelle e Maria Cruz Ingelmo, foi construída por Umberto Eco tendo por base as citações do livro já clássico Literatura Européia e Idade Média latina de E. R. Curtius: “Hay una

variación de tipo formal con reláción al original: la exposición de E. R. Curtius toma em Umberto Eco forma-resumida de disputa teórica” (1994, p.214).

Jorge diz a Guilherme que Jesus nunca rira, que ele nunca contara comédias, nem fábulas, apenas parábolas, pois estas últimas tinham uma função didática de ensinar a salvação (ao paraíso) aos homens. Guilherme imediatamente contesta a idéia do ancião de que o riso seja algo ruim. Jorge, porém, irredutível, condena novamente o riso dizendo que “o riso sacode o corpo, deforma as linhas do rosto, torna o homem semelhante ao macaco.” (ECO, 1986). O riso visto como uma deformidade, como uma representação grotesca da baixeza humana, também é encontrado por Skinner, como expõe em seu livro Hobbes e a teoria clássica do riso, entre autores como Lord Chestefiel:

O riso deve ser totalmente evitado (...) não há nada tão tacanho e tão mal- educado. Pessoas de sensibilidade e educação devem mostrar estar acima daqueles que se habituam ao riso. Rir é algo baixo e inconveniente, especialmente por causa do ruído desagradável que o riso provoca e da distorção chocante da face que ele ocasiona sempre que sucumbimos a ele. (CHESTERFIELD apud SKINNER, 2002, p.74)

Guilherme, entretanto, mais uma vez não concorda com Jorge, novamente dizendo que os macacos não riem e que rir, ao contrário da irracionalidade, representa que os homens são seres racionais, justamente, porque riem. Observa-se com isso que, para Guilherme, o riso estimula ou gera a reflexão do indivíduo, demonstrando assim, implicitamente, a importância do riso na construção do intelecto e do caráter humano. Jorge, porém, retruca dizendo que quem ri do mal demonstra não estar disposto a combatê-lo, assim como quem ri do bem não sabe da força com que o bem difunde a si próprio. Como se vê, Jorge proíbe o riso em todos os sentidos, sempre atribuindo a quem ri a manta da estultícia, considerando o indivíduo como sendo de pouca elevação espiritual. Essa proibição irrevogável de Jorge foge ao que Jacques Le Goff diz em seu artigo “O riso na Idade Média” sobre como as ordens monásticas medievais se portavam diante do riso. Para o autor, havia regras em que o riso não era totalmente proibido, mas havia outras em que a rigorosidade em torno do riso era exacerbada. Para Le Goff, “a codificação do riso e a sua condenação nos círculos monásticos resultam, ao menos em parte, de sua perigosa relação com o corpo” (2000). O riso era extremamente proibido ao monge, principalmente,

quando quebrava as regras do silêncio, que era uma virtude essencial à vida monástica, gerando uma violação gravíssima. Entretanto, pode-se constatar que o riso existia entre os monges, por exemplo, quando eles realizavam entre si os chamados joca monacorum (uma troca de piadas entre os monges): “E finalmenteo Eclesiastes, do qual haveis citado a passagem à qual se refere a vossa Regra, onde se diz que o riso é próprio do tolo, admite ao menos um riso silencioso, de ânimo sereno.” (ECO, 1986, p.159)

Enfim, Jorge expõe seu verdadeiro temor diante do riso: “O riso é incentivo à dúvida.”. Assim, esse diálogo em torno do riso demonstra o quanto Jorge de Burgos luta contra esse elemento que pode desarticular os dogmas da Igreja, com sua força questionadora e provocante. O riso era maléfico para Jorge (personagem metonímico da Igreja) pois o riso leva à reflexão e a reflexão leva à dúvida. Quem duvida e questiona o mundo a sua volta passa a questionar a Igreja, e quem duvida não pode ter fé. Sem a fé e o medo, diante dos dogmas, a Igreja passa a não ter mais poder, e pode ser destronada de seu reinado. Para Jorge, toda a verdade se encontra nas Escrituras e nas leituras que os doutores da Igreja fizeram delas. Para ele, tudo o que foge a isso não é verdadeiro, nem útil, nem agradável. Jorge, desse modo, representa a manipulação realizada em torno da não divulgação do conhecimento, mantendo, assim, a ignorância, pois somente em meio a ignorantes é que o poder arbitrário da Igreja poderia manifestar-se sem resistência.

O diálogo entre Guilherme e Jorge é a metáfora da discussão entre a razão e o dogma, entre a tolerância e a intolerância, entre o discurso dialógico e o discurso monolítico, entre a busca pela verdade e a instituição do medo como verdade.

Para Jorge, a dúvida é suprimida pela autoridade: “Não vejo razão para isso. Quando se duvida deve-se recorrer a uma autoridade, às palavras de um padre ou de um doutor, e acaba qualquer dúvida.” (ECO, 1986, p.159). Para ele, Cristo não ria e quando Guilherme lhe apresenta argumentos tentando provar-lhe que talvez não se pudesse afirmar isso, Jorge, já sem argumentos, passa para a agressão verbal, acusando Guilherme de “soltar peidos pela boca”. Isso evidencia a disposição a que todo discurso monolítico e intolerante leva – a violência, que foi a marca da Inquisição e se configurou no campo de ação de Jorge, que não poupou esforços ao envenenar o livro de Aristóteles e provocar a morte dos monges.

O Nome da Rosa, nesse contexto, proporciona ao leitor refletir sobre o riso e suas

conseqüências. A ironia, nesse ínterim, não deixa também de exercer sua função, pois quando Guilherme conta a Jorge a história de São Mauro, que ridicularizou aqueles que o martirizavam, Jorge detém sua vontade de rir - o que Guilherme imediatamente percebe, e declara: “Rides do

riso, mas rides”.(ECO, 1986, p.160). Ironicamente, Jorge, que prega contra o riso, também sente vontade de emiti-lo.